quinta-feira, 2 de maio de 2013

2 – Maio (quarta). [1990]

Os pássaros cumprem enfim o seu dever. Mas são uns chilreios chilros, de pássaros enfezados. O que vale é que de vez em quando a rola dá de si. E é logo o espaço cheio do seu calor redondo e farto. E logo em mim alastra uma moleza de sesta. Por acaso amoleci antes mesmo de a ouvir. E passei pelas brasas, afundado no sofá. Também o sol começa a cumprir, depois da insensatez das chuvadas de há dias. Quando hoje vínhamos do restaurante, o Verão pôs-me mesmo a mão na cabeça. E eu disse-lhe chega-te para lá. Mas teve de vir uma aragem para o afastar. E quando vimos uma sombra, desviámo-nos para ela, de modo a não nos maçar mais. E agora no escritório deixo-o entrar pela janela para se espojar no chão. Os pássaros aproveitam e mandam-me a sua música. Mas estava eu a escrever isto quando o sol se escondeu, pensando decerto que de mal-agradecidos está o mundo cheio. O pior é este destempero dos nervos que se me centra no umbigo como no tempo das cólicas dos exames e me estraga o prazer de fumar um cigarro. Fumo-os agora «de enrolar» como nos tempos da juventude. Eu nem sabia que ainda havia disso, mas soube-o quando o Augusto Joaquim, que é marido da Gabriela Llansol, esteve com ela aqui há dias e puxou de uma bolsa de tabaco e o enrolou numa «mortalha». Experimentei e gostei muito. É saboroso mas um pouco forte. Mas como faço os cigarros miudinhos, creio que ficam fracos outra vez. E cada bolsa dá para uns 80 cigarros pelo preço de um só maço. Bom e barato é coisa estranha no comércio. O pior ainda é que desde madrugada até a esta hora da tarde – são quatro e meia – não há energia eléctrica. Mas a companhia da dita aqui em Sintra é assim. De vez em quando entende que já energificou bastante e senta-se a descansar, talvez a fumar também um cigarro. Resultado – um dia inteiro sem música. Fora outros contratempos como o do frigorífico a pôr-se também no ripanço e a deslassar o gelo em água para a Regina depois ter de apanhar do chão. Posto o que arrumo os papéis e vou cumprir o meu dever de leitura perguntando-me nos intervalos que diabo poderei agora escrever de «sério». Não me venham com literatura, que já disse. Estou farto, preciso de fazer uma longa dieta. Releio Heidegger, coisas científicas e por aí. E escrevo cartas atrasadas. Mas sobretudo não faço nada – o que, aliás, não é assim coisa fácil de fazer. E naturalmente garatujo este entretenimento sem significado nenhum e vou andando com uma coisa que se chama Pensar que quando é bom, dá coisas mais ou menos epigramáticas para reflectir e quando é mais para o fraco, dá reflexões mais alastradas como as que no diário às vezes me acontecia. Mas isso não é digno de um trabalhador intelectual que em todo o caso não tem o seu 1.º de Maio. Aliás, a princípio – desde o título – meteu-se-me na cabeça dar alguma continuação ao Marco Aurélio e ao Pascal. Coisa atrevida com o seu tanto de farófia, De todo o modo, está, parece-me, a murchar. Não, o que eu queria era engrenar numa coisa de tomo, género Invocação, com uma cadeia de ideias e uma temperatura acima dos zero graus. Penso às vezes num balanço do meu tempo que me desse o limiar do que há-de vir. Complicado e mais ou menos já mastigado por toda a gente. Mas sobretudo é coisa imprópria para consumo nestes tempos de fragmentação, caos, esgotamento, cansaço de tudo quanto seja obra de «tomo». Bom. E se não fizesse mesmo mais nada? Se entrasse definitivamente no desemprego mental? Se decretasse a minha voz de espírito definitivamente rouca, mesmo com rebuçados de mentol? Se me calasse?
E é o que faço por agora, arrumando os papéis.

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