Os pássaros cumprem enfim o seu
dever. Mas são uns chilreios chilros, de pássaros enfezados. O que vale é que
de vez em quando a rola dá de si. E é logo o espaço cheio do seu calor redondo
e farto. E logo em mim alastra uma moleza de sesta. Por acaso amoleci antes
mesmo de a ouvir. E passei pelas brasas, afundado no sofá. Também o sol começa
a cumprir, depois da insensatez das chuvadas de há dias. Quando hoje vínhamos
do restaurante, o Verão pôs-me mesmo a mão na cabeça. E eu disse-lhe chega-te
para lá. Mas teve de vir uma aragem para o afastar. E quando vimos uma sombra,
desviámo-nos para ela, de modo a não nos maçar mais. E agora no escritório
deixo-o entrar pela janela para se espojar no chão. Os pássaros aproveitam e
mandam-me a sua música. Mas estava eu a escrever isto quando o sol se escondeu,
pensando decerto que de mal-agradecidos está o mundo cheio. O pior é este
destempero dos nervos que se me centra no umbigo como no tempo das cólicas dos
exames e me estraga o prazer de fumar um cigarro. Fumo-os agora «de enrolar»
como nos tempos da juventude. Eu nem sabia que ainda havia disso, mas soube-o
quando o Augusto Joaquim, que é marido da Gabriela Llansol,
esteve com ela aqui há dias e puxou de uma bolsa de tabaco e o enrolou numa
«mortalha». Experimentei e gostei muito. É saboroso mas um pouco forte. Mas
como faço os cigarros miudinhos, creio que ficam fracos outra vez. E cada bolsa
dá para uns 80 cigarros pelo preço de um só maço. Bom e barato é coisa estranha
no comércio. O pior ainda é que desde madrugada até a esta hora da tarde – são
quatro e meia – não há energia eléctrica. Mas a companhia da dita aqui em
Sintra é assim. De vez em quando entende que já energificou bastante e senta-se
a descansar, talvez a fumar também um cigarro. Resultado – um dia inteiro sem
música. Fora outros contratempos como o do frigorífico a pôr-se também no
ripanço e a deslassar o gelo em água para a Regina depois ter de apanhar do
chão. Posto o que arrumo os papéis e vou cumprir o meu dever de leitura
perguntando-me nos intervalos que diabo poderei agora escrever de «sério». Não
me venham com literatura, que já disse. Estou farto, preciso de fazer uma longa
dieta. Releio Heidegger,
coisas científicas e por aí. E escrevo cartas atrasadas. Mas sobretudo não faço
nada – o que, aliás, não é assim coisa fácil de fazer. E naturalmente garatujo
este entretenimento sem significado nenhum e vou andando com uma coisa que se
chama Pensar
que quando é bom, dá coisas mais ou menos epigramáticas para reflectir e quando
é mais para o fraco, dá reflexões mais alastradas como as que no diário às
vezes me acontecia. Mas isso não é digno de um trabalhador intelectual que em
todo o caso não tem o seu 1.º de Maio. Aliás, a princípio – desde o título –
meteu-se-me na cabeça dar alguma continuação ao Marco Aurélio e ao Pascal.
Coisa atrevida com o seu tanto de farófia, De todo o modo, está, parece-me, a
murchar. Não, o que eu queria era engrenar numa coisa de tomo, género Invocação,
com uma cadeia de ideias e uma temperatura acima dos zero graus. Penso às vezes
num balanço do meu tempo que me desse o limiar do que há-de vir. Complicado e
mais ou menos já mastigado por toda a gente. Mas sobretudo é coisa imprópria
para consumo nestes tempos de fragmentação, caos, esgotamento, cansaço de tudo
quanto seja obra de «tomo». Bom. E se não fizesse mesmo mais nada? Se entrasse
definitivamente no desemprego mental? Se decretasse a minha voz de espírito
definitivamente rouca, mesmo com rebuçados de mentol? Se me calasse?
E é o que faço por agora,
arrumando os papéis.
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