quinta-feira, 23 de maio de 2013

Miguel Torga: 23 de Maio de 1973


Santo António do Zaire, 23 de Maio de 1973 – A obstinação de visitar o sítio que o meu comprovinciano Diogo Cão pisou pela primeira vez ia-me custando a vida. A raiva do Zaire parecia querer vingar-se em mim da violação de quinhentos. Depois de deambular pelas suas muílas – uma extensa Veneza selvagem de grandes canais sonolentos a reflectir uma anfíbia arquitectura vegetal –, entrei confiado naquela torrencial magnitude. E foi a profanação. O vento soprou, as ondas ergueram-se, a alma fluvial bramiu, e daí a nada a casca de noz em que eu navegava, a dançar na crista da fúria, transformou-se na morada do próprio terror. Milhas e milhas assim, em que o precário motor do caíque era o único deus a que a fé se apegava. Mas, felizmente, tudo acabou em bem, apenas no desconforto de uma molha da cabeça aos pés e na emoção gatafunhada de um poema.

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