sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Dia 31 [Agosto de 2009]

Despedida
Diz o refrão que não há bem que sempre dure nem mal que ature, o que vem assentar como uma luva no trabalho de escrita que acaba aqui e em quem o fez. Algo de bom se encontrará nestes textos, e por eles, sem vaidade, me felicito, algo de mal terei feito noutros e por esse defeito me desculpo, mas só por não tê-los feito melhor, que diferentes, com perdão, não poderiam eles ser. Às despedidas sempre conveio que fossem breves. Não é isto uma ária de ópera para lhe meter agora um interminável adio, adio. Adeus, portanto. Até outro dia? Sinceramente, não creio. Comecei outro livro e quero dedicar-lhe todo o meu tempo. Já se verá porquê, se tudo correr bem. Entretanto, terão aí o Caim.

P. S – Pensando melhor, não há que ser tão radical. Se alguma vez sentir necessidade de comentar ou opinar sobre algo, virei bater à porta do Caderno, que é o lugar onde mais a gosto poderei expressar-me.
José Saramago, O CADERNO

Funchal, 31 de Agosto de 1980

Funchal, 31 de Agosto de 1980 – Acabaram-se os sete dias de sortilégio. Antes de partir, encho os olhos até onde posso desta realidade geológica que tanto me faz lembrar o meu Doiro amado, pela graça suplementar da cultura que foi acrescentada à beleza silvestre. Aqui como lá, a mão laboriosa soube humanizar a rude paisagem natural sem a desfigurar. O que era majestoso e belo de origem, ficou ainda mais majestoso e belo depois de granjeado.
Já quase esquecido dos tapetes persas que pisei com pés de caçador, dos criados portugueses que só queriam entender inglês, da futilidade dos casinos e do folclorismo turístico, é o milagre dos abismos povoados, das levas de água conduzidas, das grandes ravinas amanhadas que levo na retina maravilhada e agradecida à tenacidade epopeica de irmãos de sangue que transformaram, e continuam a transformar dia a dia, uma ilha de lava convulsionada num presépio de vida florido de esperança.

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Cabo Girão, 30 de Agosto de 1980.


ATLANTES

Teve de se afundar um continente
Para que um dos seus cumes,
Magicamente emerso,
Fosse por nós achado,
Loucos descobridores
De terras que faltavam
Na imaginação.
Povoámo-lo, então,
Da nossa portuguesa
Vitalidade,
A renovar presenças do passado.
E agora, alcandorados
Nesta gávea de pedra,
A navegar parados,
Perguntamos ao mar
E aos pontos cardeais
Se seremos gigantes encantados
Em homens naturais.

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Porto Moniz, 29 de Agosto de 1980

Porto Moniz, 29 de Agosto de 1980 – Lembrar-me eu que poderia ter morrido sem conhecer os caminhos de assombro que vêm dar a esta terra! E pensar depois que é quase certo que nunca mais os tornarei a ver… 

terça-feira, 28 de agosto de 2012

Dia 28 [Agosto de 2009]

A junta do motor
Desde há mais de sessenta anos que eu deveria saber conduzir um automóvel. Conhecia bem, naqueles remotos tempos, o funcionamento de tão generosas máquinas de trabalho e de passeio, desmontava e montava motores, limpava carburadores, afinava válvulas, investigava diferenciais e caixas de mudanças, instalava calços de travões, remendava câmaras de ar furadas, enfim, sob a precária protecção do meu fato-macaco azul que me defendia o melhor que podia das nódoas de óleo, efectuei com razoável eficiência quase todas as operações por que é obrigado a passar um automóvel ou um camião a partir do momento em que entra numa oficina para recuperar a saúde, tanto a mecânica como a eléctrica. Só faltava que me sentasse um dia atrás do volante a fim de receber do instrutor as lições práticas que deveriam culminar no exame e na sonhada aprovação que me permitiria ingressar na ordem social cada vez mais numerosa dos automobilistas encartados. Contudo, esse dia maravilhoso nunca chegou. Não são apenas os traumas infantis que condicionam e influem a idade adulta, também os que se sofrem na adolescência podem vir a ter consequências desastrosas e, como no presente caso sucedeu, determinar de maneira radicalmente negativa a futura relação do traumatizado com algo tão quotidiano e banal como é um veículo automóvel. Tenho sólidas razões para crer que sou o deplorável resultado de um desses traumas. Mais ainda: por muito paradoxal que a afirmação vá parecer a quem das íntimas conexões entre as causas e os efeitos somente tiver ideias elementares, se nos meu verdes anos não tivesse trabalhado como serralheiro-mecânico numa oficina de automóveis, hoje, provavelmente, saberia conduzir um carro, seria um orgulhoso transportador em lugar de um humilde transportado. Além das operações que comecei por referir, e como parte obrigatória de algumas delas, também substituía as juntas dos motores, essas finas placas forradas de folha de cobre sem as quais seria impossível evitar fugas da mistura gasosa de combustível e ar entre a cabeça do motor e o bloco dos cilindros. (Se a linguagem que estou a usar parecer ridiculamente arcaica aos entendidos em automóveis modernos, mais governados por computadores do que pela cabeça de quem os conduz, a culpa não é minha: falo do que conheci, não do que desconheço, e muita sorte que não me ponha aqui a descrever a estrutura das rodas dos carros de bois e a maneira de atrelar estes animais ao jugo. É matéria igualmente arcaica em que também tive alguma competência). Ora, um dia, depois de ter acabado o trabalho e colocado a junta no seu sítio, depois de ter apertado com a força dos meus dezanove anos as porcas que sujeitavam a cabeça do motor ao bloco, dispus-me a realizar a última fase da operação, isto é, encher de água o radiador. Desenrosquei pois o tampão e comecei a deitar para a boca do radiador a água com que tinha enchido o velho regador que para esse e outros efeitos havia na oficina. Um radiador é um depósito, tem uma capacidade limitada e não aceita nem um mililitro mais do que a quantidade de água que lá caiba. Água que continue a deitar-se-lhe é água que transborda. Algo de estranho, porém, se estava a passar com aquele radiador, a água entrava, entrava, e por mais água que lhe metesse não a via subir dançando até à boca, que seria o sinal de estar acabado o enchimento. A água que já vertera por aquela insaciável garganta abaixo teria bastado para satisfazer dois ou três radiadores de camião, e era como se nada. Às vezes penso que, sessenta e muitos anos passados, ainda hoje estaria a tentar encher aquele tonel das Danaides se em certa altura não me tivesse apercebido de um rumor de água a cair, como se dentro da oficina houvesse uma pequena cascata. Fui ver. Pelo tubo de escape do carro saía um avultado jorro de água que, pouco a pouco, diante dos meus olhos estupefactos, foi diminuindo de caudal até ficar reduzido a umas derradeiras e melancólicas gotas. Que se passara? Tinha colocado mal a junta, tapara entre a cabeça do motor e o bloco o que deveria ter aberto, e, muito mais grave do que isso, facilitara passagens e comunicações onde não deveria havê-las. Nunca cheguei a saber que voltas teve de dar a pobre água para ir sair ao tubo de escape. Nem quero que mo digam agora. Para vergonha bastou. Possivelmente terá sido nesse dia que comecei a pensar em tornar-me escritor. É um ofício em que somos ao mesmo tempo motor, água, volante, mudanças de velocidade e tubo de escape. Talvez, afinal, o trauma tenha valido a pena.
José Saramago, O CADERNO

Pico do Areeiro, 28 de Agosto de 1980

Pico do Areeiro, 28 de Agosto de 1980 – A Madeira que eu amo verdadeiramente, que não me canso de admirar, que não tem comparação com outra qualquer realidade geográfica minha conhecida. Que se não deixou corromper por nenhum turismo, que se mantém ciclópica, abissal, rebeldemente estéril e inacessível. Que transmite aos sentidos o espanto e o calafrio que despertam as coisas primordiais. Que não cabe nos olhos que a vêem e nas palavras que a descrevem. Que é uma espécie de alucinação da natureza.

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Dia 27 [Agosto de 2009]

República
Vai para cem anos, em 5 de Outubro de 1910, uma revolução em Portugal derrubou a velha e caduca monarquia para proclamar uma república que, entre acertos e erros, entre promessas e malogros, passando pelos sofrimentos e humilhações de quase cinquenta anos de ditadura fascista, sobreviveu até aos nossos dias. Durante os enfrentamentos, os mortos, militares e civis, foram 76, e os feridos 364. Nessa revolução de um pequeno país situado no extremo ocidental da Europa, sobre a qual já a poeira de um século assentou, sucedeu algo que a minha memória, memória de leituras antigas, guardou e que não resisto a evocar. Ferido de morte, um revolucionário civil agonizava na rua, junto a um prédio do Rossio, a praça principal de Lisboa. Estava só, sabia que não tinha qualquer possibilidade de salvação, nenhuma ambulância se atreveria a ir recolhê-lo, pois o tiroteio cruzado impedia a chegada de socorros. Então esse homem humilde, cujo nome, que eu saiba, a história não registou, com uns dedos que tremiam, quase desfalecido, traçou na parede, conforme pôde, com o seu próprio sangue, com o sangue que lhe corria dos ferimentos, estas palavras: «Viva a república». Escreveu república e morreu, e foi o mesmo que tivesse escrito: esperança, futuro, paz. Não tinha outro testamento, não deixava riquezas no mundo, apenas uma palavra que para ele, naquele momento, significaria talvez dignidade, isso que não se vende nem se deixa comprar, e que é no ser humano o grau supremo.
José Saramago, O CADERNO

Funchal, 27 de Agosto de 1980

Funchal, 27 de Agosto de 1980 – Felizes, estes ingleses. Conseguem ter a arte de se instalar e estar sempre de visita nos melhores sítios do mundo.

domingo, 26 de agosto de 2012

Dia 26 [Agosto de 2009]


Dois escritores
Chamam-se Ramón Lobo e Enric González. Exercem de jornalistas e são-no de facto, do melhor que se pode encontrar nas páginas de um jornal, mas eu prefiro vê-los como escritores, não porque considere hierarquizáveis as duas profissões, mas porque na leitura do que escrevem colho emoções e defino sentimentos que, ao menos em princípio, mais naturalmente são mostráveis numa obra literária de qualidade. A Ramón Lobo já levo alguns anos lendo-o, Enric González é um descobrimento recente. Como correspondente de guerra, Ramón tem a superior qualidade de pôr cada palavra, em sua exacta medida expressiva, sem retórica nem deslizamentos sensacionalistas, ao serviço do que vê, ouve e sente. Parece óbvio, mas não o é tanto, só o permitiria um domínio excepcionalmente seguro da linguagem a utilizar, e ele tem-no. De Enric González não era leitor. Via as suas colunas no El País, mas a minha curiosidade não era bastante forte para me levar a integrar os seus escritos na minha leitura habitual. Até ao dia em que me veio às mãos o seu livro Historias de Nueva York. A palavra deslumbramento não é exagerada. Livros sobre cidades são quase tantos como as estrelas no céu, mas, que eu conheça, nenhum o é como este. Julgava eu que conhecia satisfatoriamente Manhattan e os seus arredores, mas a dimensão do meu engano tornou-se-me clara logo às primeiras páginas do livro. Poucas leituras me deram tanto prazer nestes últimos anos. Tome-se este breve texto como uma homenagem e uma manifestação de gratidão a dois excepcionais jornalistas que são, ao mesmo tempo, dois notáveis escritores.
José Saramago, O CADERNO

Eira do Serrado, Curral das Freiras, 26 de Agosto de 1980


Eira do Serrado, Curral das Freiras, 26 de Agosto de 1980 – Escreveu Nietzsche que para amar o abismo é preciso ter asas. Eu diria que basta apenas ser homem. Mas madeirense…

sábado, 25 de agosto de 2012

Dia 25 [Agosto de 2009]


Jogo sujo
Jovem e ingénuo era quando há muitos, muitíssimos anos, alguém me convenceu a fazer um seguro de vida, sem dúvida do mais rudimentar que então se praticaria, vinte contos que me seriam entregues passados vinte anos no caso de não ter morrido, claro está, não ficando a companhia obrigada a prestar-me contas dos eventuais lucros do minúsculo investimento e suas aplicações e muito menos fazer-me participar deles. Ai de mim, porém, se não pagasse os prémios respectivos. Nessa época, os vinte contos eram muito dinheiro para mim, necessitava trabalhar quase um ano para ganhá-los, e portanto fizeram-me bom arranjo quando mos pagaram, mas o que não pude foi evitar um desagradável sentimento de desconfiança que me dizia, e insistia, que eu havia sido prejudicado, embora não soubesse exactamente como. Nessa altura não era só a chamada letra pequena que nos enganava, a própria letra grande já era um punhado de poeira atirada aos olhos. Eram outros tempos, a gente comum, na qual eu me incluía, sabia pouco da vida e mesmo esse pouco de pouco lhe servia. Quem se atreveria a discutir, já não digo com o actuário, mas com o próprio angariador de seguros, que tinha a lábia toda? Hoje já não é assim, perdemos a inocência e não fugimos a discutir com a maior das convicções até mesmo aquilo de que só temos uma pálida ideia. Que não nos venham pois com histórias, bem te conheço, ó máscara. O mau é que se as máscaras mudam, e mudam muitíssimo, o que está por baixo delas mantém-se inalterável. E nem sequer é certo que tenhamos perdido a inocência. Quando Barack Obama, no calor da campanha para a presidência, anunciou uma reforma sanitária que permitisse proteger os 46 milhões de norte-americanos não abrangidos pelo sistema em vigor para os restantes, isto é, aqueles que, directa ou indirectamente, pagam os seguros respectivos, esperávamos que uma onda de entusiasmo varresse os Estados Unidos. Tal não sucedeu e hoje sabemos porquê. Mal se iniciaram os trâmites que levarão (levarão?) ao estabelecimento da reforma, o dragão despertou. Como escreveu Augusto Monterroso: o dinossauro ainda estava ali. Não foram só as cinquenta companhias de seguros norte-americanas que controlam o actual sistema a abrir fogo contra o projecto, fê-lo também a totalidade dos senadores e deputados republicanos, e igualmente um apreciável número de representantes democratas, quer no congresso quer no senado. Nunca como neste caso a filosofia prática dos Estados Unidos esteve tão à vista: se não és rico, a culpa é tua. São 46 milhões os norte-americanos que não têm cobertura sanitária, 46 milhões de pessoas que não têm dinheiro para pagar seguros, 46 milhões de pobres que, pelos vistos, não têm onde cair mortos. Quantos Barack Obama ainda vão ser necessários para que o escândalo termine?
José Saramago, O CADERNO

Funchal, 25 de Agosto de 1980

Funchal, 25 de Agosto de 1980 – Cá estou de novo, depois dum salto que juntou numa só duas aflições. A que sentia no Algarve e a que sinto aqui. Guardião mico da identidade nacional, padeço tormentos sempre que a vejo ameaçada. E em ambos os sítios isso acontece. Chega a meter raiva. Nos lugares cosmopolitas lá de fora, nenhuma invasão estrangeira altera o perfil nativo. Veneza é a mais italiana das terras italianas. Nas nossas estâncias turísticas, pelo contrário, o alheio sobrepõe-se de tal modo ao caseiro que o configura. É um mimetismo trágico, que nos põe a falar, a pensar e a sentir como o invasor. Sei que há uma eternidade na criatura para além de todas as circunstâncias exógenas. Os pescadores de Câmara de Lobos ou de Lagos, como tais, hão-de ter sempre a mesma têmpera de homens do mar. Mas gosto mais deles com os estigmas portugueses bem à vista. Dão-me outras garantias de irmandade.

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

As águas da biodiversidade


Biodiversidade? O tradutor hesitou. O esgar no rosto traduzia o esforço para encontrar no léxico do xironga um equivalente para biodiversidade. Traduziu por elefantes. Depois, emendou: os bichos. Sentados no chão, os camponeses não disfarçaram a desconfiança. Fossem elefantes, fosse bicharada o assunto merecia um pé atrás. Então, e as pessoas? O tradutor encontrou ali uma saída e disparou: sim, as pessoas, os bichos, a terra, tudo isso em conjunto. E reforçou as palavras com um gesto fechado e redondo.
Era a mensagem que trazíamos para a gente de Machangulo. O lugar fica próximo de Maputo, a não mais de uns cinquenta quilómetros. Mas a vida ali decorre não apenas longe da capital. Decorre num outro mundo. Esse outro mundo, ali mesmo na ilharga da grande cidade de Maputo, é uma das regiões menos desenvolvidas do país. Estradas há poucas, escolas pouquíssimas, postos de saúde quase nenhum. Na ausência completa de transportes, os camponeses percorrem a pé distâncias incalculáveis. O centro de gravidade das suas vidas não é realmente a capital. Nem é dentro de Moçambique. Eles olham para o Sul, para a Africa do Sul, para o Kwazulu-Natal. É lá que vendem produtos, é lá que vão buscar trabalho. É de lá que vieram os seus antepassados aquando das migrações nguni. Muitos falam zulu, poucos falam português.
A reunião em que participei fazia parte de um trabalho longo para elaborar o plano de gestão do distrito de Matutuíne, a região mais meridional da costa de Moçambique. Lá no extremo Sul, brilha as Pontas do Ouro, de Mamoli e de Malongane. Depois, mais nada brilha. Ou brilha apenas numa outra, mais oculta, dimensão. E lá estávamos nós, biólogos e outros, tentando trazer para o papel a infinita complexidade daquele quotidiano. O nosso desafio maior era encontrar na biodiversidade razões para começar programas geradores de riqueza, pontes com a modernidade. De modo a que a tal biodiversidade transitasse de conceito para semente. E, no final, germinasse isso que se chama de desenvolvimento.
Os especialistas, vindos de Maputo, olhavam para o calendário, com a angústia do tempo. Os experts, como gostam de ser chamados, estão sempre cheios de pressa. A mim, deleitavam-me os intervalos do trabalho. Sentado na margem de uma das muitas lagoas, numa dessas longas tardes, não dei conta do entardecer. Eu estava como que embriagado pela extraordinária beleza do local. As dunas cobertas de um verde intenso simulavam um oceano imóvel. O fundo dos vales almofadava a dormência de lagoas de cores diferentes. Van Gogh estaria aqui mais sentado do que eu. E produzindo mais. E aqui, em Matutuíne, que mora uma das regiões mais ricas de Moçambique. Rica em diversidade de espécies e afortunada em paisagens que capricham com o mar em espelho.
Nessa tarde, deixo-me amolecer na preguiçosa sensação de princípio do mundo, como se por detrás daquelas dunas ainda estivessem chegando os deuses para criar o Universo. Os deuses não teriam nem a pressa nem o ar solene dos consultores da capital? O meu lugar não estaria, afinal, tão longe do divino. Para a população local, aquela lagoa era sagrada. Ali era interdito pescar. Nas suas margens, todos os anos, no início de Fevereiro, se bebia ucanhu, a bebida fermentada que celebra as colheitas.
O som metálico de panelas chocalhando me despertou. O que se passava? Mulheres e homens pareciam apostados em desfazer a tranquilidade. E estavam. Produziam barulho para afugentar os hipopótamos. Ainda os vi, pachorrentos, parados no capinzal a avaliar os riscos de se aventurarem nas machambas dos camponeses. Um dos homens aproximou-se de mim. Trazia na mão folhas secas de palmeiras com as quais ia ateando pequenas fogueiras. Panelas e fogo se reforçavam no serviço de afastar os paquidermes. O homem aproveitou o momento e atirou-me:
Está a ver? Ainda vocês chegam aqui para proteger bichos…
Não respondi. Seria de pouca valia a minha argumentação. De pouco valeria dizer que animais e pessoas podem combinar modos de conviver e produzir vantagens recíprocas. O camponês escutaria com a habitual educação e a paciência de milénios. Mas, interiormente, ele permaneceria ancorado nas suas razões. O que precisamos são exemplos, modelos práticos que comprovem como as ideias funcionam. E esses modelos custam tempo. Os consultores não possuem tempo.
Na manhã seguinte, despertei com a luz do Sol. Do ponto alto em que montara a minha tenda, podia ver-se água pelos dois lados. Do lado interior, as águas paradas da baía de Maputo, com a ilha da Inhaca e o amplo estuário do rio Maputo. Do lado exterior, o infinito do Índico, com seus azuis mais profundos. Dirigi-me ao edifício onde prosseguia o nosso encontro, quando alguém me avisa que a biodiversidade passou por ali de madrugada. «A biodiversidade?», perguntei. Responderam risos. Tinham sido os elefantes, essa enorme manada que sobreviveu à guerra e à caça furtiva. Estão ali desde sempre, renovando o chamado Corredor do Fúti que os liga à vizinha África do Sul. Uma das intenções dos governos moçambicano e sul-africano é proteger esta antiga rota e fazer dela um dos focos de atracção para as zonas de conservação transfronteiriças. O não haver quase nada na região é, sem dúvida, uma condição negativa. Mas pode ser convertida no seu oposto. A baixíssima densidade populacional, a ocorrência de florestas dunares intactas, de vegetação única e as potencialidades para a fauna são razoes que fazem acreditar no futuro do lugar. Há alguns anos atrás, um cientista sul-africano de renome internacionaI, Braham van Wyk, visitou e estudou esta mesma região. Os sul-africanos chamam a zona de Maputaland. Fascinado pela riqueza biológica, Van Wyk propôs que Maputaland fosse proclamada como Zona de Endemismo de interesse mundial. O nome da região passou a figurar em tudo o que é literatura de biodiversidade.
Os habitantes de Matutuíne não conhecem a palavra. Mas sabem bem o que é biodiversidade. Não se trata de um conceito. Eles vivem à custa da biodiversidade. Sobrevivem nesse recanto, tão próximo e tão distante. Falta criar essa ponte que quebre o histórico isolamento. Mas que seja uma ponte que leve e traga na mesma proporção. E não mais uma dessas pontes feitas para tirar tudo e não dar nada.
(Abril de 2004)
Mia Couto