sexta-feira, 10 de maio de 2013

10 – Maio (quinta). [1990]

Esta onda de descrédito e insulto contra Heidegger é de dar urros. Admitamos que ele foi nazi, mesmo para lá do tempo que ele diz (e se confina aos dez meses de reitorado, creio), mesmo que se tenha prolongado até ao fim da vida. Muito bem. E que é que se segue daí? Segue-se daí que ele aceitou, expressa ou tacitamente, os crimes de Hitler. Dos que aceitaram os crimes de Estaline, como atrás anotei, ninguém pia. Quem cobriu de opróbrio um Éluard que aprovou o esmagamento húngaro? Quem cobriu de cuspo a memória de Neruda, que foi estaliniano até ao fim? Quem cobriu de lama esse pintor mexicano que colaborou no assassínio de Trotski? Acabou-se. Mas como também anotei, o problema agora, em face da obra de Heidegger, é saber se ela se enleia como tal no nazismo. É claro que não é difícil meter nela, como na de qualquer outro, como na Bíblia, entrando-lhe de joelho, afinidades com o que se quiser, e para isso é que existe a dialéctica, ou seja a arte de provar que o pau é pedra. Mas eu falo é de uma leitura inocente ou desprevenida. Bom. Assunto arrumado. Acontece, porém, que por não sei já que razão, retomei o Crepúsculo dos Deuses de Nietzsche. Como é que os que atacam Heidegger possivelmente se banham deliciados na filosofia deste «reacionário» defensor do instinto contra a razão, deste racista que exalta a raça ariana (já então!) contra os judeus e aí o cristianismo que é um rebento judaico? Muito pelo contrário, Nietzsche é proclamado com Freud e Marx (dois judeus – se ele o não foi também…) a Santíssima Trindade do nosso século. Então como é? Heidegger foi presumivelmente consentâneo com o nazismo – e leva poucas. Nietzsche foi expressamente racista e nazi «avant la lettre», naturalmente) e é o Pai ou o Filho ou o Espírito Santo da Divindade do século. Eu cuspo no racismo e basófia megalómana do Nietzsche. Mas admiro-lhe muitas coisas, entre elas a liberdade da «dança», a dissipação de uma clássica maneira de se existir em filosofia. O que me revolteia o estômago é a estupidez desafrontada dos imbecis que cascam no Heidegger e pegam ao colo no Nietzsche. Deitem-nos ambos ao caixote e lavem as mãos. Mas não. E a explicação é simples. É que dizer mal de Heidegger até fica bem, porque mora aqui ao lado e perdemos-lhe o respeito. E o outro mora já lá no alto e fica mal neste caso no respeito próprio faltar ao alheio. Arre – que é o que se diz aos jumentos.
*
Sentado no sofá do escritório, que é o sítio mais plausível de eu ser gente, porque as pernas me custam a transportar, sobretudo se não há motivo que puxe por elas, o que vejo à minha roda é uma muralha de livros. Aqui em Lisboa a janela, que está depois da marquise, dá para o cimento dos prédios e o ruído da avenida. Em Fontanelas dá para os pinheiros e o silêncio da Natureza. Entre as duas equilibro a minha dificuldade de ser. Porque o barulho é de mais para o meu sossego dos nervos. E o silêncio é de mais para o meu funcionamento das ideias. E é por isso que o melhor sítio de eu estar é na viagem incessante de um lugar para o outro. Ou seja na fuga donde devesse poder estar.

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