segunda-feira, 13 de maio de 2013

13 – Maio (domingo). [1990]

Como a Terra está cada vez mais pequena, inventou-se a CEE para fazer da Europa o mais possível um só país. Como sonhou, aliás, já Napoleão, ao que narra Las Cases. E como isso obriga a um maior convívio, os jovens, para seu treino, permutam com outros de diferentes nacionalidades. E como isso obriga a uma programação desse treino, os jovens começam por outros de terras diferentes e diferentes ambientes familiares. E foi assim que o Pedro foi passar o fim de semana com uma família de Santarém e veio de Santarém uma miúda passa-lo a casa do Gilo. Dado o que Gilo passeou a miúda por Lisboa e hoje, depois do almoço na Casa do Alentejo, fomos todos à Ajuda ver a exposição de D. Luís. Deve tejo, tomos todos à Ajuda ver a exposição de D. Luís. Deve ter-se motivado essa exposição, ao que suponho, no centenário da morte desse rei. Ora bem, por essa exposição fiquei a saber do monarca várias coisas que não sabia, das suas habilidades culturais e artísticas. Por exemplo, fiquei informado de que a augusta personagem aprendera coisas várias, entre elas o grego clássico ensinado pelo Viale, tocava violoncelo e compusera mesmo uma certa porção de música. Seria interessante que se desse num concerto alguma dessa música para a gente ficar com uma ideia do que era o seu génio criador. Mas o que mais me impressionou na exposição foi mais uma vez essa arrepiante presença de nós próprios no que foi há cem anos uma realidade banal de se estar vivo. Lá vimos retratos e mesmo fotografias da família real, portuguesa e não só, como a da rainha Vitória que, quando jovem, não era nada de se deitar ao lixo, mesmo histórico. E a D. Maria II, que fora rainha para fabricar filhos em cadeia de produção, um monstrozinho depois de mais graúda, era em jovem de razoável apetite. E o augusto rei D. Fernando, amante de artes e letras, que sucedeu a um outro vindo da mesma origem europeia, que só se aguentara um mês ou dois, lá estava também garboso, marcado visivelmente para fabricar filharada em casa própria ou alheia. D. Maria morreu jovem para a nossa contabilidade de vidas. E o marido, viúvo ainda funcional, lembro-me de ter lido que casou com uma jovem actriz ou coisa que o valha, que veio a morrer longeva já no meu tempo de estar vivo. Mas essa não figurava no mostruário, que era todo real. E com os retratos da realeza toda, havia os documentos escritos como o consentimento do rei italiano ao casamento de sua filha com o D. Luís – que subiu a rei pela roleta da sorte que levou o irmão Pedro e a mulher Estefânia ainda jovens e sem produção. E tudo isto me impressionou justamente porque no inconfessável de nós, todos mais ou menos achamos inverosímil que o mundo real não tivesse começado apenas connosco. Mas começou. E a prova estava ali naquela vida toda bem explicada e documentada em textos, retratos, objectos, mesmo os das ninharias quotidianas. Falta agora que nós sejamos o passado inverosímil para os que vierem depois, Mas será isso também verosímil? Será verdade para eles que nós tivéssemos existido? Será verdade para nós que eles venham a existir? Tenho de fazer um esforço para admitir que sim.
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Como o Gilo tinha de levar a miúda à camioneta para Santarém, deixou-nos numa entrada do metro. Como, aliás, ele se nos escapava, tive de fazer um sprint (de «dar uma travada», como se diz em Melo) – e apanhámo-lo. Corres ainda bem, diz-me a Regina, e eu senti-me sublimado de atletismo. Mas sentados nos nossos lugares, vimos ao lado uma velha louca que cantava. Cantava por sobre o ruído do metro e assim a sua loucura era mais forte do que a técnica do nosso transporte. De súbito, porém, calou-se e eu pude olhá-la melhor. Levava um chapéu de palha com uma flor vermelha como a glória. E mascava interminavelmente o seu vazio. De vez em quando parava de mascar e Goya vinha logo copiar-lhe a boca para uma sua gravura. Eu fitava-a sempre, fascinado pela sua loucura, que me é sempre terrível e fascinante. E a Regina dizia-se confrangida de mal-estar. Eu observei-lhe apenas que o mais extraordinário é não haver ainda mais loucos, pelo infinitesimal e delicado e incrível complexo de um cérebro humano. E como é assim miraculoso que essa complexidade de vertigem se não escangalhasse mais facilmente. Mas nem eu nem ela nos impressionámos com a observação. E continuámos toda a viagem a fitar a velha louca, fascinados como os antigos, pelo terror que vinha dela como de uma força terrível e sobrenatural.

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