Como a Terra está
cada vez mais pequena, inventou-se a CEE
para fazer da Europa o mais
possível um só país. Como sonhou, aliás, já Napoleão, ao que narra
Las Cases. E como isso obriga a um maior convívio, os jovens, para seu treino,
permutam com outros de diferentes nacionalidades. E como isso obriga a uma
programação desse treino, os jovens começam por outros de terras diferentes e
diferentes ambientes familiares. E foi assim que o Pedro foi passar o fim de semana
com uma família de Santarém e
veio de Santarém uma miúda passa-lo a casa do Gilo. Dado o que Gilo passeou a
miúda por Lisboa e hoje, depois do almoço na Casa
do Alentejo, fomos todos à Ajuda ver a exposição de D. Luís. Deve tejo,
tomos todos à Ajuda ver a exposição de D. Luís. Deve
ter-se motivado essa exposição, ao que suponho, no centenário da morte desse
rei. Ora bem, por essa exposição fiquei a saber do monarca várias coisas que
não sabia, das suas habilidades culturais e artísticas. Por exemplo, fiquei
informado de que a augusta personagem aprendera coisas várias, entre elas o
grego clássico ensinado pelo Viale, tocava violoncelo e compusera mesmo uma
certa porção de música. Seria interessante que se desse num concerto alguma
dessa música para a gente ficar com uma ideia do que era o seu génio criador.
Mas o que mais me impressionou na exposição foi mais uma vez essa arrepiante
presença de nós próprios no que foi há cem anos uma realidade banal de se estar
vivo. Lá vimos retratos e mesmo fotografias da família real, portuguesa e não
só, como a da rainha Vitória que,
quando jovem, não era nada de se deitar ao lixo, mesmo histórico. E a D. Maria II, que fora
rainha para fabricar filhos em cadeia de produção, um monstrozinho depois de
mais graúda, era em jovem de razoável apetite. E o augusto rei D. Fernando,
amante de artes e letras, que sucedeu a um outro vindo da mesma origem
europeia, que só se aguentara um mês ou dois, lá estava também garboso, marcado
visivelmente para fabricar filharada em casa própria ou alheia. D. Maria morreu
jovem para a nossa contabilidade de vidas. E o marido, viúvo ainda funcional,
lembro-me de ter lido que casou com uma jovem actriz ou coisa que o valha, que
veio a morrer longeva já no meu tempo de estar vivo. Mas essa não figurava no
mostruário, que era todo real. E com os retratos da realeza toda, havia os
documentos escritos como o consentimento do rei italiano ao casamento de sua
filha com o D. Luís – que subiu a rei pela roleta da sorte que levou o irmão Pedro e a mulher Estefânia
ainda jovens e sem produção. E tudo isto me impressionou justamente porque no
inconfessável de nós, todos mais ou menos achamos inverosímil que o mundo real
não tivesse começado apenas connosco. Mas começou. E a prova estava ali naquela
vida toda bem explicada e documentada em textos, retratos, objectos, mesmo os
das ninharias quotidianas. Falta agora que nós sejamos o passado inverosímil
para os que vierem depois, Mas será isso também verosímil? Será verdade para
eles que nós tivéssemos existido? Será verdade para nós que eles venham a
existir? Tenho de fazer um esforço para admitir que sim.
*
Como o Gilo tinha
de levar a miúda à camioneta para Santarém, deixou-nos numa entrada do metro.
Como, aliás, ele se nos escapava, tive de fazer um sprint (de «dar uma travada», como se diz em Melo) – e apanhámo-lo.
Corres ainda bem, diz-me a Regina, e eu senti-me sublimado de atletismo. Mas
sentados nos nossos lugares, vimos ao lado uma velha louca que cantava. Cantava
por sobre o ruído do metro e assim a sua loucura era mais forte do que a
técnica do nosso transporte. De súbito, porém, calou-se e eu pude olhá-la
melhor. Levava um chapéu de palha com uma flor vermelha como a glória. E
mascava interminavelmente o seu vazio. De vez em quando parava de mascar e Goya
vinha logo copiar-lhe a boca para uma sua gravura. Eu fitava-a sempre,
fascinado pela sua loucura, que me é sempre terrível e fascinante. E a Regina
dizia-se confrangida de mal-estar. Eu observei-lhe apenas que o mais
extraordinário é não haver ainda mais loucos, pelo infinitesimal e delicado e
incrível complexo de um cérebro humano. E como é assim miraculoso que essa
complexidade de vertigem se não escangalhasse mais facilmente. Mas nem eu nem
ela nos impressionámos com a observação. E continuámos toda a viagem a fitar a
velha louca, fascinados como os antigos, pelo terror que vinha dela como de uma
força terrível e sobrenatural.
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