Hoje
de manhã, saía eu da piscina a caminho do autocarro, vem de lá uma gaivota em voo rasante e
acerta-me com um ovo mole na testa. Mesmo em cheio, zás!, entre os olhos.
Deixou-me num Cristo, a grande vaca.
Antigamente
as gaivotas não se afastavam muito do mar. Hoje em dia invadem a cidade. Já me
explicaram o fenómeno. Vêm ao cheiro de cevadoiro gratuito. Andam aí pelas
praças e jardins umas velhas solitárias a entreter os ócios e a solidão
atirando comida aos pombos. As gaivotas depressa descobriram o maná. E agora
não querem outra vida. Vão lá para o mar, que foi para isso que Deus as criou.
Agora na cidade, a bombardearem o incauto cidadão à saída das piscinas? É
preciso descaramento!
Praga
maior do que a das gaivotas, só a dos pombos. São aos milhares e emporcalham
tudo. Não há monumento que resista a tanto dejecto. Embirro com os pombos.
Metem-se-nos nas pernas, sempre arrufados, gosmentos, a arrastar a asa à fêmea:
gu, gu, gu. Uns tinhosos. Estou mesmo agora a ouvi-los nas cornijas dos prédios
do outro lado da rua: corru-gu-cu, corru-gu-cu, corru-gu-cu. Não se calam um
momento. Que saudades me fazem das rolas da minha terra.
O
arrulho das rolas da minha
terra tem outra música, outra suavidade, outra poesia. Um cristão ouve uma rola
a carpir amores empoleirada numa bétula e sente-se transportado das amarguras
deste vale de lágrimas às alegrias do sétimo céu. Porque será que no Porto se
não ouvem as rolas? Nem as rolas nem muitas outras aves da minha terra e da
minha predilecção: o cuco, o mocho, a poupa, a andorinha, o gaio, a parpalhás, o estorninho, o peto-real, a cotovia.
De
todas as aves canoras da minha terra, daquela de que eu mais gosto é da
cotovia. É um prazer antigo, vindo lá dos confins da minha longínqua infância.
Dos tempos em que meu pai me obrigava a ir tornar a água ao lameira e eu lhe
dizia que tinha medo.
– Eu
tiro-to – respondia ele.
E
ameaçava-me com dois pontapés nos fundilhos para eu ir mais leve. E eu lá ia,
rua abaixo, calhelha fora, a rapar a chinela e a maldizer a porca da vida.
Chegava a uma chã de mato maninho interposta entre as terras de cultivo e os
lameiros do vale, ouvia as cotovias, esquecia o medo e as ameaças e por ali
ficava horas esquecidas a olhar para elas. Elevavam-se na vertical, asas numa
roda-viva, suspensas do firmamento por um fio melódico, chirriuchiu, riu, chiuchiu,
até ficarem reduzidas a um pontinho minúsculo na abóbada celeste. De repente
partia-se-lhes a corda e caiam, também na vertical, asa morta em para-quedas, a
esconder-se entre as carquejas. Mas logo outra se elevava, e, atrás desta uma
segunda, depois uma terceira, uma quarta, dúzias delas. E todo o vale se
transformava numa caixinha de música deliciosa, angelical, apaziguadora. Eu
delirava com aquilo.
Se
um dia entrar em depressão, não me levem ao psiquiatra. Levem-me para os montes
da minha terra, ao cair da tarde, e deixem-me lá a ouvir as cotovias. Eu lhes
garanto que, ao pôr-do-sol, estarei curado.
Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS II
– Crónicas de Barroso (p. 57 e s.)
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