sábado, 18 de maio de 2013

Luanda, 18 de Maio de 1973


Revolvo-me insofrido na cama escaldante, a registar, ainda atordoado, as primeiras impressões de um cometimento a que eu próprio não consigo encontrar clara motivação. Nascido de um impulso irreflectido, nele se conjugam certamente forças mais poderosas do que as da minha consciência. O poeta é o mandatário de muitas vontades ocultas, o vector de variados tropismos insuspeitados. O sentimento obscuro de que não podia ser protelado por mais tempo um encontro há largos anos apetecido e a crepuscular premonição de um adeus eterno talvez não sejam descabidos na crónica desta aventura que de tão longe me trouxe e tantas resistências me obrigou a vencer. Fisiológicas até. Mas venci-as, e aqui estou ao cabo de oito horas de pavor e deslumbramento que tiveram fim numa espécie de baque da alma. Angola! Não foi certamente a mesma emoção que sentiu um mareante de quinhentos ao pisar estas paragens, mas quase. Dentro de mim ressoavam mil alvoroços, a par de cavos sussurros menos solares. Apenas o avião descolou, uma bisarma que parecia um comboio aéreo, depois de dar voltas na cadeira como os cães na palha do ninho fresco, tentei ler, ouvir música, ver cinema e, finalmente, imitar os restantes passageiros e dormir. Qual o quê! Não se distrai facilmente o espírito empenhado numa descoberta tão medularmente necessitada, e muito menos o instinto de conservação vigilante. Numa angústia progressiva, resolvi então, a pretexto de me documentar — os ardis a que recorre a razão impotente! —, arranjar maneira de subir à cabine de comando. Ali, ao menos, teria a confortável ilusão de participar na lucidez do voo. E lá consegui penetrar no santuário, um cochicho no focinho do aparelho, forrado de computadores, onde três autómatos observavam agulhas, interpretavam sinais, interpelavam em código ouvintes distantes. Meti conversa, fiz perguntas e considerações, citei Saint-Exupéry, mal lembrado de que estava a tratar com heróis de outra era, que viam o mundo de dez mil metros de altura, desapaixonadamente, neutramente, sempre a cumprir instruções e raramente a tomar decisões. De tal maneira desumanizados que acabei por me esquecer também da minha própria humanidade. Sem dar por isso, fui perdendo a noção do risco que constantemente nos ameaçava – a fluidez do espírito a sobrepor-se à força da gravidade –, e acabei por vogar sem reticências terrenas e medidas temporais num céu de estrelas que lembrava um pomar azul com frutos doirados quase ao alcance da mão. «Neste momento sobrevoamos as Canárias…». «Agora atravessamos o golfo da Guiné…». «Agora…». Parecia uma ficção. Quando o monstro mecânico, numa leveza de pena, tocou o rectângulo negro que traços de luz balizavam, até me envergonhei do romantismo pretérito do meu terror. Saí então daquele espaço reservado e condicionado, onde nem o medo natural era legítimo, e respirei o ar livre das contingências. Um ar quente, húmido, pesado, pegajoso, que se me colou instantaneamente ao corpo como um grude invisível e me trouxe à pele a lembrança esquecida do Brasil. O bafo escaldante de uma terra onde sei que estou, de que já vi sinais concretos, e que só através desta respiração morna e pastosa me parece real.

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