Gasto a língua
a tentar meter no entendimento de alguns interlocutores de boa fé a lógica
desta revolução que nos tocou pela porta. Fruto de frustrações variadas, não é
no acesso aos altos segredos da governação, nem na expressão oficial do Diário do Governo que se pode
descortinar o seu perfil. É ao nível da mesa de jogo, do café ou do botequim
que o desconcertante discurso, o insólito decreto, a entrevista disparatada, o
hirto comunicado encontram sentido. É o espanto, o deslumbramento, o aplauso, o
despeito ou o pavor do vizinho, da amante, do camarada, do amigo ou do inimigo
que cada decisão visa conseguir sem dar por isso. O país real, o povo concreto,
as suas necessidades tangíveis, o seu futuro, pouco ou nada contam para os que
legislam pelo desvanecimento de legislar, que falam pelo prazer de se ouvir,
que agem pela descontracção de agir. Revolução singular, na verdade, não por
ter encontrado soluções originais para os problemas que nos afligem, mas por
ser mais psicológica do que sociológica. Cada comparsa que nela figura apenas
se representa a si mesmo. Em vez da modificação do panorama social, procura
meramente no acto revolucionário a sublimação da sua própria imagem.
Miguel Torga
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