quarta-feira, 15 de maio de 2013

Coimbra, 15 de Maio de 1975

Gasto a língua a tentar meter no entendimento de alguns interlocutores de boa fé a lógica desta revolução que nos tocou pela porta. Fruto de frustrações variadas, não é no acesso aos altos segredos da governação, nem na expressão oficial do Diário do Governo que se pode descortinar o seu perfil. É ao nível da mesa de jogo, do café ou do botequim que o desconcertante discurso, o insólito decreto, a entrevista disparatada, o hirto comunicado encontram sentido. É o espanto, o deslumbramento, o aplauso, o despeito ou o pavor do vizinho, da amante, do camarada, do amigo ou do inimigo que cada decisão visa conseguir sem dar por isso. O país real, o povo concreto, as suas necessidades tangíveis, o seu futuro, pouco ou nada contam para os que legislam pelo desvanecimento de legislar, que falam pelo prazer de se ouvir, que agem pela descontracção de agir. Revolução singular, na verdade, não por ter encontrado soluções originais para os problemas que nos afligem, mas por ser mais psicológica do que sociológica. Cada comparsa que nela figura apenas se representa a si mesmo. Em vez da modificação do panorama social, procura meramente no acto revolucionário a sublimação da sua própria imagem.
Miguel Torga

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