domingo, 29 de dezembro de 2013

Crise Securitária

Correio da Manhã - 28 Dezembro 2013 - 21h33

Sentir o Direito
A crise e o desespero social não têm produzido um efeito multiplicador da criminalidade
A crise e o desespero social não têm produzido, aparentemente, um efeito multiplicador da criminalidade. Em Portugal, à imagem do que acontece noutros países caídos em recessão, as estatísticas oficiais têm revelado uma diminuição da criminalidade, incluindo a violenta. Os homicídios, cujo número subiu, representam a principal exceção a esta tendência.
Duas inquietações irrompem neste contexto. Por um lado, é necessário averiguar se as estatísticas encontram alguma explicação conjuntural, escondendo, por exemplo, variações das "cifras negras". Por outro lado, é preciso compreender se esta evolução comprova uma adequação da política criminal seguida nos últimos anos à realidade da criminalidade atual.
Os fenómenos de deslocalização podem explicar picos de criminalidade. A instalação de sistemas de videovigilância ou a reabilitação de bairros frequentados por delinquentes não eliminam, por si só, a criminalidade – afastam-na. E o aumento da criminalidade pode estar associado à previsão de novos crimes e a uma maior intolerância na perseguição de outros.
Pelo contrário, a crise e a recessão não determinam, necessariamente, o aumento dos crimes contra a propriedade. Os estudos criminológicos publicados por David Cantor e Keneth Land, em 1985, referentes à evolução registada nos Estados Unidos após a II Grande Guerra, revelam que a subida da taxa de desemprego não implica o aumento da criminalidade.
Tal como vaticinei, nas páginas do CM, em 2010, pode haver menos bens em circulação e uma consequente redução das oportunidades de praticar o crime num contexto recessivo. A explosão do consumo, diferentemente, conduz a um aumento dos crimes contra a propriedade, como aconteceu na Europa do pós-guerra ou, entre nós, após o 25 de Abril.
Mas a questão fundamental que a redução da criminalidade suscita é a justificação das políticas securitárias. Aumentar as penas, restringir a liberdade condicional, investir em mais prisões e reforçar as polícias parece ter perdido, de repente, o sentido. O discurso securitário de há alguns anos atrás, apoiado no sentimento de (in)segurança, não tem fundamento.
Como nada mudou de significativo na política criminal, perguntar-se-á se a redução da criminalidade não justificará, afinal, uma reorientação dos esforços para a reinserção social e para outras áreas preventivas do sistema. Os frutos da política criminal aferem-se a médio e longo prazo e é desta reorientação que vai depender a redução da criminalidade no futuro.

Fernanda Palma, Professora catedrática de Direito Penal

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Coimbra, 27 de Dezembro de 1977.


SÍSIFO

Recomeça…
Se puderes,
Sem angústia e sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro,
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.

E, nunca saciado,
Vai colhendo
Ilusões sucessivas no pomar.
Sempre a sonhar
E vendo,
Acordado,
O logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças.

Miguel Torga, DIÁRIO (XIII)

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

PROVAVELMENTE NATAL

Há algo de cerimonioso no Natal que irrita e seduz: a iconografia kitsch, a simbologia (no entanto vasta: um deus nascendo, menino, entre os homens e, ao mesmo tempo, um homem nascendo humanamente entre os deuses, um vértice vertiginoso em que, por um momento, divindade e humanidade se tocam) reduzida à extrema literal idade por séculos de púlpito, o comércio dos presentes.
E o melancólico ritual das crónicas natalícias. Em mais de trinta anos de jornais, devo ter escrito, pelo menos, duas dúzias delas. E de todas as vezes me sentei diante da máquina de escrever (agora diante do insondável écran do computador) com a inquieta sensação de ter sido, também eu, apanhado (e como poderia não o ser?) numa amável armadilha.
Rubem Braga repetiu uma vez no Cruzeiro uma crónica que já publicara antes, justificando-se com a desconcertada circunstância de Van Gogh não ter pintado os Girassóis (cito de cor, os exemplos podem ter sido outros) para serem olhados apenas uma vez, nem Beethoven composto a Pastoral para uma única audição. Fosse eu Rubem Braga e, provavelmente, escreveria hoje, de novo, uma crónica já longínqua intitulada «Os dois natais». Assim resta-me a memória.
Porque tudo é memória. Alguém – talvez eu, mas quem? – lembrando-se de mim. A mãe, na cozinha, fazia os fritos e eu punha a mesa. Do candeeiro da sala pendiam fitas douradas e estrelas de papel de lustro e tínhamos colocado raminhos de azevinho nos espelhos do louceiro. No presépio, minuciosamente construído com musgo, serradura, algodão em rama, palhinhas, faltava o rei mago preto, que caíra e se quebrara no ano anterior, e, no seu lugar, avultava insolentemente, por birra do meu irmão mais novo, um jogador do Sporting, com bola e tudo!
Em que lugar o passado permanece imovelmente passado, passando para sempre? Quem, como num sonho, se lembra agora de tudo isto?
O Natal era então tempo de solidão. Uma brevíssima eternidade parava, sem eu saber, a meu lado, muito perto de mim, tão perto que quase podia tocá-la. E, contudo, ocultamente e culpadamente, como se pecasse, eu sentia-me infeliz sem motivo. Às vezes fechava-me no quarto a chorar em silêncio, até que a mãe vinha bater à porta chamando para o jantar. Depois, à meia-noite, abria um a um os coloridos embrulhos dos presentes, pressentindo confusamente que, ao recebê-los, os perdia para sempre. Da mesma forma inconcreta como o Natal e eu próprio nos perdíamos também.
Por alguma grande razão me recordo destas coisas. Ou se recordam elas de mim: a mãe, a sala, a toalha bordada sobre a mesa, o cão ladrando lá fora no quintal. Talvez, quem sabe?, seja preciso arrancar as raízes, «cortar a árvore, fazer uma cruz e levá-la às costas». Talvez seja preciso criar raízes na ausência de tudo. Mas para que?, para que?
Hoje sinto-me como um intruso nesse secreto Natal infantil passado. As minhas palavras perturbam o seu silêncio, o meu olhar cega-o, a minha memória afasta-o irremediavelmente de mim. Dele apenas imagens dispersas ficaram: fitas, estrelas, figurinhas de barro. O resto já não me pertence. Ou (como posso sabê-le?) pertence-me num sítio que já não me pertence. E onde não me é dado, nem às minhas palavras, alcançar.

Visão, 26/12/2002
Manuel António Pina

quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

OS DOIS NATAIS


O Menino Jesus, deitado, olhava em volta e não compreendia. Entrevia difusamente o rosto fatigado da mãe, o vulto de S. José mais atrás, os olhos grandes da vaca e do burro fitando-o. Chegavam-lhe de forma obscura o murmúrio das vozes e o cheiro dos animais; tinha frio. Via também, em qualquer sítio, como num sonho, rostos disformes, punhos, gente gritando, a enorme sombra de uma cruz, e não compreendia.
A dor, quando as mãos trémulas da mãe cortaram o cordão umbilical, o sabor do sangue dela na boca, as primeiras lágrimas, a primeira carícia, o corpo de Nossa Senhora, branco e transido, era tudo tão estranho! Um deus, sobre húmidas palhas, coberto de trapos, aprendia naquele instante coisas graves e essenciais: o frio, a dor, o mistério dos sentidos, o medo indistinto de algo que ainda não podia saber.
O deus transformara-se num frágil e confuso ser de sangue e de músculos, tocado por um dom extraordinário e novo, o da vida. Os pulmões do Menino enchiam-se de áspero ar, os olhos de incompreensíveis imagens do mundo vasto e profundo do estábulo, e o sangue corria violentamente nas suas veias, líquido e quente, ruborizando-lhe as faces. E quando os seus pequenos dedos afloraram pela primeira vez o rosto próximo da mãe, o deus aprendeu subitamente, com uma alegria desconhecida, qualquer coisa densa e maravilhosa inacessível aos deuses.
Por um singular milagre repetido, um homem igual aos outros homens jazia imensamente numa tosca manjedoura, no fim de uma longa viagem interior. Um homem condenado a viver uma tragédia absurda, como a de todos os outros homens, um homem solitário e ferido de brusca e humana vida, tocado pela glória extrema da transformação e da morte. Os seus olhos olhavam pela primeira vez tudo, incapazes talvez de compreender o íntimo desígnio divino que o movia. Em algum improvável lugar, no entanto, os deuses conheciam agora algo único e absoluto sobre os homens e sobre si mesmos.
Pelo segredo essencial da infância, da «balya», por onde passa o caminho dos homens para o reino dos céus, passava também, naquele dia distante, o caminho dos deuses para a terra dos homens. Um deus nascera entre os homens, mas um homem como todos os outros nascera igualmente entre os deuses. E enquanto no estábulo de Belém a mãe dava o peito ao menino deus, noutro estábulo, noutro sítio, Adão menino estendia os braços e chegava sem pecado aos ramos altos da árvore proibida.

Manuel António Pina - JN, 25/12/1984

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

S. Martinho de Anta, 24 de Dezembro de 1977

S. Martinho de Anta, 24 de Dezembro de 1977 – A braços com os meus fantasmas, que nunca deixam de estar presentes nesta data, vou atiçando o lume na lareira. É meu Pai, é minha Mãe, é meu Avô… Estão sentados a meu lado, calados, num recolhimento letal. Vieram porque eu vim, e como há muito me disseram tudo o quem tinha a dizer, fazem-me apenas companhia. É uma consoada suplementar, consecutiva à outra, mas silenciosa e abstinente, de que não compartilha o resto da família, que já dorme. A noite é comprida, e nenhum de nós tem pressa. E vamos deixando correr as horas sacrais, à espera da luz da manhã. Nela, eles regressarão discretamente ao mundo tranquilo dos mortos e eu acordarei estremunhado no mundo inquietante dos vivos. Até que outro Natal nos junte de novo, aqui ainda, unidos pela minha memória, ou lá onde os imagino lembrados de mim no eterno esquecimento.
Miguel Torga, DIÁRIO (XIII)

S. Martinho de Anta, 24 de Dezembro de 1976

S. Martinho de Anta, 24 de Dezembro de 1976 – São tantas da noite. Sentado à lareira, com o rádio aberto a transmitir os gorjeios de uma senhora que me parecem um comentário escarninho ao que escrevo, medito na minha vida, cada vez mais perto do fim. O que fiz e não fiz, o peso que tiveram em tudo quanto realizei literariamente, e até humanamente, esta paisagem e as sombras que a habitam, a distância a que fiquei da meta que me propus ou que as circunstâncias me iam propondo, a luta que travei para ser convivente até ao limite da dignidade, e como foram catastróficos certos desfechos afectivos. Poucos quiseram compreender que um poeta nem pode deixar de ser rebelde, nem ceder à tentação de se ver transformado em bandeira. Que o seu destino não é sentir-se identificado. Mas que, embora isolado do semelhante, não está obrigatoriamente separado dele. E que, faça o que fizer, fica sempre fora da expectativa dos outros e da sua própria. Tão desencontrado consigo mesmo, que só se encontra para se perder ainda mais.
E, a pôr destas achas na fogueira, aqui estou à espera que o Menino Jesus nasça e que o seu divino desamparo dê lenitivo ao meu. Só que ele tem mil Natais para recomeçar. E eu não.

DIÁRIO (XII), Miguel Torga

S. Martinho de Anta, 24 de Dezembro de 1975.


NATAL

Outro Natal.
Outra comprida noite
De consoada,
Fria,
Vazia,
Bonita só de ser imaginada.

Que fique dela, ao menos,
Mais um poema breve,
Recitado
Pela neve
A cair, ao de leve,
No telhado.

Miguel Torga: DIÁRIO (XII)

S. Martinho de Anta, 24 de Dezembro de 1973.


NATAL

Todos os anos, nesta data exacta,
Momentos antes
De fechar o cartório
De poeta
– Um registo civil ultra-real –,
O mago desse arquivo de presságios
Regista de antemão o mesmo nome
No seu livro de assentos:
– Jesus… – repete com melancolia,
A consumar a morte prematura
Do nascituro,
E a lamentar que a mãe, Virgem Maria,
Humana criatura,
Continue a ter filhos no futuro
Condenados à mesma desventura.

Miguel Torga, DIÁRIO (XII) 

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Ofélia e a eternidade


Quem amamos nasce antes de haver o tempo. Passou o tempo e Ofélia era ainda a única mulher no mundo. Eu a via passar na rua, afastava os cortinados e o universo ganhava súbita explicação. Ela parava no passeio, sentindo que estava sendo contemplada. Meus olhos a tornavam sagrada. E não havia palavra.
Passou o tempo mas a cintura dela se conservava menininha, convidando as mãos a circum-navegarem seu corpo.
– Você é linda, Ofélia.
Mas ela! Não eram essas as palavras que mexiam em sua alma.
– Diga que sou eterna – pedia.
Eu não era capaz de cumprir aquele pedido. Algum senão me desviava a voz. E nunca repeti tão solicitadas palavras.
Afinal, o destino nos separou. Único culpado dessa pequena morte: o tempo, esse animal que defeca memórias. Eu fui para a cidade, ela permaneceu onde sempre existira. No último momento, afastei a cortina e a vi sob a árvore. Saí para me despedir:
– Está apanhando sombra?
– Estou sendo sombra, eu.
Ela se entregava a enigmas, frases desfeitas. Anunciei:
– Vou para o litoral.
– Vai ver o mar?
– Certamente.
Antes de eu desaparecer ela me pediu outra vez. Não queria eu proclamar sua eternidade? Abanei a cabeça. Dessa vez até aceitei um esforço. Mas, debaldemente. Aquelas palavras me pareciam uma heresia, coisa demasiado excessiva. Eternidade é assunto divino. Mais sagrado que a morte.
Saí por anos. Foi mais a ausência que o afastamento. Regressei à pequena vila para a reencontrar. Ofélia já reeditara sua existência. Tivera seis filhos. Dois que já não constavam, vencidos por um correr das águas. Dizem. Naquelas mortes de seus meninos ela morrera também. Ela fora comeles. Para esse inominável lá.
– De lá já voltei ninguém – disse ela, pedindo desculpas de sua tristeza quando nos reencontrámos.
Atacada de incorrigível melancolia. Agora, ela se tinha toda convertido em sombra. E nenhuma luz lhe dava alento. O luto em seus olhos me avisou: os cortinados de meu quarto se fechariam sobre todas as ruas onde ela passasse.
Sugeri-lhe que nos déssemos encontro. Breve, sem consequência. Marcámos nas traseiras dos Correios. Cheguei-me e não soube que palavras escolher. O momento pedia-me um idioma que não há. Eu me faltava. Ela me olhou como se eu fosse quem tivesse demorado. Como se eu fosse culpado.
– Vou-lhe contar uma história – disse eu apenas para amachucar o silêncio.
Ela reagiu prontamente:
– Nunca, mas nunca, me conte histórias.
Era tanta a veemência que eu me atrapalhei com o sem-querer da minha ofensa.
– Odeio história – rematou ela.
Deixou uma pausa, esperando em pose e apelo. Aguardava, quem sabe, que eu perguntasse porquê. Como eu me mantivesse mudo, ela somou:
– História é contra a eternidade.
Acenei com a cabeça. Perdera os filhos, não perdera aquela viciada ideia.
– Sou eterna, não lembra?
Depois ela me segurou na mão e me perguntou:
– Me trouxe um mar?
– Sim.
Mentira. Eu só podia mentir perante o pedido. Ela ficou, imóvel, esperando. Esperava? Que mar lhe havia eu de dar, se nenhum me coubera, nem grão de areia, nem concha, nem búzio. E, no entanto, ela estava defronte a mim como se aquele momento resumisse toda nossa existência. Fiquei tão desarmado que uma lágrima desaflorou em meus olhos. Depois aconteceu, sem decisão pensada. Aquilo me saiu, à parte de minha vontade. De repente, quase impercetíveis, as palavras me afluíram:
– Você é eterna, Ofélia.
Ela levantou o rosto e me enfrentou como se me descobrisse em primeira vez. Se aproximou e me beijou. Estendeu os dedos e recolheu esse esboço de água em meus olhos. Depois, com voz sumida:
– Obrigada por este mar.
Desde aquele momento, nunca mais voltaram a morrer seus dois filhos falecidos. Que eu diria: meus dois filhos de lá. Porque sou Ofélia, eu mesmo que desfolho esta estória. Sim, sou a mulher a quem, certa vez, na ponta dos dedos, foi oferecido o mar. O resto é a minha eternidade contra a história. Pois nunca existiu homem nenhum que me tivesse amado e empreendesse, alguma vez, viagem alguma para além deste lugar.

Mia Couto | na berma de nenhuma estrada e outros contos

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

AS VACAS, O RAPAZ E O BURRO


Após longas vigílias e apurados cálculos, os sábios chegaram à conclusão de que o homem apareceu à face da terra há 3 000 000 de anos. Eu, sem queimar muito as pestanas, cheguei facilmente à descoberta de que os meus antepassados se fixaram em Peireses durante o período da Idade da Pedra Lascada, aí pelo ano 200 000 a. C.
Eram muito religiosos os meus antepassados. Estou a vê-los de joelhos e mãos postas, rosto virado a oriente, em adoração ao Sol. Para eles, o Sol era o deus do bem, da luz, do calor. O único verdadeiro e origem de todas as coisas.
Imaginem agora a angústia dos meus antepassados quando, por esta altura do ano, viam o Sol a descair no horizonte, dia a dia mais baixo, mais oblíquo, mais frio. O terror de que o Sol caísse no buraco, morresse, não voltasse. O pânico da Lua, das trevas, do mal.
Como os meus antepassados do Paleolítico, também eu odeio o solstício do Inverno. Às cinco horas é noite… Quem pode aguentar uma coisa destas?
Na cidade, com as ruas bem iluminadas e cheias de gente, o dia prolonga-se até às seis, às sete, às oito. Aqui na aldeia, mal desce o crepúsculo, recolhe tudo a penates. Foi o que eu hoje fiz. E agora aqui estou eu de pés à lareira e olhos de cavernícola na vidraça. Lá fora começa a nevar. É a primeira nevada deste ano. Nevada, se continuar a cair. Que, por enquanto, são apenas uns farrapitos raros, leves como penas de pardal caídas do beirado.
Porque será que agora neva tão pouco? No meu tempo, caía nevão de meter medo. Lembro-me.
Um dia a neve atingiu um metro à porta de casa. Que, na serra, devia ter o dobro ou mais. Nem os penedos se viam. Tudo liso.
Após oito dias de prisão domiciliária, meu pai abriu a porta às vacas, pôs-me a cavalo do burro e disse-me:
– Vai-as chegar a beber.
– Aonde?
– Elas quiserem. Toca aí pela calhelha de Vale-da-Ponte.
Vacas e burro não pareciam muito afoitos. Eu ainda menos. Por fim a Formosa, que tinha sangue na guelra, tomou a dianteira. Parecia um navio quebra-gelos. A Castanha seguiu-lhe o rasto. O burro atrás da Castanha. Eu a cavalo do burro.
Dum lado e doutro do caminho, a toda a largura do horizonte, tudo branco e liso. Nem pio de ave, nem latido de cão. Um silêncio de planeta sem vida.
Eu ia fiado em que a Formosa, chegada a uma pipela onde costumava beber, matasse a sede e retrocedesse. Mas a pipela estava oculta pela neve. A vaca prosseguiu. Gritei-lhe:
Formosa? Volta ao rego Formosa! Vaca?
Pois sim. Peito em quilha aproado à neve, a Formosa parecia decidida a escalar o Evereste.
Ainda tentei deitar o burro fora da rota, ultrapassar as vacas, obriga-las a inverter a marcha. Mas o sendeiro não me obedeceu. Eu bem lhe vergastava as orelhas com o cajado e as ilhargas com os socos fechados. O tipo espirrava pelas ventas, batia o fandango com as patas, mas lá atirar-se à neve, está quieto. Botei-me abaixo, disposto a ir eu. Mas depressa recuei, com a neve pelos peitos. Voltei a cavalgar e: «Seja o que Deus quiser…»
Fomos ter a Gralhós. A meio da povoação, havia um tanque com o seu chafariz. À volta do tanque uma boa mancha de neve derretida. As vacas pararam a beber. Os de Gralhós acorreram, surpresos e intrigados:
– Onde vais com as vacas, Marinheiro?
– Chegá-las a beber.
– E então em Peireses não há água?
– Elas gostam mais desta.
Eles riam-se:
– Está bem, rapaz. Que lhes faça bom proveito.
As vacas beberam e regressaram pela mesma rota. Voltei a não encontrar vivalma pelo caminho. Meu pai perguntou-me:
– As vacas beberam?
– Beberam sim senhor.
– E o burro?
– Também.
– E tu?
– Não me apeteceu.
– Então mete-as à corte e anda para o lume qu’inda obreijas.
Como vêem, eu tive aventuras dignas de Ulisses.
O que não tive foi um Homero que dignamente as cantasse.

 Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS II – Crónicas de Barroso (p. 73 e ss.)