sexta-feira, 30 de agosto de 2013

EDUARDO

Acusavam-no de escrever sobre amigos, e ele dizia que se tornava amigo daqueles, pessoas ou livros, sobre quem escrevia. Ler e escrever sobre o que se lê é uma árdua tarefa quando se lê com amor, quando a leitura é encontro connosco mesmos e com aquilo (mundo e existência) que, em nós, é fundamentalmente impartilhável. E é também uma tarefa generosa e um exercício arriscado; falamos sempre de mais quando falamos de outros, de pessoas ou de livros. Porque, nesse momento, estamos sós e, por muito que chamemos por companhia, memórias, nomes, outros livros (e as crónicas literárias de Eduardo Prado Coelho faziam-no insistentemente), a companhia nunca vem.
Acho que é imprudente, e se calhar injusto, falar em crítica literária a propósito do que Eduardo Prado Coelho escrevia sobre livros nos jornais (crítica haverá talvez no seu ensaísmo). Criticar é pôr em crise e se algo ele punha em crise nessas crónicas era principalmente ele próprio. Eram textos, embora transmissíveis, pessoais, às vezes dir-se-ia que privados. Mas, de um modo ou doutro, não falamos sempre de nós, que é o que temos mais à mão?
Muitos acusavam-no justamente disso, clamando por «objectividade» como se ele estivesse constituído em alguma espécie de «serviço público» e lhe coubesse, não amar ou desamar, mas separar o «bom» do «mau» e a «culpa» da «inocência». Mas nem a crítica literária (chamemos-lhe assim) é um processo judiciário nem o crítico, pelo menos na prática de Eduardo Prado Coelho, um juiz, mas uma parte interessada. Pedia-se-lhe o que ele não podia dar, justiça. A vida, no caso a vida literária, é injusta, e merecemos sempre mais do que ela está disposta a dar-nos. O que alguns exigiam a Eduardo Prado Coelho era que ele reparasse os males da nossa pobre existência literária (da nossa e da de cada um). Ora ninguém tem poder para tanto.
Eduardo Prado Coelho escreveu excessivamente sobre alguns dos meus livros. A minha amizade com ele começou com a sua singular e injustificada amizade por esses livros (a certa altura até já escrevia sobre os meus gatos), e não ao contrário; e, tivesse sido ao contrário, a coisa iria dar ao mesmo, pois, como os do Senhor, são misteriosos os caminhos da amizade. Um dia, no bar da Biblioteca Nacional, disse-lhe que ele não era juiz fiável. E não era. Porque não era (felizmente não era!) um juiz, mas um leitor de livros, que amava, como todos amamos, alguns deles (vá lá perceber-se porquê, e eu frequentemente não percebia) e a quem outros eram indiferentes. E que escrevia sobre isso sem se dar ao cuidado de adiar o coração (víscera incómoda). Morreu do coração, de que outra coisa poderia ter sido?
Sei o que é escrever todos os dias ou todas as semanas (contar para vivirla e não vivir para contarla). Por isso queria que isto fosse, agora que ele está morto, uma espécie de louvor e simplificação de Eduardo Prado Coelho e da sua relação com a literatura (e com o cinema, e com a música, e com cada dia que passa, isto é, com a vida). E não acabei, também eu, a falar de mim?

Manuel António Pina - Visão, 30/08/2007

sábado, 24 de agosto de 2013

TARDE DE MAIS...

Quando chegaste enfim, para te ver
Abriu-se a noite em mágico luar;
E para o som de teus passos conhecer
Pôs-se o silêncio, em volta, a escutar...

Chegaste, enfim! Milagre de endoidar!
Viu-se nessa hora o que não pode ser:
Em plena noite, a noite iluminar
E as pedras do caminho florescer!

Beijando a areia de oiro dos desertos
Procurara-te em vão! Braços abertos,
Pés nus, olhos a rir, a boca em flor!

E há cem anos que eu era nova e linda!...
E a minha boca morta grita ainda:
Por que chegaste tarde, ó meu Amor?!...


FLORBELA ESPANCA,
in LIVRO DE SOROR SAUDADE (1923), in SONETOS (Ediclube, 1995)
Partilha de Quem lê Sophia de Mello Breyner Andresen

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Preservação

Chama-se liberdade o bem que sentes,
Águia que pairas sobre as serrainas;
Chamam-se tiranias
Os acenos que o mundo
Cá de baixo te faz;
Não desças do teu céu de solidão,
Pomba da verdadeira paz,
Imagem de nenhuma servidão!


(Miguel Torga, in Diário IX)

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

AGOSTO

Visão, 22/08/2002

Em Agosto, as águas da cidade correm lentamente e parecem, de súbito, lavadas da sujidade de todos os dias. As tardes espreguiçam-se como as de um longo e infindável domingo e o trânsito flui sem destino que se veja. Os cafés bocejam; as ruas, ainda há pouco febris, tornaram-se inesperadamente amplas e luminosas; e nem os últimos saldos, promoções e «rebajas» conseguem agitar a sonolência das grandes superfícies e dos prontos-a-vestir.
Sem filas, sem disputas de lugares de estacionamento, sem querelas futebolísticas, a cidade é outra cidade em Agosto, amistosa, paciente, razoável. Dir-se-ia que um imenso anjo condescendente pousou nos corações e os limpou de toda a ansiedade. É verdade que, aqui e ali, em algum centro comercial periférico ou em alguma auto-estrada recém-inaugurada, sobrevivem, como fiapos sujos, vestígios da pressa do resto do ano, mas a cidade, indiferente, passa, entregue a um moroso vagar improdutivo que, fosse ele em Janeiro ou Fevereiro, seria motivo de escândalo e decerto levaria o Dr. Bagão Félix e o patronato a ponderarem a imposição do trabalho forçado no desenvolto projecto de Código actualmente (quem o diria?) em discussão pública.
O cronista está ao computador em mangas de camisa, rodeado de Agosto por todos os lados, excepto pelo lado da crónica. De longe, como um rumor, chegam-lhe, misturados com os gritos das gaivotas e a vozearia das crianças brincando na rua, dispersos ecos do Mundo: a dislexia da princesa herdeira da Suécia; o divórcio de Jardel; o emigrante que veio de Paris a pedalar até à aldeia natal.
A crónica hesita: um elefante do Zoo de Praga levado pelas cheias; Dresden, a mártir, afogada no Elba; as contas da Dra. Manuela Ferreira Leite que, afinal, estavam furadas; a bonificação de juros negada, em nome do rigor orçamental, aos jovens que pedem um empréstimo para comprar um T1 e concedida aos clubes de futebol para a construção de estádios milionários...
Mas pela janela aberta da sala entra subitamente uma brisa morna que agita as cortinas e o Mundo desvanece-se. O gato adormecido em cima do jornal sobre uma foto do Papa a dizer missa em Cracóvia, um raio de Sol na estante iluminando a lombada azul de Todos os poemas, de Ruy Belo, tornam-se acontecimentos tão próximos e tão reais, e tão imperativos, que a crónica, para desgraça do cronista, perde o fio ao Mundo.
O cronista levanta-se e liga a TV. É domingo. O Sporting disputa a Supertaça com o Leixões; Bush, que não tem armas de destruição maciça nem ameaça outros povos, diz que é imoral o Iraque ter armas de destruição maciça e ameaçar outros povos; segundo a US Weekly, Angelina Jolie acabou o seu «casamento profundo» com Billy Bob Thornton e já não o vê desde o dia 3 de Julho. Alheio à Supertaça, a Bush e a Angelina Jolie, o gato dorme e, quem sabe?, sonha.

Pobre crónica, desamparadamente só entre tanto Agosto e tanto Mundo! Que pode ela fazer senão deixar-se ociosamente ir? Talvez, convenhamos, lhe fosse exigível mais, talvez devesse sair de casa e de si, e ser forte, e ser firme, e ser memorável; denunciar, interrogar, sorrir, enternecer-se; convocar verbos e adjectivos, sentidos e sentimentos; viver e morrer. Mas em Agosto, senhores?
M. A. Pina

sábado, 17 de agosto de 2013

«O POETA É UMA ÁRVORE»

Aquele que pediu «Quando eu morrer / deixai a varanda aberta» foi assassinado por pistoleiros franquistas há 75 anos, a 17 de Agosto de 1936, exactamente um mês após a rebelião fascista contra a República que, com a cumplicidade activa da Igreja – «Benditos sejam os canhões», a proclamação do primaz de Madrid continua a ser uma das mais graves injúrias contra os Evangelhos alguma vez proferida por um bispo católico afogou Espanha num mar de sangue e ignomínia.
Federico Garcia Lorca tinha regressado a Granada poucos dias antes. Os esquadrões da morte andavam pelas ruas e procurou refúgio em casa do poeta Luis Rosales, falangista e seu amigo. Foi aí que, no dia 16, militantes da Falange o prenderam. Nessa mesma noite foi levado para os campos de Viznar e, às 4 da madrugada, assassinado a tiro juntamente com um professor primário e dois bandarilheiros anarquistas.
A sua morte («De la cueva salen / largos sollozos») continua envolta em mistério. Não lhe eram conhecidas posições políticas, além de se assumir como republicano e de um dia ter dito: «Estou e estarei sempre do lado dos que têm fome». E, crime maior ainda para os seus algozes, era homossexual.
«Aqui fuzila-se como se desbastam árvores», escreveu Saint-Exupéry sobre a Guerra Civil. Lorca foi só mais uma árvore, frondosa e frágil: «O meu coração está aqui (...) / funde o teu ceptro nele, Senhor. / É um fruto / demasiado outonal / e apodreceu».


M. A. Pina JN, 17/08/2011

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

ARROZ DE MELRO


Terminou o mês de Julho, o sétimo do ano, assim denominado em honra de Júlio César, diz o dicionário.
Na aldeia da minha infância, onde raros sabiam ler e ninguém tinha dicionário, chamavam-lhe o mês das Segadas. Era durante ele que se ceifavam os fenos e as messes e eu perseguia os melros.
Toda a minha infância está cheia de melros. Eu seguia-lhes, pelas variações do assobio e do riso, a vida íntima. O acasalamento, a construção do ninho, a postura. Depois, era conforme. Se soubesse de vários ninhos com ovos frescos e o desejo me pedisse uma bica d'ovos, saqueava tudo no mesmo dia e punha a caçoila ao lume. Se o desejo se inclinasse para uma espetada ou arroz, aguardava que os pássaros crescessem e emplumassem.
Convencido de que os melros não tinham outra serventia neste mundo, fiz isto durante anos.
Mas quis o destino que eu fosse à Ribeira e pernoitasse em casa dum amigo de meu pai. De manhã acordei com o assobio dum melro. E o solista cantava ali tão perto, que eu saí fora na intenção de lhe ser útil. Qual não foi o meu espanto, quando deparei com uma gaiola na varanda.
Estava eu a olhar para ela, vem de lá o filho da casa, meio estremunhado, e pergunta:
– Gostas?
– Se gosto! E que bem ele canta!
– Isso é um artista.
– Quem me dera um! Mas não tenho dinheiro...
– Dinheiro para quê?
– Comprar a gaiola.
– Nem é preciso. Essa fi-la eu.
Era de bambu, a gaiola.
– Mas na minha terra não há bambus.
– Isso qualquer arbusto serve. Vimes, por exemplo. Nunca viste um caneiro de apanhar trutas?
– Até já fiz alguns.
– Ora aí tens.
– E o melro?
– Apanha-lo.
– No ninho?
– Não. Tirados do ninho são muito franzinos e difíceis de criar. O mais indicado é apanhá-los uma semana após o abandono do ninho. Naquele período em que os pais andam a ensinar-lhes as regras do bom viver.
– Já sei. Conhece-se pela maneira como eles choram pelo cibato e os pais lhes respondem na linguagem lá deles. O que não estou a ver é como é que eles se apanham?
– À mão.
– Como?
– Os caçadores fazem às perdizes. Nunca reparaste? A primeira vez que as levantam, elas saem com tal velocidade, que eles mal têm tempo de lhes atirar. À segunda, já saem com menos força. Aí pelo quarto ou quinto levante, mal conseguem voar.
Com os melros meninos é a mesma coisa. No primeiro voo, alcançam quinhentos metros. Ao segundo, metade. Ao quarto ou quinto, já não levantam voo. Bem entendido. Desde que os não deixem descansar. Para isso é preciso dar à perna. E, para dar à perna, nada melhor do que lameiros de feno segados.
Este diálogo teve lugar após as vindimas.
Passei aquele Inverno a fazer a gaiola e a Primavera atento aos ninhos.
Veio o São João, segaram-se os fenos. E no primeiro domingo de Julho, com todos os vizinhos para a missa, agarrei numa cesta da costura e saí à caça dos melros.
Com tão boa perna e fortuna que apanhei quatro.
Vinha eu com eles, encontro o Mestre Saias.
– Que levas aí? – pergunta ele.
– Melros.
– Mostra.
Mostrei.
– E bem bonitos! – torna ele – Que vais fazer com eles?
– Metê-los na gaiola.
– Mete-os antes no pote, não sejas burro! Uma ninhada de quatro melros fazem melhor arroz do que um coelho...

Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS II – Crónicas de Barroso (p. 96 e ss.)

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Albufeira, 14 de Agosto de 1976.


TRANSFIGURAÇÃO

O sol e o mar deram à tua pele
O tom do bronze, a cor da eternidade.
E agora, nos meus olhos de poeta,
És uma deusa eterna a passear
Na praia iluminada.
Imaginada
Num poema despido,
Desafias o tempo, olímpica e sagrada,
Humana só na sombra de o teres sido.


Miguel Torga

O informador

Crónica
António Lobo Antunes

Era informador da polícia política
(- Nunca deixei de cumprir o meu dever de português)
agora passa as tardes diante de um bagacito, sozinho numa mesa encostada à parede. Tem oitenta e sete anos, o cabelo penteado com esmero, o nó da gravata, cheia de lustro, perfeito.
(- Há duas coisas que não perco, o patriotismo e o orgulho)
cuida-se conforme pode mas percebe-se que pode pouco, o bagaço dura a tarde inteira, o que comerá ao jantar
(- Com as democracias a darem cabo do mundo o que se espera?)
no buraco onde dorme
(- Um quarto digno)
com um postigozito além do qual traseiras e hortaliças. Trabalhava nas finanças outrora, no tempo do Senhor Doutor Salazar
(vénia breve)
atento aos desrespeitosos e aos traidores
(lábio inferior a crescer de indignação)
que se atreviam a piadinhas
(- Começa-se na piada e acaba-se na bomba)
acerca do Governo da Nação
(- Até insinuações contra a masculinidade do Presidente do Conselho, palavra de honra)
factos que ele enviava imediatamente por escrito, datados e assinados
(- Não conheço o medo, meu amigo)
para a sede da polícia
(- Assim por baixo mais de mil e quinhentos relatórios)
e, embora não o fizesse por dinheiro
(- Que fique claro: o amor a Portugal não se paga em moedas)
(- Às vezes, nuns apertozitos)
aceitava um subsídio nominal, que arredondava o fim do mês e lhe permitia ajudar a mãe nos remédios
(- Não nasci em berço de ouro e dou graças a Deus por isso)
visto que a idade traz sempre doenças consigo, no que se refere à mãe o açúcar e a vesícula
(- Foram sempre os pontos fracos da minha família, o açúcar e a vesícula)
cujo tratamento, no seu caso, constava do bagacito e uma sopinha ao jantar, tomada lentamente a fim de sentir, durante mais tempo, uns fiapos de couve na boca. Oitenta e sete anos, o mesmo casaco, as mesmas calças, o rebordo do colarinho preto do uso, a língua que desobedecia aqui e ali, empastelando os pontos de vista, embora continuasse lúcido e alerta
(- A memória não falha)
apesar das perseguições e injustiças que lhe caíram em cima
(- Literalmente)
quando o Estado Novo, para desgraça nossa, terminou, substituído por gente ateia e sem moral que se pôs logo a dar independência aos pretos e liberdades às mulheres, pernas ao léu, divórcios, uma vergonha. Os ateus sem moral roubaram-lhe o emprego, enxovalharam-no
(- Houve quem tentasse bater-me, imagine)
o senhorio pô-lo na rua
(- A minha esposa faleceu desse desgosto)
a esposa faleceu
(- Literalmente)
desse desgosto
(- Esteve a soro no hospital quinze dias já vê)
permaneceu que tempos a olhar-me calado, posto que estar a soro no hospital é um facto que impressiona qualquer pessoa
(- Não o arrepia, a si?)
deu uma mirada ao bagaço, por um triz não bebia um golinho, impedindo o cálice de durar três horas, apagou emoções do canto do olho com o indicador
(- Desculpe mas isto mexe comigo)
lá se recompôs a custo, lutando com as tremuras dos ombros, e a vida dele, daí para a frente, um cortejo de calamidades e misérias de toda a ordem, suportados com a dignidade de um Homem
(- Sou da cepa dos que andaram nas caravelas)
sem emprego, sem mulher, sem dinheiro, sem polícia política com quem desabafar, sem amigos até, que por cobardia o abandonavam juntando-se aos ateus sem moral
(- Não tem sido fácil não curvar a espinha)
que não se cansam de apodrecer a juventude, geração após geração, transformando-nos numa récua
(- Estou a medir os termos quando afirmo que récua, estou a ser indulgente)
de homossexuais, drogados e gatunos. Soslaio desconfiado para mim
(- Você não é homossexual, por acaso?)
seguido de regresso à contemplação do copinho
(- Por fora não dá ares mas eles disfarçam-se bem)
e fica na dúvida, a vigiar-me os modos até que, de repente, as mãos lhe tremem
(- Tenho medo)
os olhos principiam a descer das órbitas
(- Tenho tanto medo)
uma veia do pescoço, enorme, principia a latir, uma criança assoma no fundo de oitenta e sete anos, indefesa, intacta, tão sozinha
(- Não me deixe morrer)
e eu, indeciso, pego-lhe ao colo, não lhe pego ao colo, eu, indeciso, piro-me, não me piro, eu, indeciso
- E agora?
De modo que acabo por poisar-lhe a palma na manga
- Sossegue que não o deixo morrer
com a sensação esquisita, idiota, inexplicável, de ignorar qual dos dois sou eu.
15 DE AGOSTO DE 2013 VISÃO 11

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Morreu Urbano Tavares Rodrigues, um humanista da escrita

ISABEL LUCAS , ISABEL COUTINHO , SÉRGIO C. ANDRADE e CATARINA MOURA 
09/08/2013 - 11:14 (actualizado às 19:22)
Em Dezembro faria 90 anos, tinha 61 anos de carreira literária.
O escritor, jornalista e militante do PCP Urbano Tavares Rodrigues morreu na manhã desta sexta-feira, no Hospital dos Capuchos, em Lisboa. Estava a poucos meses de completar 90 anos.
O escritor estava internado há três dias. A notícia foi conhecida através da página de Facebook "Urbano Tavares Rodrigues - escritor" e foi publicada pela filha, a escritora Isabel Fraga: "O meu pai acaba de nos deixar. Estava internado nos Capuchos há três dias. Não tenho mais informações. Soube agora mesmo." O PÚBLICO confirmou.
O corpo de Urbano Tavares Rodrigues está em câmara ardente desde as 19h desta sexta-feira, na Sociedade Portuguesa de Autores, em Lisboa. O funeral realiza-se no sábado às 18h, "seguindo para o cemitério do Alto de São João, onde terá lugar a cremação pelas 19h", diz um comunicado da SPA.
Numa entrevista ao Ípsilon, em Outubro do ano passado, Urbano Tavares Rodigues dizia: “Mereço amplamente o Prémio Camões”. A frase saiu a meio de uma conversa sobre livros e política. Reflectia o sentimento de uma justiça por fazer. Não era a primeira vez que deixava cair o desabafo. Fazia, então, 60 anos de obra literária e 89 de uma vida cada vez mais frágil fisicamente devido a uma insuficiência cardíaca. Continuava a escrever e continuou a editar até ser internado.
Urbano Tavares Rodrigues nasceu em Lisboa, a 6 de Dezembro de 1923, filho de uma família de grandes proprietários agrícolas de Moura, Alentejo.  Foi, aliás, em Moura que fez a escola primária. Depois, já em Lisboa ingressou no Liceu Camões, onde foi colega de Luís Filipe Lindley Cintra e do irmão de Vasco Gonçalves, António.
Licenciou-se na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa onde cursou Filologia Românica. Desde cedo começou a militar na oposição ao Estado Novo. Isso valeu-lhe o impedimento de trabalhar como professor. Passou pela prisão em Caxias e foi para um longo exílio em França. Em Paris, conheceu alguns dos intelectuais da década de 1950, caso de Albert Camus, de quem foi amigo e que era presença frequente nas suas conversas. Foi professor na Faculdade de Letras, crítico literário e esteve sempre ligado ao Partido Comunista Português. 
Mários Soares: "Pessoa com muitas virtudes"

O escritor, autor de Os Insubmissos, era amigo de Mário Soares. “É para mim uma grande e profunda tristeza o falecimento de Urbano Tavares Rodrigues, de quem fui amigo desde a minha juventude. Era um amigo íntimo e muito querido, uma pessoa com muitas virtudes”, disse esta sexta-feira ao PÚBLICO o antigo Presidente da República.
“Tivemos divergências políticas, naturais, sobretudo porque ele a partir de uma certa fase da vida transformou-se, tornou-se comunista. Mas quando nos víamos éramos os amigos de sempre, tínhamos conversas óptimas, discutíamos política”, acrescentou Mário Soares, que foi visitar o amigo há uns meses e que, por isso, já esperava a "notícia triste".
“Nessa altura já o tinha achado muito em baixo, fiquei convencido de que ele estava numa fase derradeira. De qualquer maneira é sempre uma tristeza muito grande saber da morte de um amigo querido. Um amigo que o foi até ao fim porque, apesar das nossas diferenças ideológicas, nunca deixámos de o ser. Tínhamos muito contacto. Era extremamente humano, dado. Estimo-o como escritor, como homem. Estimo-o muito.”
Manuel Alegre: "Um escritor que marcou o século XX"

Autor de uma vasta obra, onde se destaca o romance, a prosa poética, o conto e a poesia, Urbano Tavares Rodrigues era um crítico atento e presença regular nas páginas dos jornais. Ao PÚBLICO, Manuel Alegre lembra que foi Urbano o autor do primeiro texto publicado sobre a Praça da Canção. “Saiu no República, em pleno fascismo”, lembra o poeta, recordando “um grande amigo, grande camarada, um escritor que marcou o século XX; um grande prosador que sempre tomou partido e não se fechou nunca numa torre de marfim e que combateu pela liberdade, pela acção e pela palavra.” 
O escritor e ex-deputado salienta ainda a enorme atenção de Urbano Tavares Rodrigues às novas gerações de escritores. Foi para ele que José Luís Peixoto enviou um exemplar da edição de autor de Morreste-me, o seu primeiro livro publicado em edição de autor. E seria Peixoto a apresentar o último título de Urbano Tavares Rodrigues, A Imensa Boca dessa Angústia e outras Histórias, editado em Abril passado pela D. Quixote. “A minha mãe era leitora do Urbano. Havia muitos livros dele lá em casa. Parte da minha formação foi feita a lê-los. Na minha adolescência encontrava ali o Alentejo que era a minha realidade”, disse o escritor ao PÚBLICO.
Também dessa geração mais nova é o escritor e realizador Possidónio Cachapa, autor do documentário O Adeus à Brisa, uma produção Filmes Tejo para a RTP, de 2009. Quis mostrar um “Urbano que não fosse envelhecido, mas o retrato de alguém que tem dentro de si já todas as idades“. Urbano que não fosse envelhecido, mas o retrato de alguém que tem dentro de si já todas as idades. Quando terminou a montagem o realizador, que decidiu fazer este documentário por causa do papel que Urbano Tavares Rodrigues representa na cultura portuguesa, percebeu que o autor de Tempo de Cinzas não fazia só um balanço da sua vida como dava um último testemunho. “É por isso que o filme começa com as primeiras impressões dele – quando andava a cavalo na sua infância – e termina com a sua melhor memória. E é de novo a memória de andar a cavalo, de andar nos campos. É um círculo que se fecha”, conta ao PÚBLICO, o realizador e autor do romance Materna Doçura.
“Um autor é a sua obra e aquilo que ele fez, que está documentado” afirma Possidónio Cachapa. “Urbano Tavares Rodrigues é muito mais do que alguns rótulos que se lhe possam colocar. Ele fez o que fez pelo seu sentido de humanidade, pelo coração. O irmão dele diz que Urbano chega ao Partido Comunista Português pelo coração e não pela ideologia. Tinha a visão do que devia ser uma humanidade harmoniosa e ao mesmo tempo deparava-se com um sistema que não funcionava.“
Na entrevista que deu ao Ípsilon em 2007, Urbano Tavares Rodrigues confessou que o momento mais difícil no interior do Partido Comunista Português foi “quando se começou a saber, por cá, a realidade imposta pelo Estaline.” E quando questionado sobre os seus heróis respondeu: “Os meus heróis? O meu irmão e Álvaro Cunhal! Fiquei encantado com o Gorbatchov! Mas, volvidos estes anos, em questões de poder, a Rússia de Putin inspira sérias preocupações. Não gosto nada dele.”
Mário Cláudio: "Nos anos 50/60 foi uma lufada de ar fresco na literatura portuguesa"

O escritor Mário Cláudio, lamenta muito a sua morte, mesmo se ela estava anunciada devido à sua doença. "Foi um amigo do coração, mestre de escrita, de coragem, de profissionalismo, de companheirismo, de humanidade, de espírito de conciliação para além de todo o sectarismo", disse ao PÚBLICO o escritor num depoimento por telefone.
Urbano Tavares Rodrigues "era alguém de quem se dizia bem em vida – o que não é habitual entre nós –, não só como escritor mas também no plano cívico. Nunca usou o seu posicionamento político, que era bem conhecido, para fazer qualquer espécie de segregacionismo. Há melhor? Não há. Parecido? Também não. Quase não se acredita que fosse português. Mas era. Por isso, nem toda a esperança está perdida."
O que Mário Cláudio também acha admirável em Urbano Tavares Rodrigues é que ele manteve a sua oficina de escrita até ao fim, e também o seu contacto com os amigos e companheiros de escrita. "Nos anos 50/60, ele surgiu como uma lufada de ar fresco na literatura portuguesa, tendo conseguido superar o modelo neo-realista, estabelecendo pontes com a literatura francesa da época e o realismo mágico da América Latina. E enfrentou de forma aberta, sem falsos pudores, o tema do sexo e do erotismo."
"Uma figura assim não podia escapar a determinadas agressões: morderam-lhe os calcanhares – era fatal que isso acontecesse. Mas Urbano Tavares Rodrigues foi sempre superior a tudo isso. Deixou um itinerário de excelência", concluiu Mário Cláudio.
Uma carta sobre tolerância para o filho de sete anos

Da Amazónia, onde está a participar num festival, José Luís Peixoto lamenta a morte do amigo, lembra a generosidade do homem que nos últimos anos tinha “alguma mágoa por ver a vida afastar-se de si”. Sinal dessa vitalidade que agora se manifestava apenas na escrita, lembra, Peixoto, é o filho de Urbano Tavares Rodrigues, António. Para ele Urbano deixou uma carta. Falava muito dela. Dizia que era a grande herança que lhe deixava. António que agora tem sete anos, deveria abri-la aos dez anos. A mensagem é a da tolerância.
A académica Maria Alzira Seixo foi sua aluna no primeiro ano da Faculdade de Letras de Lisboa. Contou ao Ípsilon que o professor passava por ela e dizia: "Sabe, trago sempre comigo a pasta de dentes e o pijama.”A aluna naquela época, finais dos anos 50, achava desconcertante o desabafo. E nesse artigo do Ípsilon, em 2007, explicava ainda que quando, em 1958, apareceu Uma Pedrada no Charco, com que Urbano Tavares Rodrigues ganhou o seu primeiro prémio, o Ricardo Malheiros, da Academia de Ciências, percebeu o que o seu professor lhe queria dizer: “No mesmo dia o Urbano era chamado e às vezes preso pela PIDE [a ex-polícia política da ditadura de Salazar].”
“Portugal perde um grande escritor e um homem exemplar. Lutou sempre pelas suas convicções com um grande sentido humanista”, diz ao PÚBLICO o editor Manuel Alberto Valente, que perdeu um grande amigo. “Julgo que Portugal não lhe prestou a merecida homenagem em vida e espero que agora se lembre de lha prestar”, acrescenta o director da Porto Editora. “Enquanto isso, espero que as pessoas o possam homenagear lendo os seus livros."
 Baptista-Bastos: "As coisas de inveja não eram com ele"

“Há uma parte de Portugal que vai com ele [Urbano Tavares Rodrigues], que é o Portugal interveniente. O Urbano tinha uma coragem moral e física, invulgares, que nem sempre se acompanham”, disse à agência Lusa o escritor e jornalista Baptista-Bastos, que recordou o “amigo e camarada exemplar”.  “As coisas de inveja não eram com ele”, afirmou. “Com os mais novos era de uma generosidade escancarada”, acrescentou o autor de O Secreto Adeus que conheceu Urbano quando ainda era rapaz.
Baptista-Bastos recordou ainda à Lusa alguns dos “feitos” do autor deBastardos do Sol. Como quando, “numa das vezes em que foi preso pela PIDE [Polícia Internacional de Defesa do Estado]”, a polícia política da ditadura, antes do 25 de Abril de 1974, “Urbano, rodeado de ‘pides’ virou-se para eles, e disse: ‘Antes que me batam, levam com esta cadeira’, e partiu-a em dois ou três daqueles ‘mariolas’, mas - é claro -, depois levou uma monumental tareia”.
Outro dia, lembra ainda Baptista-Bastos, vários escritores e advogados da oposição juntaram-se à porta da livraria Sá da Costa, em Lisboa, e viram o Urbano a descer o Chiado na direcção deles. “De repente, vimo-lo voltar atrás e entrar na pastelaria Bénard e, dali a pouco, ouvimos um ‘catrapaz, catrapuz!’ e fomos ver. Tinha sido o Urbano que se virara ao Manuel Múrias [crítico do jornal Diário da Manhã, matutino oficioso do regime ditatorial] que era um homem corpulento de dois metros de altura”, contou Baptista-Bastos à Lusa. “O caso tinha sido que o Múrias tinha feito uma crítica ignóbil a um livro da Maria Judite de Carvalho, [então] mulher do Urbano, na qual sugeria que, em vez de escrever livros, devia ficar em casa a fazer filhos, uma coisa que é de uma ordinarice total”, desabafou Baptista-Bastos. Urbano Tavares Rodrigues “não era um homem para graças, era um homem de grande fibra”.
A despedida no novo livro: "E tudo será luz"

Em 2007 começaram a ser publicadas pela Dom Quixote as suas Obras Completas. Entre os cerca dos cem títulos que publicou destacam-se Bastardos do Sol, Dissolução, Estrada de morrer, Agosto no Cairo: 1956, O Tema da Morte na Moderna Poesia Portuguesa, integrado depois em  O Tema da Morte: Ensaios, O Algarve na Obra de Teixeira Gomes, A Saudade na Poesia Portuguesa, A Natureza do Acto Criador, O último dia e o primeiro, Contos da solidão, Os insubmissos, Tempo de cinzas, Torres Milenários, Bastardos do Sol, O Algarve em poema, Os Cadernos Secretos do Prior do Crato. Nessa altura, Urbano Tavares Rodrigues disse ao Ípslion que era a concretização de um sonho antigo. No início de Julho passado fez chegar à sua editora na Dom Quixote, Cecília Andrade, aquele que será o seu último livro, Nenhuma Vida, a publicar ainda este ano, divulgou nesta sexta-feira a editora. 
Esse romance, que será lançado para assinalar os 90 anos do escritor, aborda questões que Urbano Tavares Rodrigues tratou na sua obra, mas também ao longo da sua vida, como as lutas políticas e sociais, a solidariedade, as relações humanas, mas também a sexualidade e o erotismo. “É um romance muito curto e onde está todo o espírito do autor”, diz Cecília Andrade, acrescentando que apesar de as personagens não serem auto-biográficas, as questões abordadas têm muito da experiência do autor.
Tem um prefácio escrito pelo próprio e que é já uma despedida. "Daqui me vou despedindo, pouco a pouco, lutando com a minha angústia e vencendo-a, dizendo um maravilhado adeus à água fresca do mar e dos rios onde nadei, ao perfume das flores e das crianças, e à beleza das mulheres. Um cravo vermelho e a bandeira do meu Partido hão-de acompanhar-me e tudo será luz".