Agora que o Verão
vem aí, lembro-me de Évora e do calor que lá havia. É curioso que para cada
terra onde vivi, há uma estação do ano em que melhor fiquei a recordá-la.
Guarda relembro-a no Inverno e na neve, Melo um pouco também. Mas eu passava aí
sobretudo o Verão e é o Verão que me dá mais jeito recordar. Banhos na ribeira,
o vento da tarde que melhor ligo ao ribeiro, pequeno riacho para as regas que
atravessa a estrada onde nos sentávamos a apanhar o fresco, as noites ao pé de
casa a ver a lua nascer. Coimbra é também sobretudo a estufa do tempo dos
exames e dos breves passeios à beira-rio. Mas Évora e o Alentejo relembro-os
quase só pelo calor ardente e as noites arrefecidas progressivamente até de
manhã. Na rua da Mesquita, 28, onde vivi de 49 a 59, a casa tinha dois pisos.
Dormíamos no andar de cima, que era um um forno. Pela noite às vezes sobretudo
a Regina levantava-se para ir respirar à janela de sacada ou seja na varanda do
quarto, para tomar o fresco. Mas depois começava a arrefecer e eu pensava na
utilidade de um mecanismo que não havia e nos permitisse pôr um cobertor
suplementar que fosse subindo dos pés da cama até nos cobrir pela madrugada.
Era um calor terrível, fincado à terra nas horas caniculares, a amadurecer o
trigo das searas. Tardes de calor na Quinta da Soeira do Alberto Silva, à
sombra de uma velha nogueira após o banho na piscina. Tardes sufocantes no
liceu pela altura dos exames, com janelas abertas para a planície lavrada de
fogo. Tardes de cansaço ao fim do dia, revertidos ao nosso derramamento
interior, alastrados de silêncio e de vazio. Verão ardente, memória perdida
neste meu longo cismar.
*
Hoje tive uma nova
hemorragia nasal. Mais comedida, mas mesmo assim espectacular como sempre que
há sangue, que tem uma carga enorme de mitologia. A Regina aplicou-lhe uns
tampões oxigenados e a coisa retraiu-se logo. E de tarde fui ao Nogueira da
Costa saber novas do coração. Lá me foi registado o trabalhar e o registo não
foi indecente. Há da mazela de há anos o rasto bem marcado, mas em sossego como
de costume. Já não ia à revisão há ano e meio, mas do atraso não houve
inconveniência. Continuo portanto com licença de estar vivo. Mas o que me
surpreendeu foi que para o Nogueira da Costa as hemorragias não são uma peste.
Descobriu-se agora que as sangrias da medicina pedestre de outrora tinham em
alguns casos a sua justificação. E a justificação vinha de que por vezes
evitavam que o sangue se tornasse viscoso. É do que eu posso beneficiar com as
minhas sangrias espontâneas e discretas. Posso pois sangrar mais, se não houver
abuso. De modo que o que me resta em esperança é que elas se não descomandem em
destemperas. Engrassa-se-me o sangue com a idade, há vantagem em liquefazê-lo
um pouco para não haver engarrafamentos. E entremeado à consulta, houve largo
paleio. Nogueira da Costa, na sua voz pausada de quem já viu muita miséria, tem
o seu susto brando de que o forcem à aposentação. A lei está a abeberar e pode
ser que aos 65, ou seja daqui a um ano, o cortem ao activo e o arredem do
caminho dos que estão em rampa de lançamento. Lá lhe disse que isso acontece em
todos os sectores, mesmo dos escribas que, não sendo grandes empecilhos para os
mais novos, não deixam de apanhar pragas deles por não morrerem de uma vez e
deixarem o espaço da glória mais livre e respirável. Devia era arranjar um
«hobby» para quando entrasse em descanso, disse-lhe. Mas já o tinha, disse-me,
e era a sua paixão pela fotografia. Lá vi uma no consultório, bem bonita por
sinal. Era um amontoado de telhados embrechados uns nos outros que o recorte da
fotografia nos tornava visíveis. Longa dissertação minha sobre esse género
aparentado submersamente com a pintura. Contei-lhe da minha paixão também pela
fotografia quando era jovem e de como na infância eu sentira a fascinação da
imagem em face do real. Fora o caso que um nosso vizinho era ferreiro e tinha
uma janela rente ao chão, que dava para a oficina. Então eu quedava-me a olhar
nos vidros a imagem reflectida da estrada. E olhada a imagem e depois a
estrada, intrigava-me que a imagem fosse diferente
do real e todavia o não fosse. Havia aí um mistério que me fascinava e eu não
entendia e me despertava uma interrogação que não chegava a formular. Porque é
que a estrada se transfigurava quando era só a sua imagem? A arte começava aí,
nessa indistinta linha de separação. E o segredo da fotografia também. Mas a
Regina chama para o jantar e acabo aqui a conversa. Aliás, creio ter falado
disto não sei já há quantos volumes do diário a propósito do livro A
Câmara Clara de Roland
Barthes, que o Nogueira da Costa não conhecia e eu lhe recomendei. Já vou,
já vou – a Regina que insiste. E mesmo quero ver o noticiário das 7 e meia na
TV, que para isso é que tenho TV – para ouvir os noticiários. Ou pouco mais. Já
vou – e agora tenho mesmo de ir.
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