domingo, 26 de maio de 2013

26 – Maio (sábado). [1990]

E hoje, quando ia buscar os jornais, dei comigo a pensar de novo que há imenso tempo não vejo a farrapeirinha. Terá morrido? Era uma velha de espinha em arco e que arrastava atrás de si um comboio de mercadorias. Um dia contei o lixo do comboio. Eram uns doze ou quinze caixotes de cartão, cheios do mais incrível material. Papéis, tijolos, bocados de cimento, cacos de louçaria, e assim. E de vez em quando deslocava-se para algum sítio talvez mais estratégico e rosnando pragas ao seu imaginário, ia e vinha, acarretando os caixotes de dois a dois, até os colocar no sítio comercial. Depois sentava-se rodeada da sua mercadoria e ali ficava à espera decerto de um enviado de Deus, rogando sempre pragas, invectivando a altos brados pessoas que eu não via e ela devia ver. E quando à hora do almoço eu ia para a cantina, velha e traquitana tinham já desaparecido, decerto porque o negócio tinha sido encerrado com o Encoberto. Mas agora desapareceu de vez. Imagino-a no paraíso a continuar talvez o seu negócio, arrastando atrás de si inumeráveis caixotes com a lixeira celestial – asas de anjinho já fora de uso, sandálias rotas de santos atiradas fora, auréolas já tomadas de ferrugem, cacos de alaúdes, liras sem cordas. E no meio disto tudo, rogando sempre pragas ao Padre Eterno…
Vergílio Ferreira

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