E hoje, quando ia
buscar os jornais, dei comigo a pensar de novo que há imenso tempo não vejo a
farrapeirinha. Terá morrido? Era uma velha de espinha em arco e que arrastava
atrás de si um comboio de mercadorias. Um dia contei o lixo do comboio. Eram
uns doze ou quinze caixotes de cartão, cheios do mais incrível material.
Papéis, tijolos, bocados de cimento, cacos de louçaria, e assim. E de vez em
quando deslocava-se para algum sítio talvez mais estratégico e rosnando pragas
ao seu imaginário, ia e vinha, acarretando os caixotes de dois a dois, até os
colocar no sítio comercial. Depois sentava-se rodeada da sua mercadoria e ali
ficava à espera decerto de um enviado de Deus, rogando sempre pragas,
invectivando a altos brados pessoas que eu não via e ela devia ver. E quando à
hora do almoço eu ia para a cantina, velha e traquitana tinham já desaparecido,
decerto porque o negócio tinha sido encerrado com o Encoberto. Mas agora
desapareceu de vez. Imagino-a no paraíso a continuar talvez o seu negócio,
arrastando atrás de si inumeráveis caixotes com a lixeira celestial – asas de
anjinho já fora de uso, sandálias rotas de santos atiradas fora, auréolas já
tomadas de ferrugem, cacos de alaúdes, liras sem cordas. E no meio disto tudo,
rogando sempre pragas ao Padre Eterno…
Vergílio Ferreira
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