O homem não tem
uma finalidade, a Natureza não tem uma finalidade. Sobretudo se a pensarmos no
seu estado bruto de planetas desertos, cheios de buracos, girando estupidamente
em torno de uma estrela medíocre pelos milénios sem fim. Porque regressados ao
nosso pobre planeta as coisas mudam logo um pouco de figura. Há plantas e
animais que nascem, se reproduzem e morrem. O acto de nascerem e se
reproduzirem e mesmo o morrerem insinua-lhes logo sub-repticiamente um fim, que é esse mesmo para que tendem.
Nascem para se reproduzirem e
morrerem. O único problema é o da significação disso. Com que finalidade
nascem, etc.? O seguirem-se as suas transformações aponta-lhes logo um destino.
Somente esse destino não significa nada. E o absurdo disso retorna-os ao
absurdo de um planeta de pedra, já morto na sua origem. Mas é essa sequência do
que nos seres evolui que lhes transfigura o seu destino aos nossos olhos. E é
aí que inexoravelmente nós inserimos o para
quê. Nós dizemos então que há nada que perguntar, que essa pergunta é um
acréscimo inútil que o homem lhes introduz. Mas justamente nós podíamos
anteceder tal pergunta sobre o seu para
quê com uma nova pergunta sobre o para quê desse para quê. Ou seja, nós
podíamos perguntar-nos sobre o porquê do perguntar. E podíamos responder que
esse perguntar é tão necessário como o injustificável do mundo em bruto.
Perguntar é assim tão necessário como o que existe sem justificação, porque
justamente está aí, é um facto em
bruto sobre o qual é vão querermos saber o porquê. Ou seja, o perguntar está aí
também como uma necessidade indiscutível, um facto irredutível sem mais. Ou
seja, perguntar é um facto sobre o qual é tão vazio interrogarmo-nos como sobre
o facto de existirem bolas de pedra a girar no espaço. Portanto pergunta-se e nada pode contra esse dado
irredutível. Perguntar é tão indiscutível como haver o Universo. O problema
começa quando se lhe quer dar uma resposta. O homem é um facto tão em bruto
como haver pedras. Mas se é assim, o perguntar também o é, porque ele é
intrínseco à sua realidade de ser homem. O desencadear destas questões teve um
ponto de partida que já enfastia repetir. Mas o tédio da asserção desse ponto de
partida não lhe anula a realidade, mas quando muito a sua virulência como à
melhor música que se quiser com a sua repetição. Estamos pois em face do facto
inexorável de termos de querer o para quê da existência do homem. É uma questão
sem resposta, excepto para os que não têm a coragem de enfrentarem com novas
questões a resposta que encontrarem. Porque a única resposta é no próprio homem
sem mais que temos de absorvê-la. E então diremos que o homem é de si mesmo um
milagre incalculável, um prodígio que o distancia enormemente de qualquer outro
ser. Porque em relação a qualquer outro ser, ele tem o vertiginoso acréscimo de
ser o que é. É um acréscimo que começa, como tenho dito, na infinitesimal
diferença entre ele e si. É nessa finura finíssima que tudo o que ele é se
começa. Mas se o homem é um incrível acréscimo sobre seja o que for, ele
investe-se de um valor a preservar. E a sua finalidade inexistente recupera-se
no simples facto do seu prodígio. O homem não existe para nada. Mas ele é um
valor prodigioso e sê-lo e salvaguardá-lo é retroactivamente uma finalidade
indiscutível. Submetê-lo a qualquer entidade que o superasse seria retirar-lhe
o que nele é a sua grandeza. E é por isso que nós somos pelo escravo, contra o
senhor que o oprime. Porque essa opressão lhe esmaga o que o faria ser algo
mais. O homem é o ponto extremo a que pôde chegar qualquer ser vivo. Ele é uma
espécie efémera como todas e pode mesmo, por uma bem sucedida mutação, dar
origem a outra espécie. Ele é assim um ramo desse inverosímil milagre do que
chamamos vida. Ele forma assim com tudo o que o rodeia, desde o próprio
Universo, um todo em que ele próprio se insere. E pensando esse Universo, nós
descobrimos o que chamamos uma Ordem, nem que essa Ordem seja a que a nós
impomos no que em si mesmo seria uma desordem. De todo o modo, é bem
perceptível uma relação mútua entre todo o existente, e o absurdo de uma bola
de pedra perdida nos espaços é em si mesmo uma relação com outras esferas
harmonizadas num todo maior e esse mesmo num outro todo em que biliões de todos
se coordenam. Pensamos assim que há uma economia incognoscível em que todo o
ser tem o seu lugar, pensamos assim que o homem tem uma finalidade que é o ser
uma parcela dessa conta que há-de fazer-se enfim no vazio da eternidade. E
entrar assim nessa conta é já de si finalidade bastante – a finalidade em
bruto, ou seja indiscutível, de tudo o que simplesmente é.
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