domingo, 27 de outubro de 2013

Coimbra, 27 de Outubro de 1973.

RENÚNCIA

Agora, que não vens, é que sossego.
Lucidamente, nego
Tudo quanto sonhei.
Desaperto o nó cego
Que apertei
Na hora cega em que te conheci.
Sou eu de novo só, como nasci,
A subir o calvário
Sem ninguém que me valha.
Sem deixar o sudário
Em nenhuma toalha…  
Miguel Torga, DIÁRIO (XII)

terça-feira, 22 de outubro de 2013

O BOI DO PRÉMIO

Ontem o meu sobrinho, que está de férias, disse-me:
Amanhã é a Feira do Prémio.
– No meu tempo era em Junho!
– Passaram-na para Agosto.
– Por causa dos emigrantes?
Claro.
Anda tudo ao mesmo.
– O tio não vai lá?
Não me puxa o sangue.
Mas já me puxou, e de que maneira. Era uma festa, a Feira do Prémio. Indubitavelmente a mais concorrida e colorida do ano. Tudo à pata, num alevante, por aí fora, gentes e animais, velhos e novos, montes e vales, caminhos e atalhos, alor de romaria. “Para onde vais Maria?” “Para a festa!”
Nesse tempo, um primeiro lugar na Feira do Prémio correspondia a uma medalha de oiro nos Jogos Olímpicos. Aldeias e lavradores passavam a vida a suspirar por ele. Quem uma vez o abichasse, nunca mais era pobre. Pelo menos de presunção e água benta.
Da minha lembrança, Peireses teve apenas um boi-do-povo premiado. E, se o teve, a mim, em boa parte, o fica a dever.
Se um dia a epopeia desta Toscana se vier a fazer, espero que, por este sublime feito, os Virgílios indígenas se não esqueçam de incluir o meu nome entre os Eneias cá dos sítios. E como o seguro morreu de velho, apresso-me a registar para a posteridade esta bela página da história de Peireses e da minha obscura biografia.
Aí por 1939, era eu um pistolante de dente voraz, olho guicho e pé leve, a quem nada metia medo gaba-te cesta que vais para a vindima. Véspera da Feira do Prémio, um tio meu, ao tempo macho dominante entre os leões cá da terra, chamou-me de parte e disse-me:
Vais ali num instante à Vila e dizes ao Filipe Serralheiro que me inscreva o boi para amanhã. Vais assim mesmo, para ninguém desconfiar.
Assim mesmo, roto, sujo e descalço. Mas eu era, como disse, um pistolante de cara imberbe e desavergonhado. Corri a Montalegre, abordei o Filipe, vulgarmente conhecido por Filipe Carteiro, por ser este o seu ofício, e disse-lhe:
Ó sor Folipo? Meu tio António pede o favor de lhe inscrever o boi de Peireses para amanhã.
Ai tu és sobrinho do António Marinheiro? Filho do Manuel?
Sim senhor.
Está bem, rapaz. Diz ao teu tio que pode trazer o galhardo à vontade.
Cumprida esta missão, julguei-me fora da jogada. Mas não estava. Meu tio levou-me para a adega e, entre dois copos de maduro tinto e umas lascas de bacalhau cru, falou-me de homem para homem:
– Andam para aí uns merdas a quererem endireitar-se comigo, mas eu depressa lhos meto na virilha. Fiz uma proposta aos cabos para levarmos o boi ao prémio. E os tipos, só para me fazerem à raiva, disseram que não. Que o boi não está convenientemente tratado, que ainda é muito novo, que mais isto e aquilo. Mas eu, quando se me mete uma coisa na cabeça, vou com ela até ao fim, nem que para isso tenha de enfrentar o diabo mais velho.
E eu que o ajudo, tio! Conte comigo!
Por isso é que eu te convoquei. Toma atenção. Amanhã, ao nascer do sol, deitas as vacas para o lameiro do Crasto. Depois, lá para as oito, vais à Lama e dizes ao João Sapateiro que precisas do boi para o deitares a uma vaca. Fazes que o tocas para o Crasto e bates com ele em Montalegre.
Ohl, tio! Mas eu não vou para a feira neste aparato...
Não te aflijas. Eu levo-te uma camisa lavada e as alpergatas.
Isso já é outro falar.
O João Sapateiro era o pastor do boi. Entregou-mo sem qualquer desconfiança.
Quando irrompi Toural dentro, roto e descalço, varapau ao alto, boi à minha frente e tudo de boca aberta a olhar para mim, não garanto mas aposto, que nem um pavão me levaria a melhor em garbo e prosápia.
À entrada do recinto reservado aos concorrentes, um figuro de papel na mão perguntou-me donde era o boi, se estava inscrito, em nome de quem e outros quesitos. A tudo respondi com língua expedita.
– Toca para acolá – disse, indicando-me o lugar destinado aos bois.
Já lá estava uma meia dúzia deles, de rabo voltado para o arame da cerca e cornadura para o interior. Todos eles tinham mais do que um guarda. Foi o que me valeu senão o de Peireses armava logo ali zaragata. Ajudaram-me a colocá-lo no sítio.
Estava eu a coçar com o ponta do pau o boi entre os cornos para ele levantar a cabeça, vem de lá o ti Pires a espirrar fumo pelas ventas e grita-me:
Quem te autorizou a trazer o boi para aqui, rapaz?
– O meu tio.
Neste preparo?! E olha que tu também estás bem preparado, não haja dúvida... Mas que dois malucos...
Atrás do ti Pires, outros vizinhos vieram, dispostos a fazer e acontecer. Mas eu aguentei firme, vergueiro em esquadria.
O boi daqui não sai!
P teu tio?
Ele aí vem.
Meu tio que eu já lobrigara a vigiar-me de longe, aproximou-se, casaco pendente do ombro esquerdo, vara na mão direita, chapéu braguês atirado para a nuca, passo de quem sabe a terra que pisa. A vara era de marmelo. Cientes da facilidade com que ele a transformava em de escaha-pessegueiro, os contestatários recolheram a língua à bainha. Meu tio entregou-me um saquitel que trazia dissimulado debaixo do casaco e disse-me:
– Vai aí atrás duma parede e muda de roupa.
Quando me vi de camisa lavada e alpergatas espanholas nos pés, dei um pulo de contente e outro à Rua Direita, a qual, aos dias de feira, mais parecia um Mercado Persa. Perdi-me a olhar para as tendas e para as moças. Quando regressei ao recinto do prémio, atrás da Câmara, já o júri tinha avaliado os concorrentes.
– Então? – perguntei.
– Parece-me que estamos codilhados – respondeu meu tio.
– Porquê?
Está aí o boi da Vila e o Presidente da Câmara não larga o júri...
E meu tio não tirava os olhos da mesa. De repente disse-me:
– Tiremos daqui o boi. Anda lá à frente.
Nisto vem de lá o veterinário a correr:
– Ó Marinheiro? Ó Marinheiro? Um momento. Deixe estar o boi.
– O senhor doutor veja lá o que diz!
Deixe estar o boi, digo-lho eu.
Voltámos para o lugar. Reparei que a vara de marmeleiro tremia ligeiramente na mão de meu tio. “Ainda vai haver aqui mostarda” – disse para comigo. Felizmente não houve. O veterinário cumpriu a palavra. Peireses em primeiro lugar.
Como que por milagre, acorreu o ti Pires, e, com ele, todos os vizinhos:
Viva Peireses! Viva o Marinheiro!
Todo o júri veio cumprimentar meu tio.
– Agora, para tudo acabar em bem, vamos chegar os bois – propôs o Presidente da Câmara.
“O que tu queres é desforrar-te...» disse para com os meus botões.
Isso não depende só de mim. Tenho de ouvir os meus vizinhos respondeu meu tio.
O que o Marinheiro disser é o que eles fazem.
Claro que chegamos. Porque não havemos de chegar? acudiu o ti Pires, que não perdia ensejo de lamber as botas ao Presidente da Câmara. “Bem sabeis. A gente precisa dele...» desculpava-se o finório, que a sabia toda.
Meu tio declinava responsabilidades:
O boi deles é mais pesado. Vede lá no que vos ides meter...
Mas está velho, Marinheiro...
Isso também é verdade.
Portanto?
Seja o que Deus quiser.
A luta foi longa e renhida. Mas o de Peireses acabou por poder...
Por acaso, estava na feira o famoso acordeonista Lucindo de Travassos, recentemente chegado de Lisboa. Meu tio convidou-o para animar a festa do triunfo. Uma noite de vivas, vinho e bailarico. O Lucindo trazia com ele o Perim aos ferinhos e o Peladete no bombo. Lembro-me do Peladete, alta madrugada, perdido de bêbado, sentado numa cadeira, língua de fora, a zurzir no bombo e a mijar-se pelas pernas abaixo. Uma noite memorável.
Resta-me acrescentar que o boi a que me refiro era um a que nós chamávamos o Gralhas, por ser natural da aldeia homónima. Nesses heróicos tempos, para bois, burros e vinho, não havia como os de Gralhas.

Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS II – Crónicas de Barroso (p. 99 e ss.)

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Pensões de aposentação e solidariedade entre gerações

JORGE MIRANDA 
Público - 08/10/2013 - 00:00
1. Uma das questões mais candentes que se estão suscitando em Portugal e noutros países vem a ser a das pensões de aposentação, por haver poderes públicos e correntes de opinião que pretendem diminuí-las ou tributá-las especificamente, em nome da necessidade de propiciar pensões no futuro aos que agora se encontram ativos.
A Constituição, como se sabe, incumbe o Estado de, sem prejuízo das instituições de solidariedade social, organizar, coordenar e subsidiar um sistema de Segurança Social e de proteger os cidadãos na velhice (art. 63.º, n.ºs 2, 3 e 5) e declara o direito das pessoas idosas à segurança económica (art. 72.º, n.º 1) (1) - direito esse que, segundo o acórdão n.º 576/96 do Tribunal Constitucional, de 16 de abril (2), tem por núcleo essencial o pagamento de pensões.
Mas, no acórdão n.º 187/2013, de 5 de abril (3), este tribunal não declarou inconstitucional o art. 78.º da lei orçamental para 2013 (a Lei n.º 66 B/2012, de 31 de dezembro) que (conquanto com antecedentes em leis orçamentais anteriores) criou uma "contribuição extraordinária de solidariedade" imposta aos pensionistas sobre a totalidade do valor mensal a partir de 1350 euros, segundo escalões sucessivos (n.º 1) e com taxas acumuladas no caso de pensões superiores a 3.50 euros (n.º 2).
2. Para a tese que fez vencimento, essa contribuição não seria um imposto (por ser uma receita consignada e sem caráter de completa unilateralidade). Seria, sim, uma contribuição para a Segurança Social, enquadrável no tertium genus das "demais contribuições financeiras a favor das entidades públicas" (4) do art. 165.º, n.º 1, alínea i) da Constituição. Não eram, portanto, para o caso mobilizáveis as regras do art. 104.º, nº 1 relativas ao imposto sobre o rendimento pessoal (n.º 74).
Os pensionistas afetados pela medida não se encontravam na mesma situação de quaisquer outros cidadãos, justamente porque beneficiários de pensões de reforma ou de aposentação e de complementos de reforma, e era a sua distintiva situação estatutária que determinava a incidência daquela contribuição, como medida conjuntural, com a finalidade específica de assegurar a sua participação no financiamento do sistema de segurança social, num contexto extraordinário de exigências de financiamento que, de outra forma, sobrecarregariam o Orçamento do Estado ou se transfeririam para as gerações futuras (n.º 75).
Não podia deixar de se reconhecer que as pessoas na situação de reforma ou aposentação, tendo chegado ao termo da sua vida ativa e obtido o direito ao pagamento de uma pensão calculada de acordo com as quotizações que deduziram para o sistema de Segurança Social, tinham expetativas legítimas na continuidade do quadro legislativo e na manutenção da posição jurídica de que eram titulares, não lhes sendo sequer exigível que tivessem feito planos de vida alternativos em relação a um possível desenvolvimento da atuação dos poderes públicos suscetível de se repercutir na sua esfera jurídica.
Todavia, em face do condicionalismo existente, não só as expetativas de estabilidade na ordem jurídica surgiam mais atenuadas como eram sobretudo atendíveis relevantes razões de interesse público que justificavam, em ponderação, uma excecional e transitória descontinuidade do comportamento estadual (n.º 79); e estava respeitado o princípio da proporcionalidade (n.º 80).
Tão pouco se verificaria violação de direitos patrimoniais, pois o cálculo do montante da pensão não teria de corresponder à aplicação de um princípio de correspetividade que pudesse resultar da capitalização individual das contribuições; mas radicava, antes, num critério de repartição assente num princípio de solidariedade, princípio este que apontaria para a responsabilidade coletiva das pessoas entre si na realização das finalidades do sistema e se concretizaria, num dos seus vetores, pela transferência de recursos entre cidadãos (n.º 81). Mesmo quanto aos complementos de reforma, que funcionam segundo um regime de capitalização, eles estariam associados ao sistema de Segurança Social na sua integralidade, e estando em causa a incidência de uma contribuição similar às quotizações dos trabalhadores no ativo, não se via em que termos é que esses rendimentos deviam encontrar-se cobertos pelo âmbito de proteção do direito de propriedade, quando ainda se estaria no domínio da parafiscalidade (n.º 82).
3. Votaram vencidos os juízes Pedro Machete, J. Cunha Barbosa, Catarina Sarmento e Castro, Maria José Rangel de Mesquita e Fernando Vaz Ventura. Em comum, os cinco juízes contestaram a natureza atribuída à "contribuição" e invocaram violação dos princípios de igualdade e de tutela da confiança. Não é possível aqui resumir essas declarações de voto.
4. Não custa acreditar que, por detrás da decisão de criar a "contribuição extraordinária de sustentabilidade", estiveram direta e imediatamente preocupações de índole financeira e apresentadas como conjunturais. Não deixaram, no entanto, também de estar presentes considerações sobre a solvabilidade do sistema de segurança social e olhares para o médio e o longo prazo.
Apesar disso, afiguram-se-me bem convincentes os argumentos aduzidos pelos juízes que votaram vencidos, desde logo quanto à natureza de imposto dessa espécie tributária, muito mais do que o discurso justificativo do acórdão. Até as razões do interesse público vindas dos órgãos do poder político e que o acórdão pareceu acolher o confirmavam.
E impressiona observar que são aqui sujeitos passivos os aposentados, com o peso da idade e, tantas vezes, de doença, a terem de o suportar, sem deixarem de ter de pagar o IRS - donde, violação do princípio da unicidade do imposto sobre o rendimento pessoal do art. 104.º, n.º 1 - e quaisquer outros impostos, como o IVA. E também de princípio de proporcionalidade. A Segurança Social está concebida para ajudar, entre outros, os idosos e, afinal, estes ainda têm de continuar a ajudá-la.
Há, por outro lado, uma afronta ao princípio da proteção da confiança (5). As pessoas que trabalharam toda a vida têm as legítimas expetativas de receber agora as pensões tal como foram definidas na altura própria e para as quais efetuaram os descontos legalmente estabelecidos nos seus salários. De resto, essas pessoas, enquanto ativas, também pagaram impostos através dos quais contribuíram para o sistema e, desde logo, para as pensões das gerações que as precederam (6). E, em muitos casos, são pessoas que somente agora ou há muitos poucos anos acederam a um patamar de libertação da extrema necessidade económica, ambiental e cultural em que antes, elas e os seus ascendentes, viveram. Ou pessoas que, na solidariedade familiar que, apesar de tudo, subsiste no nosso país, apoiam os filhos desempregados.
É certo que alguns pensionistas não contribuíram, nas suas carreiras ou nas funções que desempenharam, com montantes equivalentes aos que agora pretendem receber. Mas isso apenas obrigaria o legislador a distinguir, em vez de aplicar cegamente o mesmo regime a esses e aos demais, com preterição da igualdade e da proporcionalidade. E pode tratar se por igual quem esteve 45 anos na função pública (dos quais três de serviço militar obrigatório) até aos 70 anos e quem se aposentou ao fim de muito menos anos?
A responsabilidade entre gerações implica a consideração de uma cadeia de gerações (para empregar uma fórmula do grande constitucionalista alemão Peter Häberle), presentes, passadas e futuras; e implica um verdadeiro contrato, um contrato entre elas, avalizado pelo Estado e pelas instituições da sociedade civil. Fora desta consciência por todos assumida não faz sentido configurar qualquer tipo de responsabilidade ou apelar à sustentabilidade do sistema.
5. Reproduzindo uma frase paradigmática do próprio Tribunal Constitucional: "A Constituição não pode certamente ficar alheia à realidade económica e financeira e em especial à verificação de uma situação que se possa considerar como sendo de grave dificuldade. Mas ela possui uma específica autonomia normativa que impede que os objetivos económicos ou financeiros prevaleçam, sem quaisquer limites, sobre parâmetros como o da igualdade, que a Constituição defende e deve fazer cumprir" (7).
Resta esperar que, perante anúncios ameaçadores de mais cortes nas pensões, o Tribunal Constitucional venha a ser duplamente coerente: com esta afirmação e com o seu reconhecimento do caráter conjuntural da dita "contribuição extraordinária de solidariedade.
O que está em causa não é este ou aquele artigo avulso da Constituição - por mais importantes que sejam o art. 63.º ou o art. 72.º. O que está em causa é um complexo de princípios do Estado de direito democrático, comuns ao Direito Constitucional de todos os Estados da União Europeia e património da civilização jurídica.
1) A Constituição portuguesa e outras, como a italiana, de 1947, impondo à República "remover os obstáculos de ordem económica e social que, limitando, de facto, a liberdade e a igualdade dos cidadãos, impedem o pleno desenvolvimento da pessoa humana e a efetiva participação de todos os cidadãos na organização política e social do país" (art. 3.º) e assegurando aos trabalhadores "o direito, em caso de velhice, a meios de previdência social adequados às suas exigências de vida" (art. 38.º). Ou a Constituição espanhola, de 1978, adstringindo os poderes públicos a garantir, mediante pensões adequadas e periodicamente atualizadas, a suficiência económica dos cidadãos na terceira idade (art. 50.º).
Recorde-se também a Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia, em cujo art. 34.º, n.º 1 se lê "A União reconhece ou respeita o direito de acesso às prestações de Segurança Social e aos serviços sociais que concedem proteção em casos como a maternidade, a doença, os acidentes de trabalho, a dependência ou a velhice (...)".
2) Diário da República, 2.ª série, de 19 de junho de 1996.
3) Ibidem, de 22 de abril de 2013.
4) O acórdão fala em "serviços públicos", o que não é bem o mesmo.
5) Cfr. Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, IV, 5.ª ed., Coimbra, págs. 320 e segs., e autores citados.
6) Situação bem diferente é a das pensões de reforma, não contributivas, vindas das Leis n.ºs 26/84, de 31 de julho (art. 8.º) e 4/85, de 9 de abril (arts. 24.º e segs.), contrárias ao princípio da igualdade e ao princípio republicano de temporariedade dos cargos políticos (como escrevi no Manual ..., IV, 1.ª ed., 1988, págs. 60-61). A Lei n.º 52 A/2005, de 10 de outubro, extinguiu-as, mas - em nome da proteção da confiança - não afetou as daqueles que já as estivessem recebendo. Só que, em tempo de crise, é de lamentar que nenhum dos beneficiários (algumas centenas) a elas não tenha até hoje renunciado por um elementar imperativo de solidariedade nacional.
7) Acórdão n.º 353/2012, de 5 de julho, in Diário da República, 1.ª série, de 20 de julho de 2012.

Professor catedrático da Universidade de Lisboa e da Universidade Católica Portuguesa

domingo, 20 de outubro de 2013

Fernanda Palma: Crianças Ilegais


Crianças Ilegais:
Em Levier, na França, Leonarda Dibranni, uma menina com quinze anos, de origem kosovar e etnia cigana, participava numa excursão com os seus colegas quando tocou um telemóvel. A professora de Geografia atendeu o presidente da câmara, que passou a um polícia. Este ordenou-lhe que parasse o autocarro para deter a aluna, por estar em situação irregular.
Hoje, 01h00
Por: Fernanda Palma, Professora Catedrática de Direito Penal

Poucos minutos depois, a polícia deteve Leonarda à frente dos colegas. A adolescente foi deportada, algumas horas mais tarde, para Pristina, no Kosovo, juntamente com a mãe e cinco irmãos com idades compreendidas entre um e dezassete anos. Leonarda frequentava uma escola francesa há cinco anos, estava bem integrada e obteve sempre classificações elevadas.
Estes acontecimentos, que provocaram fortes protestos e manifestações massivas contra o ministro do interior francês, Manuel Valls, revelam que a Europa rica deixou de ser o coração da cultura humanista. O regresso a um nacionalismo anacrónico e a defesa da "realpolitik" em matéria de imigração deixaram de ser orientação exclusiva da extrema-direita xenófoba.
Porém, a captura desta adolescente, a poucos dias das eleições locais, revoltou os jovens franceses, que conseguiram vê-la como um dos seus e saíram à rua. Esta atitude voluntariosa transmite-nos a sensação reconfortante de que séculos de cultura podem ser desprezados por governantes e burocratas, mas ainda povoam os sonhos de justiça dos mais novos.
Temos de reconhecer a superioridade da solução portuguesa, que, através do programa "SEF vai à escola", criado em 2009, tem procurado evitar sempre situações desumanas de expulsão de crianças, numa orientação contrária à que foi seguida pelas autoridades francesas. Aliás, é difícil compreender a política francesa, numa Europa cada vez mais envelhecida.
A ação da polícia portuguesa parte da premissa de que a escola é um lugar de inclusão. As crianças que estão integradas numa cultura e partilham os seus valores não podem ser excluídas. Essa conclusão é imposta pela Convenção da ONU de 1989, pela qual os Estados se obrigam a respeitar os direitos das crianças independentemente da sua origem nacional.
Numa ocasião em que o Conselho da Europa dá orientações às jovens democracias sobre os direitos da criança, a velha e culta Europa não consegue inscrever no seu Direito uma ideia simples, que os adolescentes de Paris souberam formular: não há crianças ilegais. Cabe aos Estados assegurar o seu livre desenvolvimento no quadro da escola e da família.

Coimbra, 20 de Outubro 1976.

ANÁTEMA

Não amas, e não podes
Ler o livro da vida.
Sem amor nenhuns olhos são videntes.
A tarde triste é o sol que não consentes
Ao coração.
Mundo de solidão,
O que atravessas,
É um deserto habitado
Onde apenas tropeças
Na sombra do teu eu desencantado.

DIÁRIO (XII), Miguel Torga

sábado, 19 de outubro de 2013

O menino no sapatinho

     Era uma vez o menino pequenito, tão minimozito que todos seus dedos eram mindinhos. Dito assim, fino modo, ele, quando nasceu, nem foi dado à luz mas a uma simples fresta de claridade.
De tão miserenta, a mãe se alegrou com o destamanho do rebento – assim pediria apenas os menores alimentos. A mulher, em si, deu graças: que é bom a criança nascer assim desprovida de peso que é para não chamar os maus espíritos. E suspirava, enquanto contemplava a diminuta criatura. Olhar de mãe, quem mais pode apagar as feiuras e defeitos nos viventes?
     Ao menino nem se lhe ouvia o choro. Sabia-se de sua tristeza pelas lágrimas. Mas estas, de tão leves, nem lhe desciam pelo rosto. As lagriminhas subiam pelo ar e vogavam suspensas. Depois, se fixavam no teto e ali se grutavam, missangas tremeluzentes.
     Ela pegava no menino, com uma só mão. E falava, mansinho, para essa concha. Na realidade, não falava: assobiava, feita uma ave. Dizia que o filho não tinha entendimento para palavra. Só língua de pássaro lhe tocaria o reduzido coração. Quem podia entender? Ele há dessas coisas tão subtis, incapazes mesmo de existir. Como essas estrelas que chegam até nós mesmo depois de terem morrido. A senhora não se importava com os dizquedizeres. Ela mesmo tinha aprendido a ser de outra dimensão, florindo como o capim: sem cor nem cheiro.
     A mãe só tinha fala na igreja. No resto, pouco falava. O marido, descrente de tudo, nem tinha tempo para ser desempregado. O homem era um fiorrapo, despacha-gargalos, entorna-fundos. Do bar para o quarto, de casa para a cervejaria.
     Pois, aconteceu o seguinte: dadas as dimensões de sua vida e não havendo berço à medida, a mãe colocou o menininho num sapato. E cujo era o esquerdo do único par, o do marido. De então em diante, o homem passou a calçar de um só pé. Só na ida isso o incomodava. Na volta, ele nem se apercebia de ter pés, dois na mesma direção.
     Em casa, na quentura da palmilha, o miúdo aprendia já o lugar do pobre: nos embaixos do mundo. Junto ao chão, tão rés e rasteiro que, em morrendo, dispensaria quase o ser enterrado. Uma peúga desirmandada lhe fazia de cobertor. O frio estreitasse e a mulher se levantava de noite para repuxar a trança dos atacadores. Assim lhe calçava um aconchego. Todas as manhãs, de prevenção, ela avisava os demais e demasiados:
     – Cuidado, já dentrei o menino no sapato.
     Que ninguém, por descuido, o calçasse. Muito-muito, o marido quando voltava bêbado e queria sair uma vez mais, desnoitado, sem distinguir o mais esquerdo do menos esquerdo. A mulher não deixava que o berço fugisse da vislembrança dela. Porque o marido já se outorgava, cheio de queixa:
     – Então, ando para aqui improvisar um coxinbo?
     – É seu filho, pois não?
     – O diabo que te descarregue!
     E apontava o filhote: o individuozito interrompia o seu calçado? Pois que, sendo aqueles seus exclusivos e únicos sapatos, ele se despromoveria para um chinelado?
     – Sim – respondeu a mulher. – Eu já lhe dei os meus chinelos.
     Mas não dava jeito naqueles areais do bairro. Ela devia saber: a pessoa pisa o chão e não sabe se há mais areia em baixo que em cima do pé.
     – Além disso, eu é que paguei os tais sapatos.
     Palavras. Porque a mãe respondia com sentimentos:
     – Veja o seu filho, parece o Jesuzinbo empalhado, todo embrulhadinho nos bichos de cabedal.
     Ainda o filho estava melhor que Cristo – ao menos um sapato já não é bicho em bruto. Era o argumento dela mas ele, nem querendo saber, subia de tom:
     – Cá se jazem, cá se apagam!
     O marido azedava e começou a ameaçar: se era para lhe desalojar o definitivo pé, então, o melhor seria desfazerem-se do vindouro. A mãe, estarrecida, fosse o fim de todos os mundos:
     – Vai o quê jazer?
     – Vou é desfazer.
     Ela prometia-lhe um tempo, na espera que o bebé graudasse. Mas o assunto azedava e até degenerou em soco, punhos ciscando o escuro. Os olhos dela, amendoídos ainda, continuaram espreitando o improvisado berço. Ela sabia que os anjos da guarda estão a preços que os pobres nem ousam.
     Até que o ano findou, esgotada a última folha do calendário. Vinda da igreja, a mãe descobriu-se do véu e anunciou que iria compor a árvore de Natal. Sem despesa nem sobrepeso. Tirou à lenha um tosco arbusto. Os enfeites eram tampinhas de cerveja, sobras da bebedeira do homem. Junto à árvore ela rezou com devoção de Eva antes de haver a macieira. Pediu a Deus que fosse dado ao seu menino o tamanho que lhe era devido. Só isso, mais nada. Talvez, depois, um adequado berço. Ou quem sabe, um calçado novo para o seu homem. Que aquele sapato já espreitava pelo umbigo, o buraco na frente autorizando o frio.
     Na sagrada antenoite, a mulher fez como aprendera dos brancos: deixou o sapatinho na árvore para uma qualquer improbabilíssima oferta que lhe miraculasse o lar.
     No escuro dessa noite, a mãe não dormiu, seus ouvidos não esmoreceram. Despontavam as primeiras horas quando lhe pareceu escutar passos na sala. E depois, o silêncio. Tão espesso que tudo se afundou e a mãe foi engolida pelo cansaço.
     Acordou cedo e foi direta ao arbusto de Natal. Dentro do sapato, porém, só o vago vazio, a redonda concavidade do nada. O filho desaparecera? Não para os olhos da mãe. Que ele tinha sido levado por Jesus, rumo aos céus, onde há um mundo apto para crianças. Descida em seus joelhos, agradeceu a bondade divina. De relance, ainda notou que lá no teto já não brilhavam as lágrimas do seu menino. Mas ela desviou o olhar, que essa é a competência de mãe: o não enxergar nunca a curva onde o escuro faz extinguir o mundo.
Mia Couto | na berma de nenhuma estrada