E agora? Eu não
sei como é que os escribas meus irmãos se aguentam com o vazio que nos torna
ocos no ser-se humano quando acabam um livro. É terrível. Não estou ainda
propriamente esvaziado do romance que escrevi pela razão de me preencher a
expectativa do que vão dizer-me. Porque o livro sai esta semana e há que
digerir os comentários dos críticos e leitores comuns. Mas é isso subsidiário
como a arrumado do que resta de um banquete no lixo e louça para lavar. O que
me aflige é pois o que se vai seguir. Mais romance não, porque estou farto de
literatura e as contas do irmão corpo estão a saldar. Mas ser vago e aleatório
como as moscas também não. A França está a descobrir que eu existo e isso
também me pareceu o lado mais oculto da vaidade e comprazimento. Ainda há dias,
não o disse ainda?, um crítico declarava que Aparição era um très grand
roman. Descontada a amabilidade e mesmo possíveis relações de compromisso
com a editora, fica ainda substância alimentícia para o meu contentamento. Mas
e agora? Pois bem, agora volto à filosofia. Não à sua secura deontológica mas a
uma mistura com o ingrediente emotivo que já entrou ao serviço em Invocação e mesmo em Carta ao Futuro. E para dizer o quê?
Para dizer tudo. Espalhei pelos meus
livros muita matéria aproveitável que posso meter ao serviço. Estou a reler o
Kant e o Heidegger e vou regressar a Hegel e Croce, outros luminares. Mas há o
receio de que se me preguem ao miolo e se intrometam onde não quero que sejam
chamados. Sentimento estético, verdade, equilíbrio interno, sagrado, História e
o mais da minha tralha especulativa são uma promessa de me desenrascar. Terei
assim a possibilidade de dizer coisas com molho sensível para juntar a ideia à
emoção. Talvez vá começar a aventura com uma meditação sobre o FIM, que é a morte mais viável para
depois glosar no resto. O fim arrasta
consigo uma conotação que pode modular o que se seguir. Vou ver se me dou o
sinal de partida como no atletismo. E se rebentar antes da meta, paciência. De
bons propósitos está o inferno cheio. Mas a terra e o paraíso também. Quero lá
saber. Quero é não cair no desemprego que só dá trabalhos às instituições de
beneficência. O resto que se lixe. Não quero esmolas, quero viver do meu
trabalho. E morrer, se for caso disso, de ferramenta nas mãos. O resto que se
coza.
*
O sol que escorre
da janela e se derrama não chão e aí brilha na intimidade fechada do
escritório. Um pássaro que canta no incerto e irreal. Uma flor. Um cão que
ladra no inimaginável. O rumor de um carro que passa na estrada. Tudo isto e o
mais são o real imediato para uma atenção imediata. Mas de tudo isso transborda
um mistério oculto para quem entende e interroga. Como é que só na arte esse
mistério se diz existir? A arte não o inventa, mas apenas o sabe revelar.
Porque ele está em todo o real, na sua parte oculta que espera uma atenção
desprevenida para vir até ela. Todo o real o mais sabido e exposto e imediato e
pobre estende atrás de si um prolongamento de sombra e invisível até à sua dissolução
no infinito inatingível. O mistério não começa na arte mas na nossa profundeza
de o enfrentar. Ele não começa na arte porque nela só começa a sua revelação
para quem o não souber ver. Olha. Escuta. E a vida se te desdobrará na
infinitude que é sua. E tu a viverás sem a desperdiçares no incomensurável da
sua grandeza. E terás vivido sem nada deixares atrás quando ouvires o sinal de
que é a hora.
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