domingo, 19 de maio de 2013

19 – Maio (sábado). [1990]

E agora? Eu não sei como é que os escribas meus irmãos se aguentam com o vazio que nos torna ocos no ser-se humano quando acabam um livro. É terrível. Não estou ainda propriamente esvaziado do romance que escrevi pela razão de me preencher a expectativa do que vão dizer-me. Porque o livro sai esta semana e há que digerir os comentários dos críticos e leitores comuns. Mas é isso subsidiário como a arrumado do que resta de um banquete no lixo e louça para lavar. O que me aflige é pois o que se vai seguir. Mais romance não, porque estou farto de literatura e as contas do irmão corpo estão a saldar. Mas ser vago e aleatório como as moscas também não. A França está a descobrir que eu existo e isso também me pareceu o lado mais oculto da vaidade e comprazimento. Ainda há dias, não o disse ainda?, um crítico declarava que Aparição era um très grand roman. Descontada a amabilidade e mesmo possíveis relações de compromisso com a editora, fica ainda substância alimentícia para o meu contentamento. Mas e agora? Pois bem, agora volto à filosofia. Não à sua secura deontológica mas a uma mistura com o ingrediente emotivo que já entrou ao serviço em Invocação e mesmo em Carta ao Futuro. E para dizer o quê? Para dizer tudo. Espalhei pelos meus livros muita matéria aproveitável que posso meter ao serviço. Estou a reler o Kant e o Heidegger e vou regressar a Hegel e Croce, outros luminares. Mas há o receio de que se me preguem ao miolo e se intrometam onde não quero que sejam chamados. Sentimento estético, verdade, equilíbrio interno, sagrado, História e o mais da minha tralha especulativa são uma promessa de me desenrascar. Terei assim a possibilidade de dizer coisas com molho sensível para juntar a ideia à emoção. Talvez vá começar a aventura com uma meditação sobre o FIM, que é a morte mais viável para depois glosar no resto. O fim arrasta consigo uma conotação que pode modular o que se seguir. Vou ver se me dou o sinal de partida como no atletismo. E se rebentar antes da meta, paciência. De bons propósitos está o inferno cheio. Mas a terra e o paraíso também. Quero lá saber. Quero é não cair no desemprego que só dá trabalhos às instituições de beneficência. O resto que se lixe. Não quero esmolas, quero viver do meu trabalho. E morrer, se for caso disso, de ferramenta nas mãos. O resto que se coza.
*
O sol que escorre da janela e se derrama não chão e aí brilha na intimidade fechada do escritório. Um pássaro que canta no incerto e irreal. Uma flor. Um cão que ladra no inimaginável. O rumor de um carro que passa na estrada. Tudo isto e o mais são o real imediato para uma atenção imediata. Mas de tudo isso transborda um mistério oculto para quem entende e interroga. Como é que só na arte esse mistério se diz existir? A arte não o inventa, mas apenas o sabe revelar. Porque ele está em todo o real, na sua parte oculta que espera uma atenção desprevenida para vir até ela. Todo o real o mais sabido e exposto e imediato e pobre estende atrás de si um prolongamento de sombra e invisível até à sua dissolução no infinito inatingível. O mistério não começa na arte mas na nossa profundeza de o enfrentar. Ele não começa na arte porque nela só começa a sua revelação para quem o não souber ver. Olha. Escuta. E a vida se te desdobrará na infinitude que é sua. E tu a viverás sem a desperdiçares no incomensurável da sua grandeza. E terás vivido sem nada deixares atrás quando ouvires o sinal de que é a hora.

Sem comentários:

Enviar um comentário