sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Dia 30 [Setembro de 2008]

Esperanças e utopias

Sobre as virtudes da esperança tem-se escrito muito e parolado muito mais. Tal como sucedeu e continuará a suceder com as utopias, a esperança foi sempre, ao longo dos tempos, uma espécie de paraíso sonhado dos cépticos. E não só dos cépticos. Crentes fervorosos, dos de missa e comunhão, desses que estão convencidos de que levam por cima das suas cabeças a mão compassiva de Deus a defendê-los da chuva e do calor, não se esquecem de lhe rogar que cumpra nesta vida ao menos uma pequena parte das bem-aventuranças que prometeu para a outra. Por isso, quem não está satisfeito com o que lhe coube na desigual distribuição dos bens do planeta, sobretudo os materiais, agarra-se à esperança de que o diabo nem sempre estará atrás da porta e de que a riqueza lhe entrará um dia, antes cedo que tarde, pela janela dentro. Quem tudo perdeu, mas teve a sorte de conservar ao menos a triste vida, considera que lhe assiste o humaníssimo direito de esperar que o dia de amanhã não seja tão desgraçado como o está sendo o dia de hoje. Supondo, claro, que haja justiça neste mundo. Ora, se nestes lugares e nestes tempos existisse algo que merecesse semelhante nome, não a miragem do costume com que se iludem os olhos e a mente, mas uma realidade que se pudesse tocar com as mãos, é evidente que não precisaríamos de andar todos os dias com a esperança ao colo, a embalá-la, ou embalados nós ao colo dela. A simples justiça (não a dos tribunais, mas a daquele fundamental respeito que deveria presidir às relações entre os humanos) se encarregaria de pôr todas as coisas nos seus justos lugares. Dantes, ao pobre de pedir a quem se tinha acabado de negar a esmola, acrescentava-se hipocritamente que “tivesse paciência”. Penso que, na prática, aconselhar alguém a que tenha esperança não é muito diferente de aconselhá-la a ter paciência. É muito comum ouvir-se dizer da boca de políticos recém-instalados que a impaciência é contra-revolucionária. Talvez seja, talvez, mas eu inclino-me a pensar que, pelo contrário, muitas revoluções se perderam por demasiada paciência. Obviamente, nada tenho de pessoal contra a esperança, mas prefiro a impaciência. Já é tempo de que ela se note no mundo para que alguma coisa aprendam aqueles que preferem que nos alimentemos de esperanças. Ou de utopias.
José Saramago, O CADERNO

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Aplysina archeri

Aplysina archeri (Stove-pipe Sponge-pink variation).jpg
Aplysina archeri, espécie de porifera.

Dia 29 [Setembro de 2008]

Claro como água

Como sempre sucedeu, e há-de suceder sempre, a questão central de qualquer tipo de organização social humana, da qual todas as outras decorrem e para a qual todas acabam por concorrer, é a questão do poder, e o problema teórico e prático com que nos enfrentamos é identificar quem o detém, averiguar como chegou a ele, verificar o uso que dele faz, os meios de que se serve e os fins a que aponta. Se a democracia fosse, de facto, o que com autêntica ou fingida ingenuidade continuamos a dizer que é, o governo do povo pelo povo e para o povo, qualquer debate sobre a questão do poder perderia muito do seu sentido, uma vez que, residindo o poder no povo, era ao povo que competiria a administração dele, e, sendo o povo a administrar o poder, está claro que só o deveria fazer para seu próprio bem e para sua própria felicidade, pois a isso o estaria obrigando aquilo a que chamo, sem nenhuma pretensão de rigor conceptual, a lei da conservação da vida. Ora, só um espírito perverso, panglossiano até ao cinismo, ousaria apregoar a felicidade de um mundo que, pelo contrário, ninguém deveria pretender que o aceitemos tal qual é, só pelo facto de ser, supostamente, o melhor dos mundos possíveis. É a própria e concreta situação do mundo chamado democrático, que se é verdade serem os povos governados, verdade é também que não o são por si mesmos nem para si mesmos. Não é em democracia que vivemos, mas sim numa plutocracia que deixou de ser local e próxima para tornar-se universal e inacessível.
Por definição, o poder democrático terá de ser sempre provisório e conjuntural, dependerá da estabilidade do voto, da flutuação das ideologias ou dos interesses de classe, e, como tal, pode ser entendido como um barómetro orgânico que vai registando as variações da vontade política da sociedade. Mas, ontem como hoje, e hoje com uma amplitude cada vez maior, abundam os casos de mudanças políticas aparentemente radicais que tiveram como efeito radicais mudanças de governo, mas a que não se seguiram as mudanças económicas, culturais e sociais radicais que o resultado do sufrágio havia prometido. Dizer hoje governo “socialista”, ou “social-democrata”, ou “conservador”, ou “liberal”, e chamar-lhe poder, é pretender nomear algo que em realidade não está onde parece, mas em um outro inalcançável lugar – o do poder económico e financeiro cujos contornos podemos perceber em filigrana, mas que invariavelmente se nos escapa quando tentamos chegar-lhe mais perto e inevitavelmente contra-ataca se tivermos a veleidade de querer reduzir ou regular o seu domínio, subordinando-o ao interesse geral. Por outras e mais claras palavras, digo que os povos não elegeram os seus governos para que eles os “levassem” ao Mercado, mas que é o Mercado que condiciona por todos os modos os governos para que lhe “levem” os povos. E se falo assim do Mercado é porque é ele, hoje, e mais que nunca em cada dia que passa, o instrumento por excelência do autêntico, único e insofismável poder, o poder económico e financeiro mundial, esse que não é democrático porque não o elegeu o povo, que não é democrático porque não é regido pelo povo, que finalmente não é democrático porque não visa a felicidade do povo.
O nosso antepassado das cavernas diria: “É água”. Nós, um pouco mais sábios, avisamos: “Sim, mas está contaminada”.
José Saramago, O CADERNO

terça-feira, 27 de setembro de 2011

27 de Setembro

• O escritor Ramalho Ortigão faleceu em 1915, autor de O Mistério da Estrada de Sintra, elaborado em parceria com Eça de Queirós.

• 1998 - Criação do site de busca Google.

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Suricata

Erdmännchen, Suricata suricatta 1.JPG
Suricata (Suricata suricatta).

Dia 26 [Setembro de 2008]

A prova do algodão

Segundo a Carta do Direitos Humanos, no seu artigo 12º.: “Ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida, na sua família ou na sua correspondência, nem ataques à sua honra e reputação”. E mais: “Contra tais intromissões ou ataques toda a pessoa tem direito a protecção da lei”. Assim está escrito. O papel exibe, entre outras, a assinatura do representante dos Estados Unidos, a qual assumiria, por via de consequência, o compromisso dos Estados Unidos no que toca ao cumprimento efectivo das disposições contidas na mesma Carta, porém, para vergonha sua e nossa, essas disposições nada valem, sobretudo quando a mesma lei que deveria proteger, não só não o faz, como homologa com a sua autoridade as maiores arbitrariedades, incluindo aquelas que o dito artigo 12º. enumera para condenar. Para os Estados Unidos qualquer pessoa, seja emigrante ou simples turista, indiferentemente da sua actividade profissional, é um delinquente potencial que está obrigado, como em Kafka, a provar a sua inocência sem saber de que o acusam. Honra, dignidade, reputação, são palavras hilariantes para os cães cerberos que guardam as entradas do país. Já conhecíamos isto, já o havíamos experimentado em interrogatórios conduzidos intencionalmente de forma humilhante, já tínhamos sido olhados pelo agente de turno como se fôssemos o mais repugnante dos vermes. Enfim, já estávamos habituados a ser maltratados.
Mas agora surge algo novo, uma volta mais ao parafuso opressor. A Casa Branca, onde se hospeda o homem mais poderoso do planeta, como dizem os jornalistas em crise de inspiração, a Casa Branca, insistimos, autorizou os agentes de polícia das fronteiras a analisar e revisar documentos de qualquer cidadão estrangeiro ou norte-americano, ainda que não existam suspeitas de que essa pessoa tenha intenção de participar num atentado. Tais documentos serão conservados “por um razoável espaço de tempo” numa imensa biblioteca onde se guarda todo o tipo de dados pessoais, desde simples agendas de contactos a correios electrónicos supostamente confidenciais. Ali se irá guardando também uma quantidade incalculável de cópias de discos duros dos nossos computadores de cada vez que nos apresentarmos para entrar nos Estados Unidos por qualquer das suas fronteiras. Com todos os seus conteúdos: trabalhos de investigação científica, tecnológica, criativa, teses académicas, ou um simples poema de amor. “Ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada”, diz o pobre do artigo 12º. E nós dizemos: veja-se o pouco que vale a assinatura de um presidente da maior democracia do mundo.
Aqui está. Praticámos sobre os Estados Unidos a infalível prova do algodão, e eis o que verificámos: não se limitam a estar sujos, estão sujíssimos.
José Saramago, O CADERNO

LUÍS DE CAMÕES E OS ROUXINÓIS


Hoje, 10 de Junho, dia de Portugal e das Comunidades, levantei-me com o sol e saí para os campos a pensar em Luís de Camões. Há quantos anos teria morrido? Pus-me a fazer contas pelos dedos, método outrora aprendido com mestre Saias e ainda hoje infalível. Quatrocentos e tal anos. Há quatrocentos e muitos anos que o imortal cantor dos Lusíadas morreu miseravelmente num miserável catre de misericórdia e foi a enterrar envolto num lençol cedido por esmola. Hoje ninguém sabe onde lhe param os ossos.
Mas todos sabem onde lhe pára a obra. Todos sabem que ele é, de longe, o) maior poeta de Portugal e um dos maiores do mundo. O que ninguém saberá é que Luís de Camões sempre foi o meu poeta predilecto e aquele de quem mais poesias sei de cor.
E para provar a mim mesmo que ainda estou em forma, recitei, calhelha fora, o soneto «Aquela triste e leda madrugada» e as redondilhas «Sobolos rios que vão».
O soneto fala-nos de coitas de amor a que eu, com o decorrer dos anos, fui ficando imunizado, mas de modo algum insensível.
As redondilhas, da renúncia aos prazeres deste mundo com vista a alcançar a bem-aventurança no outro.
Neste ponto, que Luís de Camões me perdoe, mas não estou muito de acordo. Ele era um homem culto e, decerto, sabia o que dizia. Mas eu não passo dum campónio que, apesar da idade, ainda aprecio as coisas boas desta vida. Não todas, evidentemente, mas as que me restam e às quais ainda não estou disposto a renunciar. Esta «leda madrugada», esta aragem, este perfume, esta deliciosa sinfonia dos pássaros no silêncio dos campos. Os tentilhões, as rolas, os pombos bravos, as codornizes, os cucos, as poupas, as andorinhas, os pardais, as calhandras, os melros, os rouxinóis.
«Tale! Lá está um» – disse para comigo. E avancei, pé ante pé, para o tronco dum castanheiro, donde me parecia vir o canto. Ali estive, de nariz no ar e olhos arregalados, um ror de tempo. Por fim lá descortinei o pequeno cantor empoleirado num raminho da copa da árvore, mesmo por cima da minha cabeça. Quedei imóvel, respiração suspensa, literalmente embebido naquela suave melodia, a perguntar a mim mesmo como é que um pássaro tão pequeno podia cantar tão bem.
Ainda eu não acabara de formular a pergunta, já ele levantava voo. Temi que fosse para longe. Mas não. Apenas mudou de árvore. Aproximei-me para ouvir de mais perto.
De repente, lembrei-me daquela história de Manuel Bernardes que reza assim:
«Estando um monge em matinas com os outros religiosos do seu mosteiro, quando chegaram àquilo do salmo onde se diz «que mil anos à vista de Deus são como o dia de ontem que já passou», admirou-se grandemente e começou a imaginar como aquilo podia ser. Acabadas as matinas, ficou em oração, como tinha de costume, e pediu afectuosamente a nosso Senhor se servisse de lhe dar a inteligência daquele verso.
Apareceu-lhe ali no coro um passarinho, que, cantando suavissimamente, andava diante dele, dando voltas duma para outra parte, e deste modo o foi levando pouco a pouco até um bosque que estava junto do mosteiro, e ali fez seu assento sobre uma árvore; e o servo de Deus se pôs debaixo dela a ouvir. Dali a um breve intervalo (conforme o monge julgava) tomou voo e desapareceu com grande mágoa do servo de Deus, o qual dizia, mui sentido:
– Ó passarinho da minha alma, para onde te foste tão depressa?
Como o passarinho não voltasse, voltou o monge para o mosteiro, onde ninguém o reconheceu. Havia passado trezentos anos enlevado no breve gorjeio do passarinho...»
«Olha que espiga! E se a mim me aconteceu o mesmo?»
Corri para casa.
Afinal continuava tudo na mesma.
Todos os vizinhos que encontrei me reconheceram.
Pardeus! Que alívio...
VIVA LUÍS DE CAMÕES!


Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS – Crónicas de Barroso (p. 174 e ss.)

domingo, 25 de setembro de 2011

Fantasie Sylvius Leopold Weiss

Dia 25 [Setembro de 2008]

Pura aparência

Suponho que no princípio dos princípios, antes de havermos inventado a fala, que é, como sabemos, a suprema criadora de incertezas, não nos atormentaria nenhuma dúvida séria sobre quem fôssemos e sobre a nossa relação pessoal e colectiva com o lugar em que nos encontrávamos. O mundo, obviamente, só podia ser o que os nossos olhos viam em cada momento, e também, como informação complementar importante, aquilo que os restantes sentidos – o ouvido, o tacto, o olfacto, o gosto – conseguissem perceber dele. Nessa hora inicial o mundo foi pura aparência e pura superfície. A matéria era simplesmente áspera ou lisa, amarga ou doce, azeda ou insípida, sonora ou silenciosa, com cheiro ou sem cheiro. Todas as coisas eram o que pareciam ser pela única razão de que não havia qualquer motivo para que parecessem doutra maneira e fossem outra coisa. Naquelas antiquíssimas épocas não nos passava pela cabeça que a matéria fosse “porosa”. Hoje, porém, embora sabedores de que, desde o último dos vírus até ao universo, não somos mais do que composições de átomos, e que no interior deles, além da massa que lhes é própria e os define, ainda sobra espaço para o vazio (o compacto absoluto não existe, tudo é penetrável), continuamos, tal como o haviam feito os nossos antepassados das cavernas, a apreender, identificar e reconhecer o mundo segundo a aparência com que de cada vez se nos apresente. Imagino que o espírito filosófico e o espírito científico deverão ter-se manifestado num dia em que alguém teve a intuição de que essa aparência, ao mesmo tempo que imagem exterior captável pela consciência e por ela utilizada como mapa de conhecimentos, podia ser, também, uma ilusão dos sentidos. Se bem que habitualmente mais referida ao mundo moral que ao mundo físico, é conhecida a expressão popular em que aquela veio a plasmar-se: “As aparências iludem”. Ou enganam, que vem a dar no mesmo. Não faltariam os exemplos se o espaço desse para tanto.
A este escrevinhador sempre o preocupou o que se esconde por trás das meras aparências, e agora não estou a falar de átomos ou de subpartículas, que, como tal, são sempre aparência de algo que se esconde. Falo, sim, de questões correntes, habituais, quotidianas, como, por exemplo, o sistema político que denominamos democracia, aquele mesmo que Churchill dizia ser o menos mau dos sistemas conhecidos. Não disse o melhor, disse o menos mau. Pelo que vamos vendo, dir-se-á que o consideramos mais que suficiente, e esse, creio, é um erro de percepção que, sem nos apercebermos, vamos pagando todos os dias. Voltarei ao assunto.
José Saramago, O CADERNO

DIÁRIO (XIII)

Coimbra, 25 de Setembro de 1979 – Não sei o que hei-de fazer à vida. Começo a senti-la como um pesadelo de que necessito acordar o mais depressa possível.

25 de Setembro

• 1964 - Dá-se o início da luta armada pela independência de Moçambique. Obrigatoriamente, fui chamado a embarcar para lá, no Vera Cruz, em 24 de Abril de 1968 e regressei, para o país europeu, em meados de 1970. 

• Dia Mundial do Coração.

sábado, 24 de setembro de 2011

Silvius Leopold Weiss - Capriccio in D Major

Dia 24 [Setembro de 2008]

Divórcios e bibliotecas
Por duas vezes, ou talvez tivessem sido três, apareceram-me na Feira do Livro de Lisboa, em anos passados, outros tantos leitores, os dois ou os três, ajoujados ao peso de dezenas de volumes novos, comprados de fresco, e em geral ainda acondicionados nos sacos de plástico de origem. Ao primeiro que assim se me apresentou fiz-lhe a pergunta que me pareceu mais lógica, isto é, se o seu encontro com o meu trabalho de escritor havia sido para ele coisa recente e, pelos vistos, fulminante. Respondeu-me que não, que me lia desde há muito tempo, mas que se tinha divorciado, e que a ex-esposa, também leitora entusiasta, havia levado para a sua nova vida a biblioteca da família agora desfeita. Ocorreu-me então, e sobre isso escrevi umas linhas nos velhos Cadernos de Lanzarote, que seria interessante estudar o assunto do ponto de vista do que nessa altura designei como a importância dos divórcios na multiplicação das bibliotecas. Reconheço que a ideia era algo provocadora, por isso deixei-a em paz, ao menos para não vir a ser acusado de colocar os meus interesses materiais acima da harmonia dos casais. Não sei, nem o imagino, quantas separações conjugais terão dado origem à formação de novas bibliotecas sem prejuízo das antigas. Dois ou três casos, que tantos são os que conheci, não foram suficientes para fazer nascer uma primavera, ou, por palavras mais explícitas, por aí não melhoraram nem os lucros do editor, nem a minha cobrança de direitos de autor.
O que eu francamente não esperava era que a crise económica que nos vem mantendo em estado de alerta contínuo tivesse vindo dificultar ainda mais os divórcios e, portanto, a ambicionada progressão aritmética das bibliotecas, o que, aspecto em que certamente todos estaremos de acordo, significa um autêntico atentado contra a cultura. Que dizer, por exemplo, do problema complexo, e não poucas vezes insolúvel, que é conseguir encontrar hoje comprador para um andar? Se muitos processos de divórcio se encontram estancados, se não avançam nos tribunais, a causa é essa, e não outra. Pior ainda, como deverá proceder-se contra certos comportamentos escandalosos já de domínio público, como é o caso, lamentavelmente frequente e absolutamente imoral, de se continuar a viver na mesma casa, talvez não a dormir na mesma cama, mas a utilizar a mesma biblioteca? Perdeu-se o respeito, perdeu-se o sentido de decoro, eis a desgraçada situação a que chegámos. E não se diga que a culpa é de Wall Street: nas comédias de televisão que eles financiam não se vê um único livro.
José Saramago, O CADERNO

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Dia 23 [Setembro de 2008]

Biografias

Creio que todas as palavras que vamos pronunciando, todos os movimentos e gestos, concluídos ou somente esboçados, que vamos fazendo, cada um deles e todos juntos, podem ser entendidos como peças soltas de uma autobiografia não intencional que, embora involuntária, ou por isso mesmo, não seria menos sincera e veraz que o mais minucioso dos relatos de uma vida passada à escrita e ao papel. Esta convicção de que tudo quanto dizemos e fazemos ao longo do tempo, mesmo parecendo desprovido de significado e importância, é, e não pode impedir-se de o ser, expressão biográfica, levou-me a sugerir um dia, com mais seriedade do que à primeira vista possa parecer, que todos os seres humanos deveriam deixar relatadas por escrito as suas vidas, e que esses milhares de milhões de volumes, quando começassem a não caber na Terra, seriam levados para a Lua. Isto significaria que a grande, a enorme, a gigantesca, a desmesurada, a imensa biblioteca do existir humano teria de ser dividida, primeiro, em duas partes, e logo, com o decorrer do tempo, em três, em quatro, ou mesmo em nove, na suposição de que nos oito restantes planetas do sistema solar, houvesse condições de ambiente tão benévolas que respeitassem a fragilidade do papel. Imagino que os relatos daquelas muitas vidas que, por serem simples e modestas, coubessem em apenas meia dúzia de folhas, ou ainda menos, seriam despachados para Plutão, o mais distante dos filhos do Sol, aonde de certeza raramente quereriam viajar os investigadores.
Decerto se levantariam problemas e dúvidas na hora de estabelecer e definir os critérios de composição das ditas “biobliotecas”. Seria indiscutível, por exemplo, que obras como os diários de Amiel, de Kafka ou de Virginia Woolf, a biografia de Samuel Johnson, a autobiografia de Cellini, as memórias de Casanova ou as confissões de Rousseau, a par de tantas outras de importância humana e literária semelhante, deveriam permanecer no planeta onde haviam sido escritas para que fossem testemunho da passagem por este mundo de homens e mulheres que, pelas boas ou más razões do que tinham vivido, deixaram um sinal, uma presença, uma influência que, tendo perdurado até hoje, continuarão a deixar marcadas as gerações vindouras. Os problemas surgiriam quando sobre a escolha do que deveria ficar ou enviar ao espaço exterior começassem a reflectir-se as inevitáveis valorações subjectivas, os preconceitos, os medos, os rancores antigos ou recentes, os perdões impossíveis, as justificações tardias, tudo o que na vida é assombração, desespero e agonia, enfim, a natureza humana. Creio que, afinal, o melhor será deixar as coisas como estão. Como a maior parte da melhores ideias, também esta minha é impraticável. Paciência.
José Saramago, O CADERNO

DIÁRIO (XIII)

S. Martinho de Anta, 23 de Setembro de 1979 – Princípio de Outono. Os frutos amadurecem no quintal e as flores empalidecem no jardim. Há um estremecimento de morte na natureza. E esse arrepio de inquietação tem eco no meu sangue. Sinto-me em perigo de vida só pelo facto de existir.

23 de Setembro

• 1846 - Johann Galle descobre o oitavo planeta do Sistema Solar, Neptuno/Netuno.
• 1976 - Início do I Governo Constitucional de Portugal, chefiado por Mário Soares.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

22 de Setembro

• Falece Aristides Pereira, o primeiro presidente de Cabo Verde.

Dia 22 [Setembro de 2008]

Aznar, o oráculo
Podemos dormir descansados, o aquecimento global não existe, é um invento malicioso dos ecologistas na linha estratégica da sua «ideologia em deriva totalitária», consoante a definiu o implacável observador da política planetária e dos fenómenos do universo que é José María Aznar. Não saberíamos como viver sem este homem. Não importa que qualquer dia comecem a nascer flores no Árctico, não importa que os glaciares da Patagónia se reduzam de cada vez que alguém suspira fazendo aumentar a temperatura ambiente uma milionésima de grau, não importa que a Gronelândia tenha perdido uma parte importante do seu território, não importa a seca, não importam as inundações que tudo arrasam e tantas vidas levam consigo, não importa a igualização cada vez mais evidente das estações do ano, nada disto importa se o emérito sábio José Maria vem negar a existência do aquecimento global, baseando-se nas peregrinas páginas de um livro do presidente checo Vaclav Klaus que o próprio Aznar, em uma bonita atitude de solidariedade científica e institucional, apresentará em breve. Já o estamos a ouvir. No entanto, uma dúvida muito séria nos atormenta e que é altura de expender à consideração do leitor. Onde estará a origem, o manancial, a fonte desta sistemática atitude negacionista? Terá resultado de um ovo dialéctico deposto por Aznar no útero do Partido Popular quando foi seu amo e senhor? Quando Rajoy, com aquela composta seriedade que o caracteriza, nos informou de que um seu primo catedrático, parece que de física, lhe havia dito que isso do aquecimento climático era uma treta, tão ousada afirmação foi apenas o fruto de uma imaginação celta sobreaquecida que não havia sabido compreender o que lhe estava a ser explicado, ou, para tornar ao ovo dialéctico, é isso uma doutrina, uma regra, um princípio exarado em letra pequena na cartilha do Partido Popular, caso em que, se Rajoy teria sido somente o repetidor infeliz da palavra do primo catedrático, já o oráculo em que o seu ex-chefe se transformou não quis perder a oportunidade de marcar uma vez mais a pauta ao gentio ignaro?
Não me resta muito mais espaço, mas talvez ainda caiba nele um breve apelo ao senso comum. Sendo certo que o planeta em que vivemos já passou por seis ou sete eras glaciais, não estaremos nós no limiar de outra dessas eras? Não será que a coincidência entre tal possibilidade e as contínuas acções operadas pelo ser humano contra o meio ambiente se parece muito àqueles casos, tão comuns, em que uma doença esconde outra doença? Pensem nisto, por favor. Na próxima era glacial, ou nesta que já está principiando, o gelo cobrirá Paris. Tranquilizemo-nos, não será para amanhã. Mas temos, pelo menos, um dever para hoje: não ajudemos a era glacial que aí vem. E, recordem, Aznar é um mero episódio. Não se assustem.
José Saramago, O CADERNO

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Margarita Escarpa - Fugue BWV 1001 for Violin J. S. Bach

Dia 20 [Setembro de 2008]

Ao cemitério de Pulianas
Um dia, há talvez sete ou oito anos, procurou-nos, a Pilar e a mim, um leonês chamado Emilio Silva, pedindo apoio para a empresa a que se propunha meter ombros, a de encontrar o que ainda restasse do seu avô, assassinado pelos franquistas no princípio da guerra civil. Pedia-nos apoio moral, nada mais. Sua avó havia manifestado o desejo de que os ossos do avô fossem recuperados e recebessem digna sepultura. Mais que como um desejo de uma anciã inconformada, Emilio Silva tomou essas palavras como uma ordem que seria seu dever cumprir, acontecesse o que acontecesse. Este foi o primeiro passo de um movimento colectivo que rapidamente se espalhou por toda a Espanha: recuperar das fossas e barrancos, onde haviam sido enterradas as dezenas de milhares das vítimas do ódio fascista, identificá-las e entregá-las às famílias. Uma tarefa imensa que não encontrou só apoios, basta recordar os contínuos esforços da direita política e sociológica espanhola para travar o que já era uma realidade exaltante e comovedora, erguer da terra escavada e removida os restos daqueles que haviam pago com a vida a fidelidade às suas ideias e à legalidade republicana. Permita-se-me que deixe aqui, como simbólica vénia a quantos se têm dedicado a este trabalho, o nome de Ángel del Río, um cunhado meu que a ele tem dado o melhor do seu tempo, incluindo dois livros de investigação sobre os desaparecidos e os represaliados.
Era inevitável que o resgate dos restos de Federico García Lorca, enterrado como milhares de outros no barranco de Viznar, na província de Granada, se tivesse convertido rapidamente em autêntico imperativo nacional. Um dos maiores poetas de Espanha, o mais universalmente conhecido, está ali, naquele páramo, aliás em um lugar acerca do qual existe praticamente a certeza de ser a fossa onde jaz o autor do Romancero Gitano, junto com três outros fuzilados, um professor primário chamado Dióscoro Galindo e dois bandarilheiros anarquistas, Joaquín Arcollas Cabezas e Francisco Galadí Melgar. Estranhamente, porém, a família de García Lorca sempre se opôs a que se procedesse à exumação. Os argumentos alegados relacionavam-se, todos eles, em maior ou menor grau, com questões que podemos classificar de decoro social, como a curiosidade malsã dos meios de comunicação social, o espectáculo em que se iria tornar o levantamento das ossadas, razões sem dúvida respeitáveis, mas que, permito-me dizê-lo, perderam hoje peso perante a simplicidade com que a neta de Dióscoro Galindo respondeu quando, em entrevista numa estação de rádio, lhe perguntaram aonde levaria os restos do seu avô, se viessem a ser encontrados: “Ao cemitério de Pulianas”. Há que esclarecer que Pulianas, na província de Granada, é a aldeia onde Dióscoro Galindo trabalhava e a sua família continua a morar. Só as páginas dos livros se viram, as da vida, não.
José Saramago, O CADERNO

DIÁRIO (XIII)

S. Martinho de Anta, 20 de Setembro de 1979 – Acabou-se o bucolismo. A volatina gratuita com que no passado um melro vadio me acordava ao amanhecer foi substituída pelo ruído útil de uma moto-serra. A técnica chegou também aqui. A lenha para o inverno, que morosos carros de bois traziam, a chiar, das matas, e machados serviçais rachavam em cadência, é transportada agora por apressados e roufenhos tractores e feita em cavacos mecanicamente. É um progresso. Mas eu é que não consigo honrá-lo num verso.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Bach, Johann Sebastian - Prelude in d-minor, BWV 999

Dia 19 [Setembro de 2008]

Berlusconi & C.ª
Segundo a revista norte-americana Forbes, o Gotha da riqueza mundial, a fortuna de Berlusconi ascende a quase 10 mil milhões de dólares. Honradamente ganhos, claro, embora com não poucas ajudas exteriores, como tem sido, por exemplo, a minha. Sendo eu publicado em Itália pela editora Einaudi, propriedade do dito Berlusconi, algum dinheiro lhe terei feito ganhar. Uma ínfima gota de água no oceano, obviamente, mas que ao menos lhe deve estar dando para pagar os charutos, supondo que a corrupção não é o seu único vício. Salvo o que é do conhecimento geral, sei pouquíssimo da vida e milagres de Silvio Berlusconi, il Cavalieri. Muito mais do que eu há-de saber com certeza o povo italiano que uma, duas, três vezes o sentou na cadeira de primeiro-ministro. Ora, como é costume ouvir dizer, os povos são soberanos, e não só soberanos, mas também sábios e prudentes, sobretudo desde que o continuado exercicio da democracia facilitou aos cidadãos certos conhecimentos úteis sobre como funciona a política e sobre as diversas formas de alcançar o poder. Isto significa que o povo sabe muito bem o que quer quando o chamam a votar. No caso concreto do povo italiano, que é dele que estamos falando, e não de outro (já chegará sua vez), está demonstrado que a inclinação sentimental que experimenta por Berlusconi, três vezes manifestada, é indiferente a qualquer consideração de ordem moral. Realmente, na terra da mafia e da camorra, que importância poderá ter o facto provado de que o primeiro-ministro seja um delinquente? Numa terra em que a justiça nunca gozou de boa reputação, que mais dá que o primeiro-ministro faça aprovar leis à medida dos seus interesses, protegendo-se contra qualquer tentativa de punição dos seus desmandos e abusos de autoridade?
Eça de Queiroz dizia que, se passeássemos uma gargalhada ao redor de uma instituição, ela se desmoronaria, feita em pedaços. Isso era dantes. Que diremos da recente proibição, ordenada por Berlusconi, de que o filme W. de Oliver Stone seja ali exibido? Já lá chegaram os poderes de il Cavaliere? Como é possível ter-se cometido semelhante arbitrariedade, ainda por cima sabendo nós que, por mais gargalhadas que déssemos ao redor dos quirinais, eles não cairiam? É justa a nossa indignação, embora devamos fazer um esforço para compreender a complexidade do coração humano. W. é um filme que ataca a Bush, e Berlusconi, homem de coração como o pode ser um chefe mafioso, é amigo, colega, compincha do ainda presidente dos Estados Unidos. Estão bem um para o outro. O que não estará nada bem é que o povo italiano venha a chegar uma quarta vez às pousadeiras de Berlusconi a cadeira do poder. Não haverá, então, gargalhada que nos salve.
José Saramago, O CADERNO

DIÁRIO (XIII)

S. Martinho de Anta, 19 de Setembro de 1979 – Pobres amigos! Hoje é que vejo o meu erro, o absurdo de me não contentar com meias medidas. De exigir o absoluto a naturezas relativas. Queria que humanidades versáteis dessem paz como o perfil imutável das montanhas. 

Galápagos

Grapsus grapsus Galapagos Islands.jpg
Grapsus grapsus, espécie encontrada em Galápagos.

19 de Setembro

• Portugal - Dia Nacional do vinho

domingo, 18 de setembro de 2011

Jason Vieaux: Bach BWV 998, Prelude

Dia 18 [Setembro de 2008]

George Bush, ou a idade da mentira
Pergunto-me como e porquê Estados Unidos, um país em tudo grande, tem tido, tantas vezes, tão pequenos presidentes. George Bush é talvez o mais pequeno de todos eles. Inteligência medíocre, ignorância abissal, expressão verbal confusa e permanentemente atraída pela irresistível tentação do puro disparate, este homem apresentou-se à humanidade com a pose grotesca de um cowboy que tivesse herdado o mundo e o confundisse com uma manada de gado. Não sabemos o que realmente pensa, não sabemos sequer se pensa (no sentido nobre da palavra), não sabemos se não será simplesmente um robot mal programado que constantemente confunde e troca as mensagens que leva gravadas dentro. Mas, honra lhe seja feita ao menos uma vez na vida, há no robot George Bush, presidente dos Estados Unidos, um programa que funciona à perfeição: o da mentira. Ele sabe que mente, sabe que nós sabemos que está a mentir, mas, pertencendo ao tipo comportamental de mentiroso compulsivo, continuará a mentir ainda que tenha diante dos olhos a mais nua das verdades, continuará a mentir mesmo depois de a verdade lhe ter rebentado na cara. Mentiu para fazer a guerra no Iraque como já havia mentido sobre o seu passado turbulento e equívoco, isto é, com a mesma desfaçatez. A mentira, em Bush, vem de muito longe, está-lhe no sangue. Como mentiroso emérito, é o corifeu de todos aqueles outros mentirosos que o rodearam, aplaudiram e serviram durante os últimos anos.
George Bush expulsou a verdade do mundo para, em seu lugar, fazer frutificar a idade da mentira. A sociedade humana actual está contaminada de mentira como da pior das contaminações morais, e ele é um dos principais responsáveis. A mentira circula impunemente por toda a parte, tornou-se já numa espécie de outra verdade. Quando há alguns anos um primeiro-ministro português, cujo nome por caridade omito aqui, afirmou que “a política é a arte de não dizer a verdade”, não podia imaginar que George Bush, tempos depois, transformaria a chocante afirmação numa travessura ingénua de político periférico sem consciência real do valor e do significado das palavras. Para Bush a política é, simplesmente, uma das alavancas do negócio, e talvez a melhor de todas, a mentira como arma, a mentira como guarda avançada dos tanque e dos canhões, a mentira sobre as ruínas, sobre os mortos, sobre as míseras e sempre frustradas esperanças da humanidade. Não é certo que o mundo seja hoje mais seguro, mas não duvidemos de que seria muito mais limpo sem a política imperial e colonial do presidente dos Estados Unidos, George Walker Bush, e de quantos, conscientes da fraude que cometiam, lhe abriram o caminho para a Casa Branca. A História lhes pedirá contas.
José Saramago, O CADERNO

sábado, 17 de setembro de 2011

J.S.Bach Prelude BWV 997 by Ronny Wiesauer

Dia 17 [Setembro de 2008]

Perdão para Darwin?

Uma boa notícia, dirão os leitores ingénuos, supondo que, depois de tantos desenganos, ainda os haja por aí. A Igreja Anglicana, essa versão britânica de um catolicismo instituído, no tempo de Henrique VIII, como religião oficial do reino, anunciou uma importante decisão: pedir perdão a Charles Darwin, agora que se comemoram duzentos anos do seu nascimento, pelo mal com que o tratou após a publicação da Origem das Espécies e, sobretudo, depois da Descendência do Homem. Nada tenho contra os pedidos de perdão que ocorrem quase todos os dias por uma razão ou outra, a não ser pôr em dúvida a sua utilidade. Mesmo que Darwin estivesse vivo e disposto a mostrar-se benevolente, dizendo «Sim, perdoo», a generosa palavra não poderia apagar um só insulto, uma só calúnia, um só desprezo dos muitos que lhe caíram em cima. O único que daqui tiraria benefício seria a Igreja Anglicana, que veria aumentado, sem despesas, o seu capital de boa consciência. Ainda assim, agradeça-se-lhe o arrependimento, mesmo tardio, que talvez estimule o papa Bento XVI, agora embarcado numa manobra diplomática em relação ao laicismo, a pedir perdão a Galileu Galilei e a Giordano Bruno, em particular a este, cristãmente torturado, com muita caridade, até à própria fogueira onde foi queimado.

Este pedido de perdão da Igreja Anglicana não vai agradar nada aos criacionistas norte-americanos. Fingirão indiferença, mas é evidente que se trata de uma contrariedade para os seus planos. Para aqueles republicanos que, como a sua candidata à vice-presidência, arvoram a bandeira dessa aberração pseudo-científica chamada criacionismo.
José Saramago, O CADERNO

17 de Setembro

• 1787 - É assinada a Constituição dos Estados Unidos da América.

• 1850 - Guerra Junqueiro, alto funcionário administrativo, político, deputado, jornalista, escritor e poeta português (m. 1923).

• 1899 - José Régio, escritor português (m. 1969).

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

J.S.Bach - Prelude and presto BWV996

VARANDAS DO ZÊZERE


Há um mês que não vinha a Peireses. Julguei que ninguém dava pela minha falta. Pois enganei-me. Primeiro, uma gata a quem costumo brindar com umas aparas do talho, mal me viu, começou a destilar ternura dos olhos:
– Ingrato! Eu para aqui perdida de amores por ele, e este vadio deixa passar um mês sem me visitar...
– Os teus males de amor sei eu quais são e o remédio que têm. Chega-te para lá, se não ainda levas algum pontapé que passo contigo aos astros...
A tinhosa da gata, enquanto lhe não encher o fole, não me larga. Se estou parado roça-se-me nas pernas, se ando, mete-se-me à frente dos pés. Uma chata de todos os tamanhos. Só há um processo de me ver livre dela. É atirar-lhe um bom naco de carne. Nem sei como ainda a aturo.
– És de bom tempo...
Levanto a cabeça e vejo a poupa empoleirada no telhado, de asa encolhida e bico murcho.
– Olá vizinha? Que modos são esses? Desgosto ou apenas cansaço?
– Cansaço, rapaz. Os filhos não me dão um momento de folga. Sempre de goelas abertas, a reclamar o cibato. E como tem chovido e os insectos rareado, vejo-me perdida para os calar. Estava mesmo agora a passar pelas brasas enquanto eles dormem a sesta. Mas diz-me cá: a que se deve tão prolongada e estranha ausência?
– Compromissos, Princesa, compromissos. Compromissos incontornáveis, como agora dizem os nossos políticos e os nossos articulistas. Dias de anos de pessoas de família, um seminário dito científico, donde saí a saber menos do que quando lá entrei, a reunião anual dos colegas de curso.
– E onde reunistes?
– «Varandas do Zézere».
– o Zézere não é um rio?
– Pois é.
– E os rios têm varandas?
– «Varandas do Zézere» é um simpático hotel sobranceiro à «Barragem do Cabril».
– Barragem do Cabril? Nunca tinha ouvido falar. Por acaso não teria sido de lá que o célebre Cabrilho partiu à descoberta das costas da Califórnia?
– Ó Princesa! Não brinques. Cabril é uma pequena albufeira a quem a nossa dos Pisões, se a encontrasse, era bem capaz de lhe fazer o que a baleia fez a Jónatas: engolia-a dum trago...
– E que mais viste tu?
– A Sertá.
– Para fritar os peixes da barragem?
– Sertã é uma vila, Princesa.
– Quem mora numa sertã deve estar frito.
Frito estou eu com as tuas ironias.
– Desculpa e continua.
– Entre a Sertil e Vila de Rei subimos a um cabeço, ou marco geodésico, com os seus 800 metros de altitude e umas vistas deslumbrantes. Para onde quer que um homem se volte tem à frente dos olhos uma vastidão de horizontes que se confundem com o azul cinzento do céu ou do infinito. Dizem que é o «Centro de Portugal»...
– «Centro de Portugal»? Ó vizinho: que eu saiba, Portugal não é uma circunferência?
– Nunca tinha pensado nisso.
– Então pensa um pouco melhor e depois diz-me como é que se determina o centro dum quadrilátero. E não me venhas para cá falar de marcos grodésicos com 800 metros de altitude, quando eu tenho aqui a um golpe de asa o do Larouco a 1500. Isso nem parece teu...
– Desculpa, Princesa.
Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS – Crónicas de Barroso (p. 172 e s.)

DIÁRIO (XIII)

Panóias, 16 de Setembro de 1979 – De tanto visitar este santuário pagão, acabei por me meter na pele de um seu qualquer devoto primitivo. Sacrifico também em cada ara e contacto com o divino através do sangue das vítimas. É aqui que mais vezes o espírito me fala e que a minha humanidade religiosa encontra mais satisfatória expressão. E chego a perguntar a mim mesmo se o alvoroço em que fiquei, quando o vi pela primeira vez, foi apenas uma reacção cultural ou era já o crente envergonhado que encontrava emocionadamente um templo de fé descomprometida.
p. 111

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

15 de Setembro

• 1765 - Bocage, poeta português (m. 1805).

Filomena Moretti

DIÁRIO (XIII)

S. Martinho de Anta, 15 de Setembro de 1979 – A casa nativa. O retiro sagrado da memória. A eternidade paralisada.
p. 111

Dia 15 [Setembro de 2008]

Mexendo nuns quantos papéis que já perderam a frescura da novidade, encontrei um artigo sobre Lisboa escrito há uns quantos anos, e, não me envergonho de confessá-lo, emocionei-me. Talvez porque não se trate realmente de um artigo, mas de uma carta de amor, de amor a Lisboa. Decidi então partilhá-la com os meus leitores e amigos tornando-a outra vez pública, agora na página infinita da internet, e com ela inaugurar o meu espaço pessoal neste blog.

Palavras para uma cidade
Tempo houve em que Lisboa não tinha esse nome. Chamavam-lhe Olisipo quando os Romanos ali chegaram, Olissibona quando a tomaram os Mouros, que logo deram em dizer Aschbouna, talvez porque não soubessem pronunciar a bárbara palavra. Quando, em 1147, depois de um cerco de três meses, os Mouros foram vencidos, o nome da cidade não mudou logo na hora seguinte: se aquele que iria ser o nosso primeiro rei enviou à família uma carta a anunciar o feito, o mais provável é que tenha escrito ao alto Aschbouna, 24 de Outubro, ou Olissibona, mas nunca Lisboa. Quando começou Lisboa a ser Lisboa de facto e de direito? Pelo menos alguns anos tiveram de passar antes que o novo nome nascesse, tal corno para que os conquistadores Galegos começassem a tomar-se Portugueses...
Estas miudezas históricas interessam pouco, dir-se-á, mas a mim interessar-me-ia muito, não só saber, mas ver, no exacto sentido da palavra, como veio mudando Lisboa desde aqueles dias. Se o cinema já existisse então, se os velhos cronistas fossem operadores de câmara, se as mil e uma mudanças por que Lisboa passou ao longo dos séculos tivessem sido registadas, poderíamos ver essa Lisboa de oito séculos crescer e mover-se como um ser vivo, como aquelas flores que a televisão nos mostra, abrindo-se em poucos segundos, desde o botão ainda fechado ao esplendor final das formas e das cores. Creio que amaria a essa Lisboa por cima de todas as cousas.
Fisicamente, habitamos um espaço, mas, sentimentalmente, somos habitados por uma memória. Memória que é a de um espaço e de um tempo, memória no interior da qual vivemos, como uma ilha entre dois mares: um que dizemos passado, outro que dizemos futuro. Podemos navegar no mar do passado próximo graças à memória pessoal que conservou a lembrança das suas rotas, mas para navegar no mar do passado remoto teremos de usar as memórias que o tempo acumulou, as memórias de um espaço continuamente transformado, tão fugidio como o próprio tempo. Esse filme de Lisboa, comprimindo o tempo e expandindo o espaço, seria a memória perfeita da cidade.
O que sabemos dos lugares é coincidirmos com eles durante um certo tempo no espaço que são. O lugar estava ali, a pessoa apareceu, depois a pessoa partiu, o lugar continuou, o lugar tinha feito a pessoa, a pessoa havia transformado o lugar. Quando tive de recriar o espaço e o tempo de Lisboa onde Ricardo Reis viveria o seu último ano, sabia de antemão que não seriam coincidentes as duas noções do tempo e do lugar: a do adolescente tímido que fui, fechado na sua condição social, e a do poeta lúcido e genial que frequentava as mais altas regiões do espírito. A minha Lisboa foi sempre a dos bairros pobres, e quando, muito mais tarde, as circunstâncias me levaram a viver noutros ambientes, a memória que preferi guardar foi a da Lisboa dos meus primeiros anos, a Lisboa da gente de pouco ter e de muito sentir, ainda rural nos costumes e na compreensão do mundo.
Talvez não seja possível falar de uma cidade sem citar umas quantas datas notáveis da sua existência histórica. Aqui, falando de Lisboa, foi mencionada uma só, a do seu começo português: não será particularmente grave o pecado de glorificação... Sê-lo-ia, sim, ceder àquela espécie de exaltação patriótica que, à falta de inimigos reais sobre que fazer cair o seu suposto poder, procura os estímulos fáceis da evocação retórica. As retóricas comemorativas, não sendo forçosamente um mal, comportam no entanto um sentimento de autocomplacência que leva a confundir as palavras com os actos, quando as não coloca no lugar que só a eles competiria.
Naquele dia de Outubro, o então ainda mal iniciado Portugal deu um largo passo em frente, e tão firme foi ele que não voltou Lisboa a ser perdida. Mas não nos permitamos a napoleónica vaidade de exclamar: «Do alto daquele castelo oitocentos anos nos contemplam» – e aplaudir-nos depois uns aos outros por termos durado tanto... Pensemos antes que do sangue derramado por um e outro lados está feito o sangue que levamos nas veias, nós, os herdeiros desta cidade, filhos de cristãos e de mouros, de pretos e de judeus, de índios e de amarelos, enfim, de todas as raças e credos que se dizem bons, de todos os credos e raças a que chamam maus. Deixemos na irónica paz dos túmulos aquelas mentes transviadas que, num passado não distante, inventaram para os Portugueses um «dia da raça», e reivindiquemos a magnífica mestiçagem, não apenas de sangues, mas sobretudo de culturas, que fundou Portugal e o fez durar até hoje.
Lisboa tem-se transformado nos últimos anos, foi capaz de acordar na consciência dos seus cidadãos o renovo de forças que a arrancou do marasmo em que caíra. Em nome da modernização levantam-se muros de betão sobre as pedras antigas, transtornam-se os perfis das colinas, alteram-se os panoramas, modificam-se os ângulos de visão. Mas o espírito de Lisboa sobrevive, e é o espírito que faz eternas as cidades. Arrebatado por aquele louco amor e aquele divino entusiasmo que moram nos poetas, Camões escreveu um dia, falando de Lisboa: «[...] cidade que facilmente das outras é princesa». Perdoemos-lhe o exagero. Basta que Lisboa seja simplesmente o que deve ser: culta, moderna, limpa, organizada – sem perder nada da sua alma. E se todas estas bondades acabarem por fazer dela uma rainha, pois que o seja. Na república que nós somos serão sempre bem-vindas rainhas assim.
José Saramago, O CADERNO

terça-feira, 13 de setembro de 2011

13 de Setembro

• 13 de Setembro de 1885, nasce, em Carregal da Tabosa, Sernancelhe, o escritor português Aquilino Gomes Ribeiro. Entre a sua vasta produção textual, destacamos: Terras do Demo (1919), O Romance da Raposa (1959) e A Casa Grande de Ramarigães (1957).

Andrea Dieci plays Scarlatti Sonata k146

O SETECÚS


Vi o anúncio, aliás profusamente divulgado urbi et orbi, do «II Festival Gastronómico do Cabrito de Barroso» e vim por aí acima a salivar por uma boa caldeirada. Cheguei a Montalegre e vi tudo deserto. Nem admira. Chovia e ventava que tinha demoncre. Perguntei ao primeiro que apareceu:
– Então essa feira do cabrito?
– Para já não vejo nada. Parece que têm uma barraca aí para o Toural.
Fui até lá. Encontrei um amplo pavilhão de vendas com um bom fornecimento de cabritos prontos a serem cozinhados. Dirigi-me à senhora do balcão:
– Que tal vai o negócio?
– Estamos a começar.
– Vejo pouca gente.
– Estão em reuniões. Um colóquio sobre «Agricultura Biológica em Barroso» lá para a Cooperativa e um outro sobre «Deficientes físicos» aí para a Câmara.
– Estava a referir-me a forasteiros.
– Bem. O tempo não ajuda. Mas ainda é cedo. Eles virão.
– Com certeza que sim. Gosto em vê-la.
Ainda dei por ali uma volta à procura de parceiros para o almoço. Como não encontrasse ninguém, esqueci a caldeirada e refugiei-me em casa.
E agora aqui estou eu de pés à lareira e cabeça à janela das minhas recordações.
O bailado das chamas têm sobre mim o efeito que um fio de água a correr duma torneira exerce sobre as crianças. A elas, o fio de água estimula-lhes o reflexo do chichi. A mim, o bailado das chamas estimula-me a bossa das recordações.
Tenho muitas ligadas a cabras e cabritos. Escolho uma ao acaso.
Um dia, teria eu os meus doze anos, fui a Cambezes comprar cabras. Eu, meu pai e o João Sapateiro. Ignoro se entre eles havia alguma sociedade. Eu não tinha rasca na assadura. Ia ali apenas como tocador. Tocador de gado, sublinho. Não vá por aí alguém pensar que eu ia ali como tocador de gaita, embora a levasse no bolso.
Chegámos a Cambezes ao pôr-da-sol, hora em que os rebanhos começam a descer dos montes.
– Ó santinha? Quer vender cabras? – íamos perguntando às velhas que desciam à rua a estremar a rês.
– Depende do preço.
– Peça.
– Mande você.
Já tínhamos umas vinte justas, quando uma velha de queixo-de-anho e olhinhos de bruxa no bioco dum surrado cochiné preto, se abeira de nós e diz:
– Eu era capaz de lhes vender umas cinco.
– Já só precisamos de quatro.
– Venham comigo.
Entrámos num pátio e a velha indicou as cabras à venda, entre elas uma peleirosa a cair de podre, que já nem sequer servia para atrair um lobo a um fojo.
– Essa nem dada – exclamou o meu pai.
– Escolham outra.
Nós escolhemos e, depois de muito marralhar, arrematámos as cabras a dezoito escudos por cabeça.
Entrementes escureceu.
– Ó João? – disse meu pai. – O melhor é ficarmos cá e partir amanhã de manhã.
– Também acho. Se nos metemos à serra de noite arriscamo-nos a ficar sem elas.
– Vamos ali ao Nobre.
Que era um tipo que o meu pai conhecia da tropa.
Vínhamos nós a descer a rua, salta de lá o Florentino dos Carneiros:
– Ó senhor Manuel? Você por aqui?
– Olha rapaz – e o meu pai explicou a razão da nossa presença.
– Ofereço-lhes a minha casa.
– Obrigado, mas.
– Até levava a mal. Façam favor de subir.
O Florentino dos Carneiros, também conhecido pelo Setecus, devido ao jeito que ele tinha de andar, de pernas hirtas e levemente afastadas, mãos nos bolsos das calças, tronco para a frente e cu espetado para trás, andava na Volta e instalava-se periodicamente no forno de Peireses. E como o palheiro do meu pai ficasse paredes-meias com o forno, por norma era de lá que o Florentino se fornecia de palha para o leito da família e de feno para a manjedoura da égua. De modo que não queria deixar fugir a oportunidade de obsequiar o meu pai. Filou-o logo pelas abas do casaco.
– Até levava a mal – repetia.
A casa do Florentino era de dois pisos. A corte da égua no rés-da-chão e a cozinha no primeiro andar.
Na cozinha, meia dúzia de trastes, a pedra do lar, uns guiços de lenha, um catre de madeira, tudo duma simplicidade a roçar pela pobreza. Mas com que fidalguia de maneiras, com que manifesto modo de agradar nos recebeu. Obsequiou-nos com uma escudela de batatas secas e um leito de palha estendida no soalho com frinchas. Adormeci a rir-me das larachas e brejeirices que o Florentino, já deitado, dirigia à cara metade.
Tenho dormido em colchões de penas, de sumaúma, de molas, ortopédicos e outras marcas de renome. Mas não me lembro de noite tão regalada como a que passei nas palhas do Florentino.
De manhã, além de nos obsequiar com um mata-bicho de pão e aguardente, o nosso prestimoso hospedeiro foi-nos ajudar a reunir as cabras, umas vinte e quatro, se a memória me não falha, e despediu-se com pena de nos ver partir:
– Querem que lhas vá encaminhar?
– Obrigado, Florentino. Não será preciso.
Por acaso era. Deram-nos água pela barba o raio das cabras. Decerto compreenderam que as levávamos para o exílio e, enquanto conheceram o terreno, era a ver quem mais se escapulia por aqueles montes fora. Vimo-nos em palpos de aranha para as sacarmos do termo de Cambezes. Só quando estranharam o terreno, já na serra das Treburas, conseguimos metê-las ao rego.
E foi então que eu, olhando para elas com olhos de ver, me comecei a rir.
– De que te ris, rapaz? – perguntou meu pai.
– A velha endrominou-nos.
– Qual velha?
– A bruxa a quem você comprou as quatro cabras. Repare ali naquela. Não é a peleirosa que você não queria nem dada?
– Oh, raisparta a velha! Era um homem voltar atrás e desfazer-lhe a cabra nas ventas.
Em contraste com o reprovável procedimento desta velha de Cambezes vou contar a encantadora história duma outra de Carvalhais anos mais tarde. Um indivíduo perguntou-lhe:
– Não me quer vender uma cabra?
– Quanto me dá por ela?
– Oitenta escudos.
– Por esse preço não vendo.
– Então quanto quer por ela?
– Uma nota de cinquanta outra de vinte.

Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS – Crónicas de Barroso (p. 168 e ss.)