Farta-se um homem de
sonhar e, vai-se a ver, nicles. Vem isto a propósito do 1.º de Maio, o qual,
como toda a gente sabe e a folhinha o indica, neste ano caiu a um domingo.
Passei a semana a sonhar com um dia de sol. Pode-se lá imaginar um 1.º de Maio
sem sol? Posso lá imaginar um 1.º de Maio fora da aldeia? Vim por aí acima a
correr, todo alvorotado. Deitei-me cedo, decidido a madrugar e ir por esses
campos fora ao encontro do Maio Moço. Passei a noite a sonhar com um sol claro,
uma aragem branda, uma aleluia de pássaros, uma embriaguez de perfumes. Cheguei
ao requinte de colher flores e toucar-me com elas. E até que nem ficava mal uma
capela de boninas sobre cabelos grisalhos. Já vi figurações dessas a
representar Baco ou Noé. Em sonhos tudo nos é
permitido.
Acordo e que vejo eu?
Um céu borrascoso, um frio de pôr um urso polar a bater o dente, os pássaros
caladinhos, as flores de corola encolhida, os campos desertos. Uma desolação.
Colo o nariz à
vidraça. Hirta sobre um tronco do castanheiro, a poupa parece rezar o terço. Lá
para o fundo do vale, o cuco ensaia uma ária, mas cala-se. Deve ter-lhe entrado
água para a gaita. Na horta, preso por uma travadoira ao tronco da macieira,
cauda imóvel, orelha murcha, beiça descaída, o burro medita, indiferente à
chuva que lhe fustiga o canastro. Entreabro a janela e grito-lhe:
– Eh, parceiro?
O tipo estremece e
abre os olhos. Afinal estava a passar pelas brasas.
– Que me dizes a esta
invernia? – insisto.
Lança-me um olhar
desdenhoso de sábio da Grécia e volta a fechar os olhos.
– És burro e basta! –
volto a gritar-lhe.
Entreabre a beiça e
faz:
– Brrr!
Não compreendo a
réplica, mas coisa boa não deve ser.
Rua abaixo, tão
ensimesmado como o burro da horta, aproxima-se um vizinho de galochas, samarra,
barrete de orelhado, guarda-chuva aberto na mão esquerda e sachola na direita.
Saúdo:
– Eh, Pitrascas? Que
me dizes tu a este estuporado 1.º de Maio?
– Estuporado?
– Feio…
– Para mim está bonito.
– Bonito?!
– Então não está?
Depois de seis meses de seca estreme, com tudo a morrer de sede, esta chuvinha
é oiro!
– É oiro, é oiro. É o
que vós sabeis dizer: é oiro…
Fecho-lhe a janela na
cara e volto para a cama a resmungar: Que miséria de vida! Antigamente, só as
raparigas é que me não compreendiam. Agora, já nem burros nem homens me
compreendem. Vai-te Diabo para Gralhas![1]
Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS II
– Crónicas de Barroso (p. 55 e s.)
[1] Segundo
entendo, esta expressão, outrora muito usada em Barroso, deve estar relacionada
com o hábito de, quando alguém entrava em casa dum vizinho, dizer:
– Deus seja aqui.
Ao que o dono da casa, ou alguém por ele, respondia:
– E o Diabo em casa do padre.
Ora como, a partir de 1922, passou a haver um
seminário em Gralhas, as pessoas, em vez de mandarem o Diabo para casa do
padre, passaram a mandá-lo para Gralhas.
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