Chegámos hoje de
manhã de uma ida a Évora. A grande razão da ida era uma visita a Olivença, há muitas anos
engatilhada na alma – a ida. Antes de a morte me pôr o pé em cima, queria eu
pô-lo na terra que o castelhano nos rapinou. E a razão do constante adiamento é
que a viagem é bastante longa, pois que a ponte de ligação imediata às terras
do lado de lá foi dinamitada aquando do rapinanço e nunca mais reconstruída
para arrefecer as tentações. Falei no caso ao Alberto Silva, centro de
convergência amiga do nosso grupo de Évora, e ele agarrou logo a mãos ambas o
nosso intento para nos ver lá e um pouco talvez recuperar o tempo perdido, agora
que a Josete morreu. Se a gente se atrasava a andar com o projecto para a
frente, ele aí estava a perguntar-nos quando é que. E de semana em semana de
adiamento, a coisa foi de vez e aí fomos nós ontem disparados a patriotismo.
Mas antes de sermos patriotas, há que registar o terrível embate com a cidade
de Évora a sua transferência para o nosso puro imaginário. Porque está irreconhecível.
Intransitável, coalhada de carros e de gente, com regras inimagináveis para a
deslocação dentro dela, Évora transbordou para uma cidade imensa fora das
muralhas onde nunca morou, com bairros imensos de grandes prédios de habitação
e de comércio ou mesmo indústria que agridem alegremente o tempo e o silêncio
da cidade antiga. O quarto único da única pensão que o Alberto Silva nos
conseguiu fica na Rua da Selaria, fechada ao trânsito do meio para a Sé, com a
praga das discotecas estendida até lá perto e que nos rendeu uma quase insónia
com os selvagens dos jovens que se abatem aos muitos milhares sobre as escolas
que há hoje aí e dos quais um grupo deve ter sido destacado para nos atormentar
o sono de velhos excedentários. E assim, antes de mais, reparei que tinha
cortado com a Évora profanada, sevandijada, assolada de uma praga selvática e a
tinha recolhido na sua imagem de há 30 anos para o que em mim perdura como
memória e emoção. Mas eu não queria falar de Évora e foi ela que se me meteu na
conversa. Portanto – Espanha. O Alberto Silva ficou surpreendido porque o
projecto da ida lá era para hoje. Mas as minhas contas do cansaço e o mais com
o regresso a Lisboa logo após o de Espanha levou-me a propor a expedição para
logo depois de termos chegado. E assim se fez. Metemo-nos no carro dele,
almoçámos em Elvas e chegados pouco depois a Badajoz, derivámos para o sul.
E algum tempo depois pude ler à entrada da cidade o nome parecido de «Olivenza». Parámos o carro
para tirar uma foto panorâmica da cidade e senti uma tentação de logo emendar o
seu nome no seu erro de ortografia… A cidade é grande e toda branca de leite
como as do Alentejo. Mas com grande surpresa nossa e desgosto meu, toda a
cidade estava a dormir. E isto é dito em sentido quase literal, porque
atravessávamos ruas e ruas quase sem vivalma. A memória alentejana das suas
casas estava já bastante pervertida com o gradeamento andaluz e mouro das
janelas, como o íamos verificando na cidade adormecida. Porque na realidade
toda a cidade dormia. E isso não era já bem português, que mesmo no Alentejo
tem-se sempre um olho aberto. Olivença praticava o que Unamuno chamava o
ioga ibérico, ou seja batia a sua sorna após o almoço. Tirei as fotos clássicas
da lembrança portuguesa e quando finalmente apanhei um adulto sentado numa
praça, fui-me a ele. Falava português? Sim, e muita gente falava ainda.
Aldrabice, pensei, não porque o verificasse mas porque o tom de voz do homem
era o de quem farejou em nós o desejo de que fosse assim – e fora amável por
desfastio. Adiantei a questão da passagem de Olivença para o lado de lã, ele
disse que fora há muitos anos e derivou de uma troca com Campo Maior. Deve ser
a galga adiantada às crianças nas escolas. Porque o que aconteceu, como se não
conta às crianças do lado de cá, não fora bem uma questão de troca e destroca
sobre compromisso (teria de ir reler para saber se foi assim). O que aconteceu
foi que Godoy,
amante da rainha – parecida com a do nosso João VI – fez mão
baixa à cidade e seu termo após as guerras napoleónicas, faltou ao compromisso
de devolver o roubo sob o pretexto de que aquilo era um valhacouto de ladrões e
contrabandistas e havia o Guadiana
a jeito para fazer fronteira. A Espanha vendeu
Gibraltar e pretende
recuperá-lo. Portugal foi rapinado em Olivença e ninguém ousa tocar no assunto. Mas o Guadiana. Lá o fomos ver com a
sua ponte destruída, com sinais de que mais parecem uma dinamitação, para
evitar tentações. Creio, todavia, que se pensa em reconstruí-la. Sinal triste
de que o problema está morto. Do lado de lá do rio havia um grupo de
portugueses a fazer sinais de mãos agitadas. Seria talvez, e apesar de tudo uma
saudação à memória dos portugueses que se sonhavam existir ainda do outro lado,
após quase duzentos anos de terem emigrado com a terra para Espanha e o desejo
obstinadamente vivo de que regressem a casa…
Sem comentários:
Enviar um comentário