quinta-feira, 30 de maio de 2013

30 – Maio (quarta). [1990]

Chegámos hoje de manhã de uma ida a Évora. A grande razão da ida era uma visita a Olivença, há muitas anos engatilhada na alma – a ida. Antes de a morte me pôr o pé em cima, queria eu pô-lo na terra que o castelhano nos rapinou. E a razão do constante adiamento é que a viagem é bastante longa, pois que a ponte de ligação imediata às terras do lado de lá foi dinamitada aquando do rapinanço e nunca mais reconstruída para arrefecer as tentações. Falei no caso ao Alberto Silva, centro de convergência amiga do nosso grupo de Évora, e ele agarrou logo a mãos ambas o nosso intento para nos ver lá e um pouco talvez recuperar o tempo perdido, agora que a Josete morreu. Se a gente se atrasava a andar com o projecto para a frente, ele aí estava a perguntar-nos quando é que. E de semana em semana de adiamento, a coisa foi de vez e aí fomos nós ontem disparados a patriotismo. Mas antes de sermos patriotas, há que registar o terrível embate com a cidade de Évora a sua transferência para o nosso puro imaginário. Porque está irreconhecível. Intransitável, coalhada de carros e de gente, com regras inimagináveis para a deslocação dentro dela, Évora transbordou para uma cidade imensa fora das muralhas onde nunca morou, com bairros imensos de grandes prédios de habitação e de comércio ou mesmo indústria que agridem alegremente o tempo e o silêncio da cidade antiga. O quarto único da única pensão que o Alberto Silva nos conseguiu fica na Rua da Selaria, fechada ao trânsito do meio para a Sé, com a praga das discotecas estendida até lá perto e que nos rendeu uma quase insónia com os selvagens dos jovens que se abatem aos muitos milhares sobre as escolas que há hoje aí e dos quais um grupo deve ter sido destacado para nos atormentar o sono de velhos excedentários. E assim, antes de mais, reparei que tinha cortado com a Évora profanada, sevandijada, assolada de uma praga selvática e a tinha recolhido na sua imagem de há 30 anos para o que em mim perdura como memória e emoção. Mas eu não queria falar de Évora e foi ela que se me meteu na conversa. Portanto – Espanha. O Alberto Silva ficou surpreendido porque o projecto da ida lá era para hoje. Mas as minhas contas do cansaço e o mais com o regresso a Lisboa logo após o de Espanha levou-me a propor a expedição para logo depois de termos chegado. E assim se fez. Metemo-nos no carro dele, almoçámos em Elvas e chegados pouco depois a Badajoz, derivámos para o sul. E algum tempo depois pude ler à entrada da cidade o nome parecido de «Olivenza». Parámos o carro para tirar uma foto panorâmica da cidade e senti uma tentação de logo emendar o seu nome no seu erro de ortografia… A cidade é grande e toda branca de leite como as do Alentejo. Mas com grande surpresa nossa e desgosto meu, toda a cidade estava a dormir. E isto é dito em sentido quase literal, porque atravessávamos ruas e ruas quase sem vivalma. A memória alentejana das suas casas estava já bastante pervertida com o gradeamento andaluz e mouro das janelas, como o íamos verificando na cidade adormecida. Porque na realidade toda a cidade dormia. E isso não era já bem português, que mesmo no Alentejo tem-se sempre um olho aberto. Olivença praticava o que Unamuno chamava o ioga ibérico, ou seja batia a sua sorna após o almoço. Tirei as fotos clássicas da lembrança portuguesa e quando finalmente apanhei um adulto sentado numa praça, fui-me a ele. Falava português? Sim, e muita gente falava ainda. Aldrabice, pensei, não porque o verificasse mas porque o tom de voz do homem era o de quem farejou em nós o desejo de que fosse assim – e fora amável por desfastio. Adiantei a questão da passagem de Olivença para o lado de lã, ele disse que fora há muitos anos e derivou de uma troca com Campo Maior. Deve ser a galga adiantada às crianças nas escolas. Porque o que aconteceu, como se não conta às crianças do lado de cá, não fora bem uma questão de troca e destroca sobre compromisso (teria de ir reler para saber se foi assim). O que aconteceu foi que Godoy, amante da rainha – parecida com a do nosso João VI – fez mão baixa à cidade e seu termo após as guerras napoleónicas, faltou ao compromisso de devolver o roubo sob o pretexto de que aquilo era um valhacouto de ladrões e contrabandistas e havia o Guadiana a jeito para fazer fronteira. A Espanha vendeu Gibraltar e pretende recuperá-lo. Portugal foi rapinado em Olivença e ninguém ousa tocar no assunto. Mas o Guadiana. Lá o fomos ver com a sua ponte destruída, com sinais de que mais parecem uma dinamitação, para evitar tentações. Creio, todavia, que se pensa em reconstruí-la. Sinal triste de que o problema está morto. Do lado de lá do rio havia um grupo de portugueses a fazer sinais de mãos agitadas. Seria talvez, e apesar de tudo uma saudação à memória dos portugueses que se sonhavam existir ainda do outro lado, após quase duzentos anos de terem emigrado com a terra para Espanha e o desejo obstinadamente vivo de que regressem a casa…


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