sábado, 31 de março de 2012

Dia 31 [Março de 2009]

Geometria fractal
Tal como o Sr. Jourdain de Molière fazia prosa sem o saber, houve um momento na minha vida em que, sem me ter apercebido do fenómeno, me encontrei metido em algo tão misterioso como a geometria fractal, da qual, escusado seria dizê-lo, ignorava tudo. Foi isso pelo ano de 99, quando um geómetra espanhol, Juan Manuel Garcia-Ruiz, me escreveu a pedir a minha atenção para um exemplo de geometria fractal presente no meu livro Todos os Nomes. Indicava-me a passagem em questão, a qual reza assim: «Observado desde o ar […] parece uma árvore tombada, com um tronco curto e grosso, constituído pelo núcleo central de sepulturas, de donde arrancam quatro poderosas ramas, contíguas no seu nascimento, mas que depois, em bifurcações sucessivas, se estendem até perder-se de vista, formando […] uma frondosa copa em que a vida e a morte se confundem.» Não pensei em mudar de ofício, mas todos os meus amigos notaram que havia uma convicção nova no meu espírito, uma espécie de encontro na estrada de Damasco.
Durante aqueles dias ombreei com os melhores geómetras do mundo, nada mais, nada menos. Aquilo a que eles haviam chegado à custa de muito estudo, alcançara-o eu graças a um golpe de intuição científica, do qual, falando fracamente, apesar do tempo que passou, ainda não me recompus. Dez anos depois, acabo de sentir a mesma emoção na figura de um livro intitulado Armonía Fractal – De Doñana a las marismas de que Juan Manuel é autor, juntamente com o seu colega Héctor Garrido. As ilustrações são, em muitos casos extraordinárias, os textos de uma precisão científica nada incompatível com a beleza das formas e dos conceitos. Comprem-no e regalem-se. É uma autoridade quem o recomenda…
José Saramago, O CADERNO

sexta-feira, 30 de março de 2012

Que raio de Partido Socialista é este?

30 Março 2012 | 12:41
Baptista Bastos - b.bastos@netcabo.pt
Partido Socialista teve, anteontem, na Assembleia da República, uma excelente ocasião para se redimir das evasivas políticas, das ambiguidades e dos desvios que têm caracterizado a sua trajectória. Porém, ao abster-se de combater a nova lei laboral, acentuou o retrato ideológico e moral da sua triste existência. A ideia de que António José Seguro é um "homem de Esquerda" caiu pela base. Ao claudicar perante um documento daquela natureza, o PS desacreditou-se definitivamente.
Fica por saber, mas adivinha-se, as manobras de bastidores encetadas entre as direcções socialista e social-democrata, a fim de se atingir aquele vergonhoso resultado. Aliás, a "concertação" social, tão afamada pelos trompetistas da Direita, foi subscrita por João Proença, figura de relevo do PS. Convém não esquecer, para memória futura.
Mas a história do chamado "socialismo democrático" está pejada de traições (porque de traições se trata) desta e de índole semelhante. Não é preciso ler Tony Judt, embora seja importante frequentá-lo, para sermos informados das claudicações dos partidos "socialistas" na Europa, que levaram ao total descalabro. A ameaça do comunismo serviu de pretexto para as maiores abjurações. Ao juntar-se aos partidos de Direita (caso português), o PS alterou a fisionomia do que de ele se esperava, desde o 25 de Abril. 
Claro que o sectarismo do PCP, na altura, e a existência da União Soviética, como poder omnipresente, também não ajudaram a convergência de esforços. Mas, como escreveu, na altura, o jornalista alemão Kurt Dreyer, "tudo seria o mesmo, pois os partidos socialistas procedem de ambições pequeno-burguesas."
A queda do Muro de Berlim "não salvou ninguém de coisa nenhuma" [Gunther Grass] e apenas forneceu ao capitalismo outra força e outro desiderato, porventura mais cegos e desvigiados. O resultado está à vista. No fundo, não se desejava que o PS fosse além do que dizia. Apenas se exigia que cumprisse as razões da "social-democracia."
Os portugueses ainda se recordam dos gritos e dos estribilhos dos anos da brasa. "Partido Socialista, Partido Marxista!" E o punho erguido, vertical e incisivo, depois alterado para a rosa. "Uma rosa sem cheiro", na rotunda expressão de Fernando Piteira Santos. Aliás, há uma história dessa época que se conta ainda. Parece que um dia Mário Soares dirigiu-se a Piteira Santos e inquiriu: "Porque é que você não se inscreve no Partido Socialista?" Piteira, velho resistente, cujo sarcasmo nunca media distâncias, respondeu-lhe; "Porque sou socialista."
Podemos confiar no PS? Se a questão é penosa, a resposta poderá ser cruel. Há muitos anos que o PS abandonou as regras d'oiro da Esquerda. Ao menos que, nos problemas sociais, tivesse uma resposta e uma actuação que não fossem tão humilhantes. Nada disso. Não votaram em Francisco Assis, para secretário-geral, porque estava muito ligado a José Sócrates, e, também, porque Seguro oferecia mais garantias "de Esquerda." É o que se tem visto. Encostado, cada vez mais declaradamente, aos propósitos e objectivos da Direita, o PS de António José Seguro queda-se numa retórica absurda, sem direcção nem sentido, espécie de baratinha tonta com fato e gravata.
Depois da abstenção de quarta-feira que vão Seguro e os seus dizer às pessoas? O seu comportamento, a sua ubiquidade, a sua falta de carácter e de ideologia roçam a indignidade ética. Mas será que alguma vez a tiveram? Perguntar não ofende. O que ofende a consciência dos homens livres são as constantes tranquibérnias de um partido cada vez mais ligado aos interesses e aos malabarismos do rotativismo.
APOSTILA - Para governo e conceito dos meus Dilectos, e para honra da verdade, nunca fui redactor do "Diário de Notícias", apenas seu colunista, de há cinco anos a esta parte, e a convite expresso de João Marcelino, meu amigo. Acrescento que me insurgi contra os saneamentos de 1975, e que fui camarada fraterno de João Coito, grande jornalista, homem digno e honrado, fiel às suas convicções até ao remate final dos dias. Adianto que nos protegemos um ao outro, o que deixava os dele e os meus correligionários completamente fora de si. Depois, quem quiser corresponder-se comigo, sem a máscara vil do anonimato, o meu endereço electrónico está a seguir. Chega? 

DIÁRIO (XIII)

Travanca, Amarante, 30 de Março de 1980 – Traçadas para deixar passar velozmente o progresso, as estradas de hoje cortam a direito, sempre a atalhar. E é por elas que obrigatoriamente, como os demais, galopo, a maior parte das vezes cheio de remorsos de deixar de lado o Portugal que sobretudo me interessa: o de raízes e vínculos. Há séculos desejoso de o surpreender também nestas paragens, e só agora o faço. Olhava de cima o vale onde se esconde, e seguia caminho, a maldizer a pressa do meu tempo. E o que eu perdi durante tantos anos sem ver e admirar ao natural uma das criações mais belas do nosso românico! Esta igreja de S. Salvador, acolhida ao seu torreão ameado, simbiose emblemática da cruz e da espada que fundaram a pátria primordial. Pátria a que em quase todo o resto do território apetece chamar mátria, pelo vigor feminino da sua fisionomia espiritual, mas que aqui, singularmente, é masculina no corpo e na alma.

Dia 30 [Março de 2009]

Raposa do Sol
Lá de longe em longe o dia amanhece diferente. Que o digam os índios da reserva indígena da Raposa do Sol no estado de Roraima, ao norte do Brasil, a quem o Supremo Tribunal Federal acaba de reconhecer e confirmar definitivamente o seu direito à plena posse e ao uso pleno dos mil quilómetros quadrados de superfície da reserva. A sentença não deixa qualquer margem a dúvidas: os não índios devem sair imediatamente da Raposa do Sol, assim como as empresas arrozeiras que durante anos invadiram o território e nele se instalaram abusivamente. Já em 2005 o presidente Lula havia decidido a entrega da reserva aos indígenas e a saída das empresas arrozeiras, mas as autoridades do estado de Roraima, favoráveis aos arrozeiros, recorreram ao Supremo Tribunal por considerarem inconstitucional o decreto presidencial. Quatro anos depois o Supremo decide a questão e põe uma definitiva pedra sobre o assunto. Nem tudo, porém, são rosas neste idílico quadro. Afinal, a luta de classes, tão discutida em épocas relativamente recentes e que parecia haver sido condenada ao caixote do lixo da História, existe mesmo. Com esta visão unilateral que temos, nós, os europeus, dos problemas sociais da América Latino, tendemos a ver unanimidades onde elas não existem nem existiram nunca. Na Raposa do Sol, os índios endinheirados, que também lá os há, fizeram causa comum com os não índios e com as empresas arrozeiras. A festa foi dos outros, dos pobres.
Cá para baixo, na Cidade Maravilhosa, a do samba e do carnaval, a situação não está melhor. A ideia, agora, é rodear as favelas com um muro de cimento armado de três metros de altura. Tivemos o muro de Berlim, temos os muros da Palestina, agora os do Rio. Entretanto, o crime organizado campeia por toda a parte, as cumplicidades verticais e horizontais penetram nos aparelhos de Estado e na sociedade em geral. A corrupção parece imbatível. Que fazer?
José Saramago, O CADERNO

quinta-feira, 29 de março de 2012

O livreiro insolente

Publicado às 00.00 [29-03-2012]
A poesia tem justificada má fama. Chamar poeta a alguém, no Parlamento ou no Estádio da Luz, é maior insulto do que chamar intelectual a Pacheco Pereira, como fez Valentim Loureiro num dia em que se achou mais pachorrento. E temos que convir que, se "ser poeta é" o que Florbela Espanca diz que é e os Trovante andam por aí a "dizê-lo, cantando, a toda a gente", compreende-se que assim aconteça.
Imagine-se agora que, num determinado "país de poetas", um insolente livreiro decide abrir uma livraria exclusivamente dedicada à poesia. Era bem feito que lhe chamassem poeta, ou ainda menos. Foi o que aconteceu. Ao fim de mais de três anos a juntar e vender ociosidades numa obscura rua do Príncipe Real, em Lisboa, a livraria "Poesia Incompleta" fechou ontem portas. Ainda por cima sem dívidas, o que hoje é coisa ainda mais insultuoso do que "poeta".
Alguém deveria ter explicado ao jovem empreendedor Mário "Changuito" Guerra que a única forma de manter durante três anos uma livraria exclusivamente dedicada à poesia e chegar ao fim com uma pequena fortuna é começando com uma grande fortuna. Não foi, obviamente, o caso.
Anunciou o livreiro que irá doar (ou doer, não sei) os milhares de volumes que lhe sobram nas prateleiras ao omniministro Relvas. Só que, tal como "assustar um notário com um lírio branco", pôr Miguel Relvas ao alcance de Kavafy, Camões e Rilke cai decerto sob a alçada da lei antiterrorista.

Santo e senha

Deixem passar quem vai na sua estrada.
Deixem passar
Quem vai cheio de noite e de luar.
Deixem passar e não lhe digam nada.

Deixem, que vai apenas
Beber água de sonho a qualquer fonte;
Ou colher açucenas
A um jardim que ele lá sabe, ali defronte.

Vem da térrea de todos, onde mora
E onde volta depois de amanhecer.
Deixem-no pois passar, agora

Que vai cheio de noite e solidão.
Que vai ser
Uma estrela no chão.

Miguel Torga, Diário I (Coimbra, 1941)
Poesia Completa (Dom Quixote, 2000), p. 99.

quarta-feira, 28 de março de 2012

Um "negócio" surreal

Manuel António Pina - Publicado às 00.00 [2012.03.28]
A história trágico-financeira-política do BPN atravessa dois governos e é assustadoramente surreal (ou talvez antes neo-abjeccionista): "nacionalizado" por um Governo PS, isto é, nacionalizadas as suas dívidas, a maior parte resultante de trafulhices, e detido o seu guru-mor, Oliveira Costa, enquanto os demais responsáveis continuam a andar por aí de cabeça despudoradamente erguida e como se não fosse nada com eles, coube a um Governo PSD/CDS "privatizá-lo" de novo.
Os jornais publicaram há dias a notícia de um grupo norte-americano que se disporia a dar 600 milhões pelo BPN. Parece que, apesar de repetidas tentativas, nunca conseguiu chegar à fala com o Governo. E o Governo, não tendo melhor oferta, acabou por vendê-lo a um banco, o BIC, de Isabel dos Santos, filha de Eduardo dos Santos, e de Américo Amorim, pela módica quantia de 40 milhões de euros.
Entraram, pois, 40 milhões nas contas do Estado? Não: saíram (mais) 600 milhões, pois o Governo PSD/CDS comprometeu-se, para que o BIC fizesse o favor de "comprar" o BPN por 40 milhões, a dar-lhe... 600 milhões. Parece que para o "viabilizar". E ainda a emprestar-lhe outros 300 milhões a 0% de juros. E a ficar com o encargo de metade dos seus trabalhadores.
Não foi um negócio da China, foi um negócio de pôr os olhos em bico. E, como em negócios assim há sempre um otário, adivinhe o leitor a que bolsos irão parar os seus subsídios de férias e de Natal.

terça-feira, 27 de março de 2012

Dia 27 [Março de 2009]

Saco de gatos
Os avisos não faltaram: cuidado, a União Europeia arrisca-se a ser um saco de gatos com tanto de perigoso como de ridículo. Era impossível que os velhos egoísmos nacionais, a sempiterna ambição pessoal dos políticos, a corrupção mental (pelo menos essa) que desde a primeira hora contagia qualquer intento de organização colectiva que não se reja por princípios claros de honestidade intelectual e de respeito mútuo, era impossível, repito, que este conjunto de negatividades extremas não acabasse por confrontar a União Europeia com a sua mais grotesca caricatura. Sucedeu agora com a intervenção do checo Mirek Topolanek, presidente de turno da União e, desconcertante paradoxo, demissionário do cargo de primeiro-ministro do seu país, que não só investiu contra o presidente dos Estados Unidos nos termos mais duros, acusando-o de, com o seu plano, levar a economia pelo «caminho do inferno», ou, em versão atenuada, «do desastre», como deixou claro por onde vão os seus sonhos e simpatias: liberalismo radical da velha escola e rejeição de qualquer medida que possa ser assimilável, ainda que superficialmente, a um intervencionismo social-democrata. O sr. Topolanek é, como se vê, uma firme esperança da humanidade.
Por coincidência, o presidente do governo de Espanha, Rodríguez Zapatero, encontrou-se ainda há dois dias sob fogo cerrado de todo o arco da oposição parlamentar por causa, não da próxima retirada das tropas espanholas, que essa já estava decidida há mais de um ano, mas por ter faltado às normas mais elementares, não informando previamente a NATO nem a administração norte-americana. Em minha opinião, efectivamente, o governo errou. Mas a questão que se me apresenta é esta: que pensa o Parlamento Europeu fazer para deixar claro ao sr. Topolanek que ele, além de reaccionário, é grosseiro e mal-educado?
José Saramago, O CADERNO

segunda-feira, 26 de março de 2012

Dia 26 [Março de 2009]

Questão de cor
Diálogo num anúncio de automóveis na televisão. Ao lado do pai, que conduz, a filha, de uns seis ou sete anos, pergunta: «Papá, sabias que a Irene, a minha colega da escola, é negra?» Responde o pai: «Sim, claro…» E a filha: «Pois eu não…» Se estas três palavras não são precisamente um soco na boca do estômago, uma outra coisa serão com certeza: um safanão na mente. Dir-se-á que o breve diálogo não é mais que o fruto do talento criador de um publicitário de génio, mas, mesmo aqui ao lado, a minha sobrinha Júlia, que não tem mais que cinco anos, perguntada sobre se em Tías, localidade onde vivemos, havia negras, respondeu que não sabia. E Júlia é chinesa…
Diz-se que a verdade sai espontaneamente da boca das crianças, porém, vistos os exemplos dados, não parece ser esse o caso, uma vez que Irene é realmente negra e negras não faltam também em Tías. A questão é que, ao contrário do que geralmente se crê, por muito que se tente convencer-nos do contrário, as verdades únicas não existem: as verdades são múltiplas, só a mentira é global. As duas crianças não viam negras, viam pessoas, pessoas como elas próprias se vêem a si mesmas, logo, a verdade que lhes saiu da boca foi simplesmente outra.
Já o sr. Sarkozy não pensa assim. Agora teve a ideia de mandar proceder a um censo étnico destinado a «radiografar» (a expressão é sua) a sociedade francesa, isto é, saber quem são e onde estão os imigrantes, supostamente para os retirar da invisibilidade e comprovar se as políticas contra a discriminação são eficazes. Segundo uma opinião muito difundida, o caminho para o inferno está calcetado de boas intenções. Por aí creio que irá a França se a iniciativa prospera. Não é nada difícil imaginar (os exemplos do passado abundam) que o censo possa vir a converter-se num instrumento perverso, origem de novas e mais requintadas discriminações. Estou a pensar seriamente em pedir aos pais de Júlia que a levem a Paris para aconselhar o sr. Sarkozy…
José Saramago, O CADERNO

Dia-a-dia

• Sabia que... os habitantes do Porto são conhecidos como tripeiros pois doaram toda a carne disponível à armada que partiu para conquistar Ceuta em 1415 e ficaram apenas com as vísceras para comer, o que por sua vez deu origem ao prato tradicional as "tripas à moda do Porto"?

Tangerina

Mandarin Oranges (Citrus Reticulata).jpg
Tangerina Citrus reticulata.

domingo, 25 de março de 2012

Antonio Tabucchi

Antonio Tabucchi.jpgMorreu hoje, aos 68 anos, o poeta e escritor italiano Antonio Tabucchi.

Dia 25 [Março de 2009]

O amanhã e o milénio
Há dias li um artigo de Nicolas Ridoux, autor de Menos é mais. Introdução à filosofia do decrescimento, e recordei que já há uns bons anos, nas vésperas da entrada do milénio em que já estamos instalados, participei num encontro em Oviedo onde a alguns escritores se solicitava que traçássemos objectivos para o milénio. A mim pareceu-me que falar do milénio era demasiado ambicioso, por isso propus-me falar apenas do dia seguinte. Recordo que fiz propostas concretas e que uma delas era a agora enunciada por Ridoux no seu Menos é mais. Procurei no disco duro de computador e decidi-me a recuperar parte do que escrevi então e que hoje me parece ter ainda mais actualidade que nessa altura.
Quanto às visões do futuro, creio que seria preferível que começássemos por preocupar-nos com o dia de amanhã, quando se supõe que ainda estaremos quase todos vivos. Na verdade, se no remoto ano de 999, em qualquer parte da Europa, os poucos sábios e os muitos teólogos que então existiam se tivessem deitado a adivinhar sobre como seria o mundo daí a mil anos, estou que errariam em tudo. Contudo, algo penso eu em que mais ou menos acertariam: que não haveria qualquer diferença fundamental entre o confuso ser humano de hoje, que não sabe e não quer perguntar aonde o levam, e a amedrontada gente que, naqueles dias, acreditava estar próximo o fim do mundo. Em comparação, já será de prever um número muito maior de diferenças de todo o tipo entre as pessoas que hoje somos e aquelas que nos sucederão, não daqui a mil anos, mas a cem. Por outras palavras: talvez nós tenhamos ainda muito que ver com os que viveram há um milénio, mais do que com esses outros que daqui a um século habitarão o planeta... É agora que o mundo se acaba, está no ocaso o que há mil anos apenas alvorecia.
Ora, enquanto se acaba e não se acaba o mundo, enquanto se põe e não se põe o Sol, por que não nos dedicaremos a pensar um pouco no dia de amanhã, esse tal em que quase todos nós ainda estaremos felizmente vivos? Em vez de umas quantas propostas arrojadamente gratuitas sobre e para uso do terceiro milénio, que logo ele, mais do que provavelmente, se encarregará de reduzir a cisco, por que não nos decidimos a pôr de pé umas quantas ideias simples e uns quantos projectos ao alcance de qualquer compreensão? Estes, por exemplo, no caso de não se arranjar coisa melhor: a) Desenvolver desde a retaguarda, isto é, fazer aproximar das primeiras linhas de bem-estar as crescentes massas de população deixadas atrás pelos modelos de desenvolvimento em uso; b) Suscitar um sentido novo dos deveres humanos, tornando-o correlativo do exercício pleno dos seus direitos; c) Viver como sobreviventes, porque os bens, as riquezas e os produtos do planeta não são inesgotáveis; d) Resolver a contradição entre a afirmação de que estamos cada vez mais perto uns dos outros e a evidência de que nos encontramos cada vez mais isolados; e) Reduzir a diferença, que aumenta em cada dia, entre os que sabem muito e os que sabem pouco.
Creio que é das respostas que dermos a questões como estas que dependerá o nosso amanhã e o nosso depois de amanhã. Que dependerá o próximo século. E o milénio todo.A propósito, regressemos à Filosofia.
José Saramago, O CADERNO

sábado, 24 de março de 2012

Dia 24 [Março de 2009]

Lá vem lobo!
A história, em geral contada pelo avô da família, era infalível nos serões da província, não como simples divertimento dos inocentes infantes, mas como peça fundamental de um bom sistema educativo, precursora, de alguma forma, do juramento com que as testemunhas se comprometem, ou comprometiam, a dizer a verdade, toda a verdade e só a verdade. A dúvida que aí deixo resulta apenas do facto de não ser frequentador de tribunais, a minha curiosidade sobre as diversas manifestações da natureza humana não me incitou nunca a meter o nariz na vida alheia, mesmo tratando-se do maior criminoso do século. Feitios. Ora, o que na história do avô se contava era que um pequeno pastor de ovelhas, talvez para entreter as suas solitárias horas no monte, decidiu um dia gritar que vinha o lobo, que vinha o lobo, em modo tal que a gente da aldeia, armada de chuços, cachaporras e algum bacamarte da penúltima guerra, saiu em tromba para defender as ovelhas e, de caminho, o zagal que as guardava. Afinal, não havia lobo, tinha fugido com os gritos, disse o moço. Não era verdade, mas, como mentira, parecia bastante convincente. Satisfeito com o resultado da mistificação, o nosso pastor resolveu repetir a graça e, uma vez mais, a aldeia acudiu em peso. Nada, de lobo nem cheiro. À terceira vez, porém, ninguém moveu um pé da sua casa, estava visto que o zagal mentia com quantos dentes tinha na boca, que grite, já se cansará. O lobo levou as ovelhas que quis, enquanto o moço, empoleirado numa árvore, assistia impotente ao desastre. Embora o tema de hoje não seja esse, vem a pêlo recordar as vezes que muitos de nós também gritámos que vinha o lobo. Foram muitos mais os que negavam que o lobo viesse, mas afinal veio e trazia uma palavra na coleira: crise.
Vamos a ver o que se passará depois da recente notícia de que são muitos, muitíssimos, os portugueses que decidiram aprender espanhol e tomam muito a sério a decisão. Temo, porém, que os patrioteiros do costume comecem a gritar por aí que vem o lobo. De acordo que alguma coisa vem, e essa é necessidade de aproximação dos povos da península, este de cá e os outros de lá. A História, quando quer, empurra muito.
José Saramago, O CADERNO

sexta-feira, 23 de março de 2012

Dia 23 [Março de 2009]

Funes & Funes
Há anos, bastantes já, numa viagem que do Canadá nos levaria a Cuba, fizemos paragem em Costa Rica e El Salvador. Desta última visita quero falar hoje. Como sempre sucede quando ando viajando por aí, dei algumas entrevistas, a mais importante das quais a Mauricio Funes, agora presidente eleito de El Salvador. Não o conhecia de antes. Tive a grata surpresa de encontrar, não um jornalista mais ou menos funcionarial encarregado de convencer o recém-chegado escritor das virtudes de um regime baseado na mais feroz repressão, responsável directo, desde o governo às forças militares, pelos abusos, arbitrariedades e crimes cometidos pelo Estado e pelas poderosas famílias de terratenentes, senhores absolutos da economia do país, mas um interlocutor culto e informado de tudo quanto respeitava, não só ao longo martírio sofrido pela população, mas também sobre a problemática possibilidade de uma mudança que ainda não parecia vislumbrar-se no horizonte social e político da sociedade salvadorenha. Não voltámos a ver-nos, mas Pilar tem mantido, desde então, e em momentos pessoais e políticos muito duros para eles, uma correspondência assídua com Vanda Pignato, a esposa de Mauricio, que, a partir de agora irá certamente intensificar-se.
O outro Funes que aparece no título é o de Borges, aquele homem dotado de uma memória que tudo absorvia, tudo registava, factos, imagens, leituras, sensações, a luz de um amanhecer, uma prega de água na superfície de um lago. Não peço tanto ao presidente eleito de El Salvador, apenas que não esqueça nenhuma das palavras que pronunciou na noite do seu triunfo perante milhares de homens e mulheres que tinham visto nascer finalmente a esperança. Não os desiluda, senhor presidente, a história política da América do Sul transborda de decepções e frustrações, de povos inteiros cansados de mentiras e enganos, é tempo, é urgente mudar tudo isto. Para Daniel Ortega, já temos um.
José Saramago, O CADERNO

quinta-feira, 22 de março de 2012

ANIVERSÁRIO DO CORREIO DO PLANALTO

Na opinião generalizada de quantos lá estiveram, o Almoço Comemorativo do 30.º Aniversário do Correio do Planalto foi uma festa inolvidável.
Anunciado a medo, quase à última hora, acorreram Amigos de Lisboa, Porto, Barcelos, Braga, Guimarães, Chaves, Vigo e outras terras, entre elas Montalegre, donde, afora os meus familiares, compareceu o número fantástico e inacreditável de perto duma dúzia de presenças. Que ninguém diga que, para gáudio e consolação de quem há trinta anos o mantém na brecha, Correio do Planalto não é lido e amado em Montalegre e seus arredores. A alegria é tanta que até dá vontade de chorar. À vista do elevado número de assinantes que por aí recebe o jornal e o não paga, cheguei a sonhar que muitos deles aproveitassem a oportunidade para se redimirem. Assim não aconteceu, paciência. Sempre fui um sonhador acordado e desiludido. E, nesta época da vida, mais desilusão menos desilusão, nada tira ou acrescenta ao resultado final. E o resultado final, tanto o meu como o do Correio do Planalto, está à vista: morte a curto prazo e esquecimento eterno. Acho que para remate de tanta choradeira, só esta citação de Dante: «Lasciata ogni speranza voi ch’entrate». («Perdei toda a esperança, vós que entrais» – inscrição colocada pelo poeta à porta do Inferno). E basta de lamúrias. Como dizia o meu defunto vizinho Ladrugães: «Sessim cordas!»[1] Corações ao Alto! Ao arrepio da de Montalegre, a representação do Porto, à volta de setenta pessoas, encheu-me de alegria e de orgulho. Que ninguém diga que sou mau vizinho ou que não tenho amigos na terra onde resido. O meu profundo reconhecimento aos meus Amigos do Porto. Coloco-os aqui em primeiro lugar, por terem sido os mais numerosos. Mas o sentimento de profunda gratidão que lhes testemunho vai inteirinho para todos os outros que vieram das outras terras supracitadas, Montalegre incluída, naturalmente.
Outro motivo de alegria e de orgulho foi eu ter conseguido reunir em Padornelos nomes altamente colocados e representativos da política, da justiça, da magistratura, da advocacia, da medicina, da economia, do comércio, da indústria, do ensino, das artes e das letras. Não distingo ninguém em particular, porque, na minha amizade e no meu coração, todos os que no pretérito dia 12 de Dezembro estiveram em Padornelos, me são igualmente queridos.
Resta-me agradecer aos anfitriões, Ricardo Moura e esposa, D. Aldina, o esplêndido serviço que nos apresentaram e a inexcedível simpatia com que nos serviram.
E para fazer água na boca aos que lá não foram, vou resumir o que lá se passou:
Pelas dez horas mataram-se quatro porcos taludos, dois dos quais bichos de respeito, coisa de passar a perna aos descritos por Homero na Odisseia ou por Petrónio no Satyricon.
Enquanto se procedia à queima, lavagem e abertura dos cevados ao ar livre, dentro do Hipódromo, ao calor duma enorme fogueira de cepos de carvalho, começaram a ser servidos os aperitivos: presunto, salpicão, alheiras a saltar da brasa, sangue, entre nós mais conhecido por sarrabulho, tudo regado por um delicioso vinho tinto da região do Douro, ou, na alternativa, por sápido alvarinho da região de Melgaço.
Pela uma da tarde apareceu o cozido, duma abundância e primor de confecção que arrancou aplausos a todos os comensais que o atacaram quantas vezes quiseram e a barriguinha lho consentiu.
Para ajudar ao quilo do toucinho, da orelheira e do chispe, uma sopa de couves, dessas couves de Barroso que, por esta época do ano, sabem a manjar de anjos.
E foi a vez de entrarem os postres em acção: filhós de sangue; doces caseiros duma variedade e requinte de paladar que fizeram as delícias de todos, dum modo especial das senhoras e das crianças; fruta variada e abundante; café, Aguardente Velha de Singeverga e whisky de vinte anos ad libitum.
Et super omnia, uma alegre e salutar camaradagem entre cento e muitos convivas à volta duma fogueira, sempre de copo na mão e riso nos lábios, tarde fora, noite dentro.
Tudo isto por 25 euros. Mas não foram todos para o Ricardo. Ainda sobrou algum para o jornal. Não tanto como eu contava, mas não me arrependo de ter organizado este Almoço-Convívio. Basta dizer que já recebi propostas para o repetir no próximo ano. Estou a ponderar seriamente o assunto.
Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS II – Crónicas de Barroso (p. 37 e ss.)


[1] Corruptela faceta da invocação latina: sursum corda!

quarta-feira, 21 de março de 2012

Jürgen Habermas: A Constituição da Europa

Capas JL - Jl 1082 nas bancas!No JL-JORNAL DE LETRAS, ARTES E IDEIAS n.º 1082

Ensaio sobre a Constituição da Europa é a última obra de Jürgen Habermas, 82 anos, um dos mais importantes pensadores contemporâneos, com uma vasta e fundamental obra sobre vários temas, incluindo a teoria política, a sociologia, a ética do discurso e a crítica da razão. Mas talvez nunca como neste novo e muito recente Ensaio, que vai agora sair em Portugal com a chancela das Edições 70 (grupo Almedina), o filósofo alemão tratou questões tão na ordem do dia e mesmo no imediato decisivas, no “seu longo e brechtiano impulso de melhorar a Europa e o mundo” – como escreve num excelente prefácio o que é, por sua vez, não só um eminente constitucionalista como um dos expoentes da ciência política e do pensamento em Portugal.  É esse prefácio que’ aqui antecipamos
José Joaquim Gomes Canotilho 

terça-feira, 20 de março de 2012

COISAS DE SONETOS E DE BEIJOS

Antigamente, aqueles que presumiam de eruditos e latinistas, estampavam na última página dos livros este assomo de vaidade mascarado de modéstia: Faci quod potui. Faciant meliora potentes. (Fiz o que pude. Faça melhor quem puder.) No meu caso, tenho consciência de não ter feito pelo Correio do Planalto tudo o que podia, mas apenas o que me foi possível ou as circunstâncias duma vida profissional demasiado absorvente o permitiram. Seja como for, dediquei a este jornalzinho de província, ao longo destes últimos trinta anos, alguns milhares de horas que podia ter dedicado a fazer qualquer outra coisa, verbi gralia, de paparriba à sombra duma faia de frondosa copa (patulae recubans sub tegmine fagi) e a suspirar de prazer com Tityreus: deus nobis haec otia fecit (deus fez para nós estes regalos). [1]
O que posso garantir, é que o Correio do Planalto me tem dado mais arrelias do que gostos e exigido sacrifícios e custos de lavoura muito superiores às colheitas.
Valeu a pena? Se eu fosse lido em Fernando Pessoa, responderia: «Tudo vale a pena se a alma não é pequena.» Como não sou, não sei responder. O que sei e sinto é que hoje a minha alma é muito mais pequena do que era em 1974. Comecei com D. Quixote de la Mancha, disposto a endireitar o mundo, e acabo com Voltaire, o qual, após uma longa vida a combater a estupidez humana, ironizava: «Afinal, deixo este mundo ainda mais estúpido do que o encontrei.»
E a propósito de estupidez humana, vou contar uma história.
Aí pela década de 1950, mais coisa menos coisa, apareceu em Montalegre um indivíduo precedido dum nome pomposo, cheio de ressonâncias históricas e bélicas. Bandeira de Toro, era o nome do homem – ignoro se de baptismo, se de guerra.
Apresentou-se ao Presidente da Câmara, na altura o Tenente Canedo, e propôs-lhe a publicação duma monografia do concelho. O Tenente aceitou, pôs-lhe um guia e um carro da Câmara às ordens, deu-lhe algum por conta, recomendações para todos os possíveis patrocinadores e esperanças duma boa gratificação, caso a obra lhe agradasse.
O Bandeira de Toro deu por aí umas voltas, deixou um lugar-tenente a recolher material e fundos, e foi pregar a outra freguesia. Antes, porém, para mostrar ao Presidente da Câmara, ao Barroso e ao mundo, que sabia escrever, botou soneto numa folha que, pela mesma altura, se publicava em Montalegre.
Glosava o dito soneto, por acaso de qualidade bastante duvidosa, o velho tema, já tratado pelos gregos, latinos, provençais, renascentistas, e todos os românticos de ontem e de hoje, dos namorados que se zangam e devolvem um ao outro os presentes recebidos. E aqui é que entra a chamada chave de oiro, no caso pendente, ferrugenta e de empréstimo: o namorado exige que a namorada lhe devolva os beijos.
Vai daí, os leitores da folha onde o pasticho vinha escarrapachado, em vez de acusarem o poeta de canhestro, coxo e plagiário, viraram-se contra o responsável da mesma por haver permitido a publicação de tal escandaleira: «Dois jovens a beijarem-se num soneto! Onde é que tal se viu? Mas então já não há respeito nem temor de Deus nesta terra? É preciso acabar com a pouca vergonha…» E o beatério de ambos os sexos tal alarido e pressão fez sobre as autoridades, que estas suspenderam a folha. [2]
Felizmente, neste particular, alguma coisa temos progredido. Hoje os jovens já não precisam de recorrer ao soneto para trocarem beijos imaginários. Trocam-nos em carne e osso na rua, à vista de toda a gente.
Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS II – Crónicas de Barroso (p. 34 e ss.)


[1] Virgílio – Éclogas.
[2] Lembro-me do episódio mas não estou em condições de garantir o nome da folha. Creio tratar-se duma «Separata do Estrela do Minho ao Serviço de Montalegre» ou, posteriormente, «Notícias de Barroso». Num caso ou noutro, o responsável devia ser o falecido José Taboada, o qual, a partir de 1955, dirigiu uma secção de «Notícias de Montalegre», no semanário «Noticias de Chaves».

Dia 20

• O Equinócio de Primavera (no hemisfério Norte) e o Equinócio de Outono (no hemisfério Sul) geralmente ocorrem deste dia.

segunda-feira, 19 de março de 2012

Dia 19

• Hoje é o Dia do Pai em vários países. Eu é que festejo o meu só de espírito.

sábado, 17 de março de 2012

O Guardador de Rebanhos - VIII

autor: Fernando Pessoa (Alberto Caeiro)
VIII
Num meio-dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.
Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas…
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque não era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.
Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!
Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o sol
E desceu pelo primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos burros,
Rouba a fruta dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estradas
Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.
A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as cousas.
Aponta-me todas as cousas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.
Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar no chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou —
«Se é que ele as criou, do que duvido» —
«Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória
Mas os seres não cantam nada.
Se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres.»
E depois, cansado de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa.
Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.
E a criança tão humana que é divina
É esta minha quotidiana vida de poeta,
E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre,
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.
A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E a outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é o de saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.
A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direcção do meu olhar é o seu dedo apontando.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.
Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos e dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.
Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo um universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.
Depois eu conto-lhe histórias das cousas só dos homens
E ele sorri, porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios, e dos navios
Que ficam fumo no ar dos altos-mares.
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade
Que uma flor tem ao florescer
E que anda com a luz do sol
A variar os montes e os vales
E a fazer doer aos olhos os muros caiados.
Depois ele adormece e eu deito-o.
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo-o lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.
Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos.
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate as palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.
Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.
Esta é a história do meu Menino Jesus.
Por que razão que se perceba
Não há-de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam?

sexta-feira, 16 de março de 2012

UM BLOGGER CHAMADO SARAMAGO*

Curiosa personagem, este Saramago. Tem oitenta e sete anos e (diz ele) alguns achaques, ganhou o Nobel, distinção que lhe permitiria nunca mais produzir nada porque seja como for já tem no Panteão o seu lugar garantido (o avaríssimo Harold Bloom definiu-o "o romancista mais dotado de talento ainda em vida… um dos últimos titãs de um género literário em vias de extinção"), eis que aparece a manter um blog onde se mete um pouco com toda a gente, atraindo sobre a sua pessoa polémicas e excomunhões vindas de muitos lados – mais frequentemente não por dizer coisas que não deve dizer mas porque não perde tempo a medir as palavras – e talvez o faça mesmo de propósito.
O quê, ele? Ele que cuida da pontuação ao ponto de a fazer desaparecer, que na sua crítica moral e social nunca leva o problema a peito, mas poeticamente o contorna nos modos do fantástico e do alegórico, de modo que o seu leitor (embora suspeitando que de te fabula narratur) terá de pôr muito de si para compreender até onde vai parar o apólogo – como no seu Ensaio sobre a Cegueira –, faz viajar o leitor numa névoa leitosa em que nem sequer os nomes próprios, de que é bastante parco, dão um sinal claramente reconhecível, ele que no Ensaio sobre a Lucidez faz uma opção política decidida com base em enigmáticos votos em branco? E este escritor fantasioso e metafórico vem dizer-nos despreocupadamente que Bush é de «uma ignorância abissal, e uma expressão verbal confusa perenemente atraída pela irresistível tentação do puro despropósito», cowboy que confundiu o mundo com uma manada de vacas, que «não sabemos sequer se pensa (no sentido nobre da palavra)», «robô mal programado que constantemente confunde e troca as mensagens que leva gravadas dentro», «mentiroso compulsivo», «corifeu de todos os outros mentirosos que o rodearam, aplaudiram e serviram durante os últimos anos»? E este delicado tecelão de parábolas usa palavras que não deixam margem para dúvidas quando define o dono da editora que o publica? E este ateu manifesto, para quem Deus é «o silêncio do universo e o homem o grito que dá sentido a este silêncio», repõe Deus em cena para se interrogar sobre o que pensa Ratzinger? E, militante comunista (ainda tenazmente), põe-se a gritar que «a esquerda não tem uma puta ideia do mundo em que vive», e ainda por cima se queixa de não ter tido resposta (sei lá, uma expulsão, uma excomunhão ao menos)? E arrisca-se à acusação de anti-semitismo por ter criticado a política do governo de Israel simplesmente esquecendo-se, na sua irada participação nas desventuras palestinas, de se lembrar – como uma equilibrada análise pretenderia – que há quem negue o direito à existência de Israel? Mas ninguém leva em conta que quando fala de Israel, Saramago pensa em Jahvé, «Deus feroz e rancoroso», e neste sentido não é mais anti-semita do que é anti-ariano e certamente anticristão, dado que para todas as religiões procura ajustar contas com Deus – que evidentemente, chame-se como se chamar nas várias línguas, não cessa de o importunar. E ser importunado por Deus é certamente motivo de ira furibunda contra todos os que dele fazem armadura.
Se tivesse sempre em conta os prós e os contras, Saramago também saberia que há inventivas e inventivas. Cito (de cor) Borges, que citava (talvez de cor) o doutor Johnson que citava o facto daquele tal que insultava assim o seu adversário: «Senhor, a vossa mulher, com a desculpa de ter um bordel, vende tecidos de contrabando.» E afinal Saramago não faz cerimónias, ou seja, não o manda dizer por outro e, na sua actividade de comentador diário da realidade que o rodeia, tira a desforra sobre toda a imprecisão sinistra das suas fábulas.
Tem-se falado muito do ateísmo militante de Saramago. Com efeito, a sua polémica não é contra Deus: uma vez admitindo que «a sua eternidade é só a de um eterno não-ser», Saramago poderia estar sossegado. A sua aversão é contra as religiões (e é por isso que o atacam de vários lados, negar Deus é concedido a todos, enquanto polemizar com as religiões põe em causa as estruturas sociais).
Uma vez, precisamente estimulado por uma das intervenções anti-religiosas de Saramago, reflecti sobre a célebre definição de Marx, para quem a religião é o ópio dos povos. Mas é verdade que as religiões têm sempre todas esta virtude soporífera? Saramago várias vezes tem atacado as religiões como fontes de conflito: «As religiões, todas elas, sem excepção, nunca servirão para aproximar e reconciliar os homens; pelo contrário, foram e continuam a ser causa de sofrimentos indescritíveis, de chacinas, de monstruosas violências físicas e espirituais que constituem um dos mais tenebrosos capítulos da mísera história humana» (la Repubblica, 20 de Setembro de 2001).
Saramago concluía algures que «se fôssemos todos ateus viveríamos numa sociedade mais pacífica». Não tenho a certeza de que tivesse razão, e parece que indirectamente lhe teria respondido o papa Ratzinger na sua encíclica Spe salvi, em que dizia que é o ateísmo dos séculos XIX e XX, se bem que se tenha apresentado como protesto contra as injustiças do mundo e da história universal, que fez que «de tal premissa tenham resultado as maiores crueldades e violações da justiça».
Talvez Ratzinger pensasse naqueles sandeus de Lenine e Estaline, mas esquecia-se que nas bandeiras nazis estava escrito Gott mit uns (que significa «Deus está connosco»), que falanges de capelães militares benzeram os arruaceiros fascistas, que inspirado em princípios religiosíssimos e apoiado por Guerrilheiros do Cristo-Rei era o massacrador Francisco Franco (independentemente dos crimes dos adversários, foi sempre ele que começou), que religiosíssimos eram os Vandeanos contra os Republicanos, que até tinham inventado uma Deusa Razão, que católicos e protestantes se massacraram alegremente durante anos e anos, que tanto os Cruzados como os seus inimigos eram impelidos por motivações religiosas, que para defender a religião romana se puseram os leões a comer os cristãos, que por razões religiosas se acenderam inúmeras fogueiras, que religiosíssimos são os fundamentalistas muçulmanos, os autores do atentado das Twin Towers, Osama e os talibãs que bombardearam os Budas, que por razões religiosas se opõem a Índia e o Paquistão, e por fim que foi a invocar God Bless America que Bush invadiu o Iraque.
Por isso me punha a reflectir que talvez (se por vezes a religião é ou foi o ópio dos povos) com maior frequência tem sido a sua cocaína. Creio que esta é também a opinião de Saramago e ofereço-lhe a definição – e a sua responsabilidade. Saramago blogger é um zangado. Mas haverá realmente um hiato entre esta prática de indignação diária sobre o transeunte e a actividade de escrita de «opúsculos morais» válidos tanto para os tempos passados como para os futuros? Escrevo este prefácio porque sinto ter alguma experiência em comum com o amigo Saramago, que é a de escrever livros (por um lado) e por outro a de nos ocuparmos de crítica de costumes num semanário. Sendo o segundo tipo de escrita mais claro e divulgador que o outro, muita gente me tem perguntado se eu não despejaria nas pequenas peças periódicas reflexões mais amplas feitas nos livros maiores. Não, respondo eu, ensina-me a experiência (mas creio que o ensina a todos os que se encontrarem em situação análoga) que é o impulso de irritação, a dica satírica, a chicotada crítica escrita à pressa, que fornecerá a seguir o material para uma reflexão ensaística ou narrativa mais desenvolvida. É a escrita diária que inspira as obras de maior empenho, e não o contrário.
E pronto, eu diria que nestes breves escritos Saramago continua a fazer a experiência do mundo tal como desgraçadamente ele é, para depois o rever a uma distância mais serena, sob a forma de moralidade poética (e às vezes pior do que é – embora pareça impossível ir mais longe).
Mas depois, estará realmente sempre assim tão zangado este mestre da filípica e da catilinária? Parece-me que além da gente que ele odeia também existe a gente que ele ama, e eis as peças afectuosas dedicadas a Pessoa (não se é português em vão) ou a Jorge Amado, a Carlos Fuentes, a Federico Mayor, a Chico Buarque de Hollanda, que nos mostram que este escritor é pouco invejoso dos colegas e sabe tecer-lhes delicadas e ternas miniaturas.
Para não falar (e eis o retorno aos grandes temas da sua narrativa) de quando da análise do quotidiano salta para os grandes problemas metafísicos, para a realidade e a aparência, para a natureza da esperança, para como são as coisas quando não estamos a olhar para elas.
Então volta à cena o Saramago filósofo-narrador, já não zangado mas meditativo e incerto. Contudo não nos desagrada mesmo quando se enfurece. É simpático. 
Umberto Eco
[Tradução de José Colaço Barreiros]

* O presente texto é o Prefácio à edição italiana de O Caderno de José Saramago (Turim, Bollati Boninghiere, 2009), que aqui incluímos pela sua lucidez e rigor. A Editorial Caminho agradece penhoradamente a Umberto Eco a autorização concedida.

quinta-feira, 15 de março de 2012

Dia 15 [Março de 2009]

Presidenta
Este texto cerra meio ano de trabalho. Outros trabalhos e anos sucederão a estes se os fados assim quiserem. Hoje, por coincidência dia do seu aniversário, o meu tema é Pilar. Nada de surpreendente para quem quiser recordar o que sobre ela tenho dito e escrito em já quase um quarto de século que levamos juntos. Desta vez, porém, quero deixar constância, e supremamente o quero, do que ela significa para mim, não tanto por ser a mulher a quem amo (porque isso são contas do nosso rosário privado), mas porque graças à sua inteligência, à sua capacidade criativa, à sua sensibilidade, e também à sua tenacidade, a vida deste escritor pôde ter sido, mais do que a de um autor de razoável êxito, a de uma contínua ascensão humana. Faltava, mas isso não podia imaginá-lo eu, a idealização e a concretização de algo que ultrapassasse a esfera da actividade profissional ou que dela pudesse apresentar-se como seu prolongamento natural. Foi assim que nasceu a Fundação, obra em tudo e por tudo obra de Pilar e cujo futuro não é concebível, aos meus olhos, sem a sua presença, sem a sua acção, sem o seu génio particular. Deixo nas suas mãos o destino da obra que criou, o seu progresso, o seu desenvolvimento. Ninguém o mereceria mais, nem sequer de longe. A Fundação é um espelho em que nos contemplamos os dois, mas a mão que o sustém, a mão firme que o sustém, é a de Pilar. A ela me confio como a qualquer outra pessoa não seria capaz. Quase me apetece dizer: este é o meu testamento. Não nos assustemos, porém, não vou morrer, a Presidenta não mo permitiria. Já lhe devi a vida uma vez, agora é a vida da Fundação que ela deverá proteger e defender. Contra tudo e contra todos. Sem piedade, se necessário for.
José Saramago, O CADERNO