Anteontem
telefonou-me um moço do liceu a pedir-me num encontro com mais dois colegas
para lhes falar de Aparição.
Isto porque umas três ou quatro turmas tinham ido em camionetas a Évora onde se
passava o romance que tinham dado nas aulas. Disse-lhe que não podia nem devia.
O não poder vinha da escassez de tempo e saúde. E o não dever vinha de me não
querer sobrepor à professora, até porque o autor de um romance não é a pessoa
mais indicada para falar dele e diz por isso muitas vezes tolices. Um autor
sabe quando muito o que quis dizer
mas não o que disse. Mas o que o moço queria saber era se talou tal personagem
tinham existido. Visitaram os sítios de que falo no livro? Todos. E tinham
conversado com o Charrua e o Madeira Piçarra, que fora meu aluno e dirigia um
jornal de Évora. Lá lhe disse que a Cristina existiu e existe ainda felizmente.
Tem já 40 anos e um filho de 17 ou 18. Existiu o Alfredo, o dr. Moura, a Sofia,
o Manuel Pateta – uns vivos, outros já mortos. Ora bem. Que é que o moço queria
saber, com isto? Porque é que seduz conhecer uma realidade que a ficção
utilizou? É uma questão de sempre e dela devo já ter falado. E o que devo ter
dito é simples. O que se procura nesta curiosidade é ver na realidade o que é do domínio e sedução do imaginário. O que
se pretende é integrar um no outro. O que se pretende é meter o imaginário no
real e ver neste a transfiguração daquele. O que se pretende é o impossível.
Mas para o homem só o impossível é que é bastante. Muita gente foi já a Évora por
causa do livro. E de um sei eu – porque o escreveu – que se pôs a olhar o real
por mim descrito, para o confrontar depois e de seguida com o que eu desse real
escrevi. Naturalmente, o resultado deve ter sido decepcionante. Foi pena que o
moço – mas isso não lho disse – não questionasse sobre o livro o senhor comuna
presidente da Câmara. Que é que o tipo lhe iria dizer? Talvez apenas que eu era
um inimigo das classes trabalhadoras e não tinha proposto no livro a grande conveniência
justiceira da futura reforma agrária.
*
Fomos almoçar a
casa dos Bragas no Penedo, almoço de anos da Helena Sá. Duas filhas do Mário
Braga, genros e netos. E nós. Comeu-se, falatou-se, ajeitando à circunstância a
alegria que foi possível. E a certa altura reparei numa gravura a cores da
Luísa Bastos. Tenho dela também uma gravura linda que representa uma criança
num vestuário vaporoso com umas calças apertadas nos tornozelos.
– Da Luísa Bastos?
– disse eu à Helena, lendo o nome na gravura. – A propósito: que é feito desta
rapariga que já não vejo há imenso tempo?
– Mas há imenso
tempo que já morreu.
Olhei de novo a
gravura, transfigurada agora pela morte E olhei de novo aqui em casa a minha
gravura e achei-lhe uma beleza nova e terrível à memória para nunca mais de
quem a criou. E logo que chegamos a casa, instalo-me no meu canto do escritório,
que é onde habita a minha parte consuetudinária de ser vivente. Releio o Kant
da Critica do Juízo porque não é
fácil entender bem as suas razões de o intercalar entre as outras duas
críticas. Mas estava nisto quando a Regina me chamou aos gritos. Estava
nauseada, no limite do vómito, cheia de repugnância no seu ser moral. Aqui no
quintal pela Primavera sobretudo, o chão aparece aqui e além revolvido, com a
areia em montículos à superfície. São as toupeiras, essa praga subterrânea como
as revoluções esquerdinas. E em vistas disso a Regina trouxe de Melo um
aparelho de lata que lhes trama os seus desígnios de sapa. É um tubo que se
ajusta ao buraco da sua galeria e que lhes permite a entrada mas não a saída. O
grave problema depois é matar o bicho que está vivo na prisão. O método
prático, usado na minha aldeia para as ninhadas de gatos recém-nascidos e que
perturbam pela abundância o equilíbrio ecológico, é dar-lhes banhos de imersão.
A Regina tentou o método com a toupeira viva na sua prisão de lata, mas o balde
em que a mergulhava não tinha fundura bastante para ela se decidir ao suicídio.
E então erguia o gargalo na sua teimosia em continuar a estar viva para nos
lavrar o quintal. E assim não houve outro remédio senão abrir-lhe a célula
prisional e dar-lhe logo uma sacholada. Mas não se deu por convencida logo à
primeira e houve que repetir. Quando fui ver o que havia, a Regina estava com
eructações dos seus remorsos de assassina e o bichinho estava estendido e
convencido. Não o examinei de perto. Pareceu-me um rato, sobretudo pelo negro
da pele e pelo rabo comprido. Já não via toupeiras creio que desde a infância
na aldeia. E confrontada esta com as que tinha na memória, não estava parecida.
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