segunda-feira, 20 de maio de 2013

20 – Maio (domingo). [1990]

Anteontem telefonou-me um moço do liceu a pedir-me num encontro com mais dois colegas para lhes falar de Aparição. Isto porque umas três ou quatro turmas tinham ido em camionetas a Évora onde se passava o romance que tinham dado nas aulas. Disse-lhe que não podia nem devia. O não poder vinha da escassez de tempo e saúde. E o não dever vinha de me não querer sobrepor à professora, até porque o autor de um romance não é a pessoa mais indicada para falar dele e diz por isso muitas vezes tolices. Um autor sabe quando muito o que quis dizer mas não o que disse. Mas o que o moço queria saber era se talou tal personagem tinham existido. Visitaram os sítios de que falo no livro? Todos. E tinham conversado com o Charrua e o Madeira Piçarra, que fora meu aluno e dirigia um jornal de Évora. Lá lhe disse que a Cristina existiu e existe ainda felizmente. Tem já 40 anos e um filho de 17 ou 18. Existiu o Alfredo, o dr. Moura, a Sofia, o Manuel Pateta – uns vivos, outros já mortos. Ora bem. Que é que o moço queria saber, com isto? Porque é que seduz conhecer uma realidade que a ficção utilizou? É uma questão de sempre e dela devo já ter falado. E o que devo ter dito é simples. O que se procura nesta curiosidade é ver na realidade o que é do domínio e sedução do imaginário. O que se pretende é integrar um no outro. O que se pretende é meter o imaginário no real e ver neste a transfiguração daquele. O que se pretende é o impossível. Mas para o homem só o impossível é que é bastante. Muita gente foi já a Évora por causa do livro. E de um sei eu – porque o escreveu – que se pôs a olhar o real por mim descrito, para o confrontar depois e de seguida com o que eu desse real escrevi. Naturalmente, o resultado deve ter sido decepcionante. Foi pena que o moço – mas isso não lho disse – não questionasse sobre o livro o senhor comuna presidente da Câmara. Que é que o tipo lhe iria dizer? Talvez apenas que eu era um inimigo das classes trabalhadoras e não tinha proposto no livro a grande conveniência justiceira da futura reforma agrária.
*
Fomos almoçar a casa dos Bragas no Penedo, almoço de anos da Helena Sá. Duas filhas do Mário Braga, genros e netos. E nós. Comeu-se, falatou-se, ajeitando à circunstância a alegria que foi possível. E a certa altura reparei numa gravura a cores da Luísa Bastos. Tenho dela também uma gravura linda que representa uma criança num vestuário vaporoso com umas calças apertadas nos tornozelos.
– Da Luísa Bastos? – disse eu à Helena, lendo o nome na gravura. – A propósito: que é feito desta rapariga que já não vejo há imenso tempo?
– Mas há imenso tempo que já morreu.
Olhei de novo a gravura, transfigurada agora pela morte E olhei de novo aqui em casa a minha gravura e achei-lhe uma beleza nova e terrível à memória para nunca mais de quem a criou. E logo que chegamos a casa, instalo-me no meu canto do escritório, que é onde habita a minha parte consuetudinária de ser vivente. Releio o Kant da Critica do Juízo porque não é fácil entender bem as suas razões de o intercalar entre as outras duas críticas. Mas estava nisto quando a Regina me chamou aos gritos. Estava nauseada, no limite do vómito, cheia de repugnância no seu ser moral. Aqui no quintal pela Primavera sobretudo, o chão aparece aqui e além revolvido, com a areia em montículos à superfície. São as toupeiras, essa praga subterrânea como as revoluções esquerdinas. E em vistas disso a Regina trouxe de Melo um aparelho de lata que lhes trama os seus desígnios de sapa. É um tubo que se ajusta ao buraco da sua galeria e que lhes permite a entrada mas não a saída. O grave problema depois é matar o bicho que está vivo na prisão. O método prático, usado na minha aldeia para as ninhadas de gatos recém-nascidos e que perturbam pela abundância o equilíbrio ecológico, é dar-lhes banhos de imersão. A Regina tentou o método com a toupeira viva na sua prisão de lata, mas o balde em que a mergulhava não tinha fundura bastante para ela se decidir ao suicídio. E então erguia o gargalo na sua teimosia em continuar a estar viva para nos lavrar o quintal. E assim não houve outro remédio senão abrir-lhe a célula prisional e dar-lhe logo uma sacholada. Mas não se deu por convencida logo à primeira e houve que repetir. Quando fui ver o que havia, a Regina estava com eructações dos seus remorsos de assassina e o bichinho estava estendido e convencido. Não o examinei de perto. Pareceu-me um rato, sobretudo pelo negro da pele e pelo rabo comprido. Já não via toupeiras creio que desde a infância na aldeia. E confrontada esta com as que tinha na memória, não estava parecida.

Sem comentários:

Enviar um comentário