domingo, 30 de junho de 2013

Miguel Torga

S. Martinho de Anta, 30 de Junho de 1974 – Lá fui falar a Sabrosa, movido por um imperativo moral. No momento confuso que atravessamos, era um dever não fechar os ouvidos ao apelo que me vinha destes lados. Maldito seja quem se nega aos seus nas horas apertadas. Mas, enquanto arengava, por mais que iludisse os olhos, não consegui ressuscitar a figura inteiriça de meu pai e sentá-la entre os homens bons do concelho. E era ela que eu precisava que estivesse ali a ouvir-me, a aplaudir-me com as suas mãos terrosas ou a mandar-me calar. 

J. Gomes Ferreira: 30 de Junho [1966]

Na secção «Conheça a sua Estrela» do Diário de Lisboa, no número de 25 de Junho último, vinha o seguinte prognóstico referente ao signo da «Virgem»:
«A última semana do mês é bastante crítica pelas dissonâncias sobre este signo, sobretudo porque este signo governa Portugal, o Governo da Nação, etc. Uma torrente de rebeldias desencadeadas; de mudanças inesperadas nas esferas políticas e administrativas dentro e fora das fronteiras. Tensão excepcional nas Áfricas, onde os problemas são vitais. Vida sentimental: Saturno continua na oposição. A chave é: restrição, demora, endurecimento, obstrução do destino impenetrável. Personifica a fatalidade colectiva. Saúde: arteriosclerose, reumatismos.
Dias desfavoráveis: 27, 29, 30.»
Como calculam este recorte tem andado de mão em mão e, embora não acreditem – suscitou esperanças em muita gente. Na verdade, só nos restava a astrologia. 

Vergílio Ferreira [1990]

30 – Junho (sábado). Hoje é dia de ler muito papel de jornal. Que desorientação em todo o Mundo. Há muito que eu já o sabia. Mas havia quem estivesse orientado e isso me desarrumava e sobretudo, por reflexo, me dava paradoxalmente alguma calma. Eram tipos iluminados que faziam peso do seu lado para equilibrar. Mas agora desse lado também não há nada. É aflitivo pensar o vazio. Alguém disse em França do Para Sempre que era «à l’évidence un des grands textes de la nostalgie européenne d’aujourd’hui». Li-o na contracapa da tradução de Manhã Submersa («Matin Perdu»). E essa melancolia cai sobre mim e arrasa-me de desamparo. Estou triste, é isso. É uma tristeza que vai do que me é difícil na vida e cobre tudo o mais da sua sombra. Há os que fogem desvairados para o abrigo de uma religião. Há os que se riem infantilmente, ingenuamente, desengraçadamente. Que espectáculo de ruínas. Então volto-me para o irreal do que foi e é só a realidade do meu imaginar. Pessoas que amei. Horas da minha impossível quietude. Não ler. Não pensar. Que é que posso ler ou pensar? Horas da nulidade de mim. Suave resignação no aceno longínquo do que morreu. Triste. Quanto. Mundo da desagregação, da arte em farrapos, da política em ruínas, da religião sem fé como lareira sem fogo, da moral incompreensível e amoralidade normalizada, do fútil e efémero, do presente rápido sem futuro nem passado, dos filhos sem pais que não tiveram tempo para isso, do lixo, do estrume, da grande manta de caca a envolver e preencher tudo quanto foi um dia o lugar de se ser homem em arte, em cultura, em tudo o que foi razão de o ser. Estou triste e cheio de pressa de dormir. De esquecer. 

sábado, 29 de junho de 2013

Miguel Torga, Coimbra, 29 de Junho de 1974

Coimbra, 29 de Junho de 1974 – Como as pessoas são surdas e absurdas! Como são incapazes de entender ou pressentir o sofrimento dos outros, mesmo quando eles têm a franqueza e a fraqueza de se queixar! Poderia parecer que o desespero endémico da vida fosse uma razão suficiente de reciproca compreensão e solidariedade. Mas não. Até hoje, a humanidade ainda não criou nenhuma associação de angustiados. Nem podia. Porque, no fundo, a angústia é a íntima percepção da radical incomunicabilidade. 

O descalabro da UE

Angela Merkel também é das que nunca se enganam e raramente têm dúvidas: "Enquanto eu for viva", não haverá 'eurobonds', assegurou ela em vésperas da cimeira de Bruxelas.
A insolente afirmação não surpreende. A UE deixou há muito de funcionar democraticamente e "construção europeia" tornou-se sinónimo de alargamento e aprofundamento de uma espécie de "Lebensraum" dos interesses económicos e financeiros da Alemanha (e, subalternamente, dos da França) em que os restantes estados membros não contam. O famoso "poder de iniciativa" da Comissão está reduzido a declarações e tomadas de posição avulsas e sem consequências, e ao impotente Conselho Europeu não cabe senão ratificar o que já vem decidido das reuniões bilaterais entre Berlim e Paris que invariavelmente precedem as reuniões.
Bem podem o escorregadio Barroso, presidente da Comissão, Mário Draghi do BCE, Van Rompuy do Conselho e Juncker do Eurogrupo, anunciar planos sobre mutualização das dívidas soberanas ou sobre a integração bancária. O papel de todos eles no Conselho Europeu de ontem e hoje é o de Durão Barroso na cimeira dos Açores que decidiu a invasão do Iraque: ficar na fotografia. No que toca a decisões, Merkel já decidiu; e mais ou menos do que ela decidiu só por cima do seu cadáver.
Talvez já seja tempo de concluir que só sem a Alemanha UE e euro sobreviverão.
JN, 29/06/2012 – M. A. Pina

sexta-feira, 28 de junho de 2013

Miguel Torga, S. Martinho de Anta, 28 de Junho de 1976

S. Martinho de Anta, 28 de Junho de 1976 – Não tenho mão em mim. Trabalho excessivamente, sofro excessivamente, vivo excessivamente. Vou às do cabo em tudo, como se cada minuto fosse decisivo no meu destino. Durmo acordado, ando a galope, morro por antecipação. Vector de muitas forças, quando uma me trava, empurram-me as outras. E não tenho paz, não dou paz, nem quero paz. Sou um instrumento nas mãos de Deus, do diabo e da natureza. 

"Zona de conforto"

A crer na OCDE, os portugueses, sobretudo os mais jovens e qualificados, estão-se nas tintas para o apelo feito por Cavaco Silva em Sydney: "Fiquem em Portugal". E é a debandada geral: todos os anos 70 000 de nós, a maior parte com menos de 29 anos, abandonam o país que os abandonou.
Muitos são engenheiros, arquitectos, professores, cientistas, que levam na bagagem conhecimento técnico, doutoramentos, mestrados, licenciaturas, e a frustração por terem nascido num país que os enjeita, castigando-os por terem perdido anos a estudar e qualificar-se em vez de, como outros, se arrebanharem numa "jota" a colar cartazes e a aprender as florentinas artes da intriga, do servilismo e da ausência de pensamento próprio. E, por cima de tudo isto, são ainda alguns destes últimos, "emigrados" hoje nos cadeirões da AR ou do Governo e amanhã nos de alguma empresa pública, quem lhes aponta a porta de saída: "Deixem a vossa 'zona de conforto' e ponham-se a andar".
O "conforto" de que falam governantes e deputados da maioria é a humilhação diária do desemprego ou de empregos precários (mais ou menos como o de Eduardo Catroga) como aquele que recentemente oferecia o IEFP do ministro Álvaro a arquitectos com, no mínimo, mestrado, domínio do inglês e francês e conhecimentos de design de interiores, desenho 3d e autoCad: um horário de trabalho das 9.30 às 19.30 e salário mensal de 500 euros.

JN, 28/06/2012 – M. A. Pina

J. Gomes Ferreira: 28 de Junho [1966]

Apreensão do último livro de versos da Natália Correia: A Lira e o Vinho.
– Porquê? – perguntámos, pasmados.
E o Nikias, no Martinho, explicou:
– Não passa de um reflexo do escândalo da publicação da Antologia da Poesia Erótica e Satírica (colectânea organizada e prefaciada pela Natália – o que lhe valeu um processo de ódio na Boa Hora).
Isto é: a Censura já não serve apenas para os imbecis nos contagiarem de estupidez baixa.
Também serve de punhal de vingança miúda. 

quinta-feira, 27 de junho de 2013

QUE TEMPOS ESTES…


Por estar um dia bonito e eu de férias, lembrei-me de ir ver a rota do extinto contrabando.
Por alturas de S. Cornélia, concelho de Chaves, avistei ao longe um grande incêndio. Espessos rolos de fumo esbranquiçado, em ondas cada vez mais amplas, encastelavam-se serenamente no azul alvadio do céu. Lembrei-me da conhecida imagem do cogumelo da bomba atómica e estremeci. Mas continuei.
Pelo sim, pelo não, resolvi informar-me.
À porta dum snack-bar estava um carro de bombeiros. Dirigi-me a eles. Eram quatro, ainda jovens, dois sentados a beber qualquer coisa e os outros dois a jogar matrecos. Perguntei-lhes se poderia passar.
– Olhe que não sei. Mas suponho que sim.
– Poderia informar-se com os seus colegas pelo intercomunicador?
– Não trazemos lá ninguém.
– Pode ir à vontade – garantiu o dono do estabelecimento, de cotovelo recostado no balcão e ar tranquilo.
A estrada começava a descer.
Numa curva, ao lado dum carro com a sigla RTP, um camera-man filmava.
Mais abaixo, num outeirinho terraplanado em miradouro, três automóveis e meia dúzia de mirones.
Ao fundo, num extenso vale serpeado por um ribeiro, as chamas devoravam tranquilamente extensas matas de carvalhos e pinheiros.
Num lameiro, a meia encosta, um burro olhava também. Parecia tão admirado como eu.
Afinal, Nero tinha razão. O fogo não é uma calamidade a combater. É um espectáculo a admirar. Somos um país de nerozinhos pirómanos.
A informação do dono do snack-bar estava certa: passei à vontade.
Desci a Segirei, subi a Sernande, à Mesquita, à Gudinha.
Dum e doutro lado da fronteira, ao perto e ao longe, todas as grandes montanhas vomitavam fogo e cinza.
Por alturas de Verin o sol desapareceu. Apesar de ser ainda cedo, umas cinco horas da tarde deste fim de Agosto, os carros circulavam de luzes acesas.
A caminho de Chaves, vinham de encontro ao para-brisas nuvens de cinza e resíduos vegetais carbonizados.
Comecei a sentir ardor nos olhos e na garganta, dificuldades de respiração, sintomas de angústia.
Na esperança de reencontrar em Barroso a limpidez de sol, ar e horizontes que deixara de madrugada, acelerei em direcção a Peireses. Puro engano. Barroso sufocava debaixo da mesma camada de fumo e cinza. Lembrei-me de Pompeia. Será que vamos morrer todos?
Saí para a rua a ver o que diziam os meus vizinhos. Encontrei-os a todos «impávidos e serenos».
– Homessa!
No ocaso, o sol, que descaía, era uma enorme bola de fogo. No oriente, a lua, que despontava, uma descomunal hóstia de sangue. Entre um e outra, um céu carregado de cinzas. E os meus vizinhos «impávidos e serenos»?
Para onde teria ido o medo que, nos meus tempos de garoto, todos nós tínhamos do segundo dilúvio, o qual, como dogmaticamente nos ensinavam, será de fogo?
Nesses primitivos e ingénuos tempos, uma simples estrela cadente, punha todas as beatas da terra a fazer o sinal da cruz e a rezar o acto de contrição.
Quem se não lembra da aurora boreal na década de trinta do século passado? O que aquilo foi! Que noite de terror e de lágrimas!
Monstruosas línguas de fogo sobre a aldeia e toda a minha gente na rua, de joelhos, mãos postas, a rezar, a bater no peito, a pedir perdão a Deus e ao próximo.
Eu era então muito jovem e andava perdidamente enamorado duma vizinha da mesma idade. Como eu fiquei quando a vi em camisa de noite pela curva do joelho, perna ao léu e pé descalço. Como ela estava bonita e sedutora, no meio da rua, abraçada à mãe, esta de joelhos, ela de pé, ambas a chorar como duas madalenas.
Aproximei-me. Já que tinha de morrer, ao menos que morresse ao pé da minha amada.
Chego perto e que vejo eu?
A minha diva a mijar-se pelas pernas abaixo…
Será que hoje já ninguém tem medo do fim do mundo?
Será que hoje já ninguém se mija?
Que tempos estes!

Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS II – Crónicas de Barroso (p. 65 e ss.)

Sem gastar milhões

Num país em que tanto se fala em "inovação" e se gastam milhões em programas de estímulo à "inovação", continuando, em geral, a repetir-se apenas velhas receitas, a ideia do "mercado social de arrendamento" ontem formalizada em protocolo entre o Governo e sete bancos dir-se-ia um ovo de Colombo.
Além dos portugueses mais pobres, têm sido as classes médias as principais vítimas das políticas de austeridade (aí está uma velhíssima receita repetida, a da austeridade, que tem dado os resultados que se conhecem, da Alemanha de Weimar à Grécia actual). Ora os bancos estão a braços com um património imobiliário de centenas ou milhares de fogos devolutos, resultante da impossibilidade de muitas famílias continuarem a pagar os empréstimos à habitação. E igualmente o Estado tem prédios devolutos. Porque não colocar todos esses prédios num mercado de arrendamento a preços inferiores aos do mercado livre? Para mais, se experiência semelhante resultou antes em Gaia com o Programa Arco Íris?
Assim, estarão a partir de hoje disponíveis, a rendas inferiores em pelo menos 30% às do mercado, 800 fogos (1000 daqui a mês e meio, 2000 até ao fim do ano), destinados a famílias sem condições de acesso a habitação social. A solução não resolve tudo, mas resolverá decerto alguma coisa. Sem gastar milhões e sem se limitar a repetir, com maquilhagem nova, uma receita velha.

JN, 27/06/2012 – M. A. Pina

J. Gomes Ferreira: 27 de Junho [1966]

Calor de derreter o espírito…
Após um discurso qualquer moral-inútil ao Alexandre, este comentou com doçura escarninha:
– Pai: às vezes falas como um Padre.

Um Padre do ateísmo, talvez a pior espécie! – pensei levemente desagradado. (Sobretudo por não sentir, como de costume, prazer em me criticar.) 

quarta-feira, 26 de junho de 2013

A parva (1862)



Descrição: Óleo sobre lona
Localização: Museus Pontoise
Autor: Charles-Francois Daubigny

J. Gomes Ferreira: 26 de Junho [1966]

Albarraque, 26 de Junho
De surpresa entraram-me pela casa, em vendaval, o João José, o Carlos e o Abelaira. Este, de máquina fotográfica em punho, disposto a tirar fotografias para a posteridade – dizia a rir, a sério…
A posteridade!…
Cada vez a apeteço mais – devo confessar – não em forma de papel amarelado e fatos ridículos fora de moda, mas fisicamente, em carne e osso, com raiva, amor e paixões…
Os homens nasceram para ser eternos. Para o corpo ser eterno…
Mas não sei por que mistério todos acabamos por nos resignar à morte e contentamo-nos com o gozo de ver a espécie continuar…
Aliás, esse segredo da ligação do homem à espécie escapa-se-nos…
Descobri-lo seria resolver o problema dos problemas. 

"O ovo da serpente"

Um dos momentos mais tocantes da entrevista a Edward Witten (que formulou a chamada "M-teoria" das supercordas, até agora a mais perfeita conjectura matemática de uma "teoria do tudo" e é considerado pela generalidade dos seus pares o maior físico teórico vivo) na série "Da beleza e consolação" é quando o entrevistador lhe pergunta o que pensa ele da "Shoah" e dos campos de extermínio nazis onde perdeu grande parte da sua família.
Witten ficou de olhos baixos e em silêncio durante intermináveis segundos. No fim, só conseguiu dizer: "Não sou capaz de compreender".
Ocorreu-me este episódio ao conhecer notícias recentes sobre a amnésia generalizada em que se gera o regresso da irracionalidade racista. Na Hungria, ao mesmo tempo que escritores nazis são hoje de leitura obrigatória nos curricula escolares, erguem-se estátuas ao "herói nacional" Miklós Horthy, regente do país entre as duas guerras e autor das primeiras leis anti-semitas da Europa Ocidental, responsável pelo envio de 450 mil judeus para campos de extermínio. Mais chocante ainda é o que se passa por estes dias em... Israel: imigrantes negros vítimas de ataques – casas queimadas, espancamentos e outras agressões – e classificados pelo próprio primeiro-ministro de "praga" e de "cancro". O governo de Direita israelita parece ter esquecido os insultos semelhantes dirigidos aos judeus que precederam o Holocausto.

JN, 26/06/2012 – M. A. Pina

Vergílio Ferreira: 26 – Junho (terça). [1990]

26 – Junho (terça). Vivi sempre exilado no meu país. Exílio político, entalado entre o fascismo de Salazar e o comunismo do Cunhal. Exílio cultural, porque a cultura portuguesa, exceptuando a literatura, em pouco me entusiasmou. Exílio de companheirismo, porque os companheiros tinham o seu redil político onde eu não entrava até porque a saúde me mandava estai quieto e não andar em borgas, que é onde se é realmente compincha. Do que no meu país não fui exilado foi do meu país. Ou seja, da minha língua, do meu ar, da minha paisagem, da minha alma, do meu ser. Respiro o meu país decerto no que é o seu espírito e eu não conheço por ser o meu. Mas ignoro-o ou conheço-o menos ou afectou-me menos no que é matéria de aprendizagem, de reflexão, de conteúdo decerto para preencher esse espírito. Eu sinto como português mas o meu pensar emigrou. De todas as formas de exílio, porem, a que sempre mais me tem doído é o meu destino de patinho feio, de ovelha negra em rebanho branco, de olhar disponível em olhos com testeiras. O que mais me doeu sempre foi não me reconhecerem, de me expulsarem de (Interrompido). 

terça-feira, 25 de junho de 2013

Vergílio Ferreira: 25 – Junho (segunda). [1990]

25 – Junho (segunda). Fui ao correio da Praia das Maçãs. Estava fechado. Havia um empregado que se aposentou. Veio substituí-lo creio que interinamente uma senhora ainda viável, mas já pousada. E hoje não apareceu. À porta havia outros necessitados e cavaqueámos um pouco. Estaria a senhora no choco? Fora transferida? Estaria em reunião a preparar uma greve? Tudo eram hipóteses plausíveis para uma situação real. Passava mais de meia hora do horário que estava à porta. E desandei.
E chegado a casa pus-me a pensar se devia reflectir sobre a minha cabeça em desalinho ou sobre o estado de coisas da cultura em tremor de terra. Sobre a cabeça concluí uma vez mais que devia deixar de beber, mesmo o inocente copo às refeições. Porque tudo o mais vem em cadeia. Fumei um cigarro, que é como meter o termómetro. Não aumentou a febre, ou seja o desarranjo. E tento agora pensar o meu país com a tremenda desorientação vinda de Leste. O jornal comuna O Diário fechou para arranjos das finanças e dos comissários. E foi tudo para a rua. No Expresso de ontem lá os vi, a esses jornalistas despedidos, todos como órfãos em abandono, murchos, o ar enrascado. E à frente deles, de perfil, com o lacinho em asa de borboleta, o Bau-Bau com o ar idiota, no meio de toda aquela orfandade. Estes doces comunas quando alguém era despedido nas empresas capitalistas, aumentavam enormemente os decibéis com protestos de atroar. E agora, ó divas do protesto e da desordem? Com os outros a falta de «bago» não era razão bastante para se pôr alguém na rua. E agora? Como ides vós acertar as contas da vossa conta justiceira? Mas o problema é mais vasto e mais grave. O problema é que, já desde o 25 de Abril, ou antes, do 25 de Novembro, muitos e muitos que viviam à vossa sombra ficaram no desemprego. Sobretudo agora que o Leste abriu falência. Pois em nome de quê esses muitos e muitos sacanóides vão agora justificar as sacanices? Já no tempo do defunto Salazar eles viviam bem. Tinham boa reputação, eram gajos porreiros, tinham talento e encosto nos jornais, editoras, passa-palavra dos cafés, editoras estrangeiras – formavam uma rede mais forte e extensa do que os judeus, a maçonaria, a Opus Dei e os panascas. E agora como é que é? Que vão eles fazer da farrapada dos seus autores e dos seus livros? (Interrompido).
*
Como é que o fanatismo exacerba tanto o ódio? Ou como é que, para justificar-se o ódio, se exacerba o fanatismo? É fabuloso até onde pode ir o desejo de odiar, a paralela e exaltada alegria com a tragédia do inimigo. O ódio que se deseja e ama, funda a sua dimensão na dimensão do que se pretende que o justifique. Por isso o absoluto da religião é o que de melhor serve o absoluto do ódio. E à falta disso, a política serve perfeitamente. Quando o Sá-Carneiro morreu de desastre, houve quem rebentasse numa alegria imensa e bebesse champanhe para comemorar. Já devo ter falado no livro sobre Malraux, escrito pelo sobrinho-enteado (filho da cunhada, casada com o meio-irmão Roland, assassinado pelos alemães, e com quem veio a casar por sua vez). Nesse livro conta-se que tendo morrido em desastre de automóvel os dois filhos de Malraux (da ligação com Josette Clotis), houve quem lhe manifestasse a alegria por isso, em razão de ódio político. Não é isto tenebroso? O homem não tem limites. Para o bem e para o mal. Assim ele se mede com Deus e com o mais infame dos diabos. Aliás, agrada-me acrescentar, a propósito de Malraux, se o não disse ainda, que no dia seguinte ao do enterro dos seus filhos, que acompanhou, compareceu a um conselho de ministros com o espanto e consternação de todos eles.
*

Toda a obra de arte nasce de um acordo entre o artista e o real. É um real, que a si mesmo muitas vezes se desconhece, mas que está lá. Senão, como poderia amanhã reconhecer-se a validade da obra? Mas o real de hoje não existe para que a obra exista também. O real de hoje é o seu impossível de ser. E é esse o impossível da obra. 

J. Gomes Ferreira: 25 de Junho [1966]

Outra vez, o telefone. (No Tivoli.) Quem fala? – Da Portugália Editora.
– Ligue.
Era o Luís Amaro a lembrar-me a conveniência de apressar a nova edição, a 3ª, de Poesia-I.

É um bom moço, inteligente e sensível, que parece andar sempre a remendar destinos rotos e a atar fios perdidos – talvez para encontrar o único destino que lhe resta naquelas quatro paredes… 

segunda-feira, 24 de junho de 2013

Vergílio Ferreira: 24 – Junho (domingo). [1990]

24 – Junho (domingo). Dia de S. João. Évora, Évora. O calor alentejano, as noites sufocantes na nossa casa da rua da Mesquita, 28. Abríamos a janela de sacada do nosso quarto, a Regina às vezes levantava-se e ia para aí tomar o fresco. Do Rossio vinha-nos em revoadas pela noite dentro o rumor da feira. Depois ia arrefecendo para a madrugada. Évora, S. João, memória ardente do Alentejo. Nunca mais.
*
Vieram aí os Bragas e fomos almoçar a Janas. O Mário Braga dá apoio para uma conversa. Mas quando tem a bola, atrapalha-se para no-la passar. Em todo o caso, passa. E depois do almoço e um passeio a ver o mar, regressámos a tempo de eu ver o Brasil-Argentina em futebol. Mas antes de virmos, quero ver ainda o mar. Que fascinação ele exerce sobre mim, nascido entre as pedras da montanha. É a fascinação do incomensurável e majestoso e potente, a sedução do sem-limite, da sua infinitude, o absurdo do incansável das suas ondas, a beleza irrepresentável da sua alvura, a doce e larga dormência do seu rumor. Bom, mas visto o mar na minha lembrança, vou ver enfim o jogo. Fiquei furioso contra o Brasil, o seu azar, a injustiça imensa do destino. O Brasil jogou infinitamente melhor que a Argentina, teve oportunidades sem conta de marcar, encheu o campo de espectáculo. Mas foram os outros que de três únicas boas aproveitaram logo uma e ficaram apurados. Fui ver o desafio a casa do Vasco por ser no Canal 2 e a minha caixa podre de TV só dá o 1. A propósito, o Vasco é pai há poucos dias de uma ainda minúscula e perfeitinha miúda. Vão-lhe chamar Joana, decerto para emparelhar com o mano já crescidinho que se chama João.
Portanto, o futebol. Um azar clamoroso. E quando vinha para casa, surgiu-me uma ideia curiosa. É frequente, falar-se na influência do cinema ou da música etc. na arte literária. Ninguém que eu saiba aproximou um certo tipo de escrita do futebol. Mas aproximam-se. A escrita hoje não caminha a direito ou mesmo na precisão de uma linha quebrada, mas em interrupções, desvios, ziguezagues, com avanços e recuos, retomados da progressão até ao disparo final. Creio que a minha escrita é um pouco isso.

E foi surpreso desta ideia que eu regressei a casa mais recomposto do desastre brasileiro. 

Queremos a vossa soberania

Há 25 anos, pouco depois de Portugal ter aderido à então CEE, eu teria aplaudido as palavras do ministro alemão das Finanças em entrevista a "Der Spiegel" no sentido da necessidade de "mais Europa". Lera alguns dos chamados "pais fundadores" e acreditava que a já mais ou menos evidente corrupção dos valores que haviam presidido, em plena Guerra Fria, à utopia dos "Estados Unidos da Europa" fossem apenas conjunturais.
Já então os membros da Comissão raramente honravam as funções que lhes atribuíam os Tratados e quase sempre agiam, menos ainda do que como representantes de interesses nacionais, como meros agentes dos partidos que, nos governos de cada país, os designavam. Com a transformação da CEE em União Europeia (e com o desmoronamento, a Leste, do "inimigo comum"), a situação piorou e, hoje, a Comissão perdeu toda e qualquer autonomia em relação ao Conselho, com as próprias cimeiras reduzidas a encontros bilaterais entre a Alemanha e a França onde tudo é decidido.
Em tal contexto, "mais Europa" e mais transferências de "competências para Bruxelas em domínios políticos importantes, sem que cada Estado nacional possa bloquear decisões" defendidas, depois Merkel, também por Schäuble, significaria a transferência do que ainda resta das soberanias nacionais para Berlim (e, subalternamente, para Paris) através do mero entreposto que Bruxelas actualmente é.
JN, 24/06/2012 – M. A. Pina

J. Gomes Ferreira: 24 de Junho [1966]

Telefone. Corri. Era a Maria Almira com aquela voz-alegre-infeliz de sempre.
– Estive uma semana sem dormir! – lamentou-se – mas escrevi muitos poemas, sabe?… E tão diferentes dos que fiz até hoje!... Tão diferentes… Gostaria que os lesse…
– Quando quiser...
Desligámos.

Terá finalmente conseguido exprimir (desprezando as qualidades e aproveitando apenas os defeitos) a sua parte no naufrágio de todos nós? 

domingo, 23 de junho de 2013

J. Gomes Ferreira: 22 de Junho [1966]

E eis que essa geração proclama deus o Luiz Pacheco (que publicou recentemente um livro intitulado Crítica de Circunstância, apreendido sem qualquer razão pela censura!) – e o ergue em triunfo nos escudos como se se tratasse de um novo António Sérgio!…
Nesse livro inclui mais uma vez a sua grande peça de efeito: Carta Aberta a José Gomes Ferreira – em que me elogia au rebours e me acusa deste crime hediondo: o de me recusar a ser poeta maldito!

Mas não quero, pronto! 

José Rodrigues Migueis: 23 de Junho de 1978

Sopesando as quarenta gordas páginas da negra impressão de certo jornal diz ele, sensato: «Nunca julguei que fosse preciso tanto papel para embrulhar coisa nenhuma!» 

Vergílio Ferreira: 23 – Junho (sábado). [1990]

23 – Junho (sábado). Estava com vontade de me queixar. Mas não o posso fazer porque os outros estão fartos. Em princípio não gosto muito porque é como se me estivesse a queixar para mim mesmo e este eu mesmo se sentisse incomodado comigo. De um lado o queixoso e do outro o que tinha de o gramar. Não entenderam? Nem eu. Mas é assim. Em todo o raso, ser capaz de me lamuriar não tem um sinal totalmente negativo. Porque o máximo da queixa é o silêncio com uma corda ao pescoço. Mas o apetite é realmente grande. A sensação triste do fim. É a paisagem que se me abre em frente, para qualquer lado que me vire. Que é que quer dizer eu ter publicado um livro mesmo assim? Está-se a vender mal e é bem feito. As pessoas que o lêem têm mordido nele com avidez. Mas isso passa à margem do grande público. Que é que hoje se pode ler além do que dizem os noticiários? Para diversão, está aí o campeonato do mundo de futebol. E o meu livro não é divertido. Sinto a vida escoar-se – a do meu físico e psíquico, a de tudo e todos que me rodeiam, a da própria cultura, que era o que sustentava o mais. A ameaça não da morte mas a de ir morrendo põe-me em pânico. Não no pânico abrupto como em face de um perigo súbito, mas no pânico de desamparo, de abandono e afundamento. Cumpriu-se o que eu previra há muito tempo, mas prever não é estar metido no que se previu. E, no entanto, as pessoas em geral não se dão conta disso. Estarei eu taralhouco? Estou cansado, desarranjado dos nervos, seguro de que isto está por pouco, sem um futuro plausível que me recrie um projecto. É duro não ter projectos. Porque um projecto estende-me a vida até à possibilidade de o realizar. Estou tremendamente em baixo. E acabou a conversa.
*

Que me resta dizer e valha a pena dizer? Porque é limitado o que há a dizer, mesmo para os que têm um largo reservatório. O meu não o é. E uma ideia que se exprima entra logo em declínio, assim que for entendida. Algumas levam tempo a sê-lo e isso é o melhor para durarem. Às vezes essa duração, após mesmo o seu entendimento, não é já bem a delas mas das que nelas se geraram. E aí a obra de arte é a que menos se desgasta como a de tudo o que apenas é. Não tenho mais nada a dizer e isso mo fazem sentir os que de um novo livro meu o registam como remake. Mas toda a obra é um remake das que um dia se escreveram, porque o inevitável num artista – num homem que se afirmou seja no que for – é a repetição. E todavia é invencível a necessidade de nos não repetirmos. Uma obra que se multiplica não pode deixar de ser o diverso no igual. Sinto no entanto a evidência de que tudo o que disse está a mais. Contei no meu último romance a história de um velho que para o fim da vida passava os seus dias a olhar para a parede. Aflige-me a ideia e sinto-lhe a fatalidade. A minha parede é o estar sem mais. Ver, ouvir. E recuperar aí uma inocência perdida. 

sábado, 22 de junho de 2013

Coimbra, 22 de Junho de 1977.


ESPERANÇA

Canto.
Mas o meu canto é triste.
Não sou capaz de nenhum outro, agora.
Em cada verso chora
Uma ilusão,
Tolhida na amplidão
Que lhe sonhei...
Felizmente, que sei
Cantar sem pressa.
Que sei recomeçar…
Que sei que há uma promessa
No acto de cantar…


Miguel Torga

"E não se pode exterminá-los?"

A montanha de audições dedicada pela ERC a averiguar o caso das "alegadas pressões ilícitas" do ministro Miguel Relvas sobre o "Público" pariu, como não poderia deixar de ter parido, um tíbio rato: o anúncio de que a ERC formou a convicção de que não formou convicção alguma acerca das tais "pressões ilícitas" e não as deu como "provadas".
Formou, contudo, a convicção de que a actuação do ministro "poderá ser objecto de um juízo negativo no plano ético e institucional". Mas, antecipando-se a interpretações maldosas, rapidamente se pôs de fora, como também não poderia deixar de se pôr: "não [cabe] à ERC pronunciar-se sobre tal juízo".
O actual Conselho Regulador da ERC é constituído por membros indicados pelo PSD (três) e pelo PS (dois). E, mais significativo do que as convicções que formou ou não formou ou do teor da deliberação que aprovou é o facto de essa deliberação ter tido votos a favor dos membros indicados pelo PSD e contra dos indicados pelo PS. O previsível, num caso envolvendo um ministro do PSD. E que tutela... a ERC.
A partidarização de organismos como a ERC ou o Tribunal Constitucional retira-lhes qualquer credibilidade e fere de morte a independência com que deveriam exercer as suas funções, tornando-os inúteis. Perguntarão justificadamente os contribuintes: "E não se pode exterminá-los? Não. Porque quem poderia exterminá-los seriam o PSD e o PS.

JN, 22/06/2012 – M. A. Pina

J. Gomes Ferreira: 22 de Junho [1966]

«Mesa quadrada» eventual no Martinho sobre a crítica literária – tal qual se pratica no actual momento português de labirinto e confusão.
Discutidores presentes: Augusto Abelaira, Carlos de Oliveira, Nikias, Pinheiro Torres e eu. Pretexto: as últimas opiniões de alguns «críticos» jovens das páginas literárias a respeito da Enseada Amena do Abelaira. («É um romance incompreensível!»(?) – afirmam alguns com desplante analfabeto.)
– Bom sinal para o Abelaira! – pensei eu.
Pelo seu lado o Nikias propôs que os críticos só pudessem opinar aos 35 anos, depois de devidamente psicanalisados. O Carlos, esse já se contentava com a exigência de um exame de 4.ª classe… Da outra 4.ª classe… E o Pinheiro Torres, de braços abertos, regia a habitual orquestra de fúria generosa…
Assiste-se de facto a uma inverosímil invasão de critiquelhos (sobretudo nas páginas dos jornais de província), espécie de beatniks cobertos de farrapos de cultura, adquirida ad hoc em livrecos mal traduzidos, e inúmeros piolhos que sugam aqui e ali a superfície dos problemas…
Que pretendem esses «críticos»? Por que combatem? Em nome de que movimento ou de que concepção de vida literária?
Ninguém sabe, pois não são neo-realistas, nem surrealistas, nem concretistas, nem experimentalistas, nem coisa nenhuma.
Críticos sem causa… Sem literatura nem causa… Decomposição… Bichos de queijo… 

José Rodrigues Migueis, em 22 de Junho de 1978

No tempo do António Maria (o da Silva, e não o do Bordalo Pinheiro), ele próprio, chefe do Governo, apregoava: «O País está a saque!» (A nação pagava então dez vezes menos impostos do que viria a pagar sob a Ditadura, ou cem vezes menos do que hoje, com as astronómicas alturas a que subiram os orçamentos.) Agora, que estendemos a mão pedinte aos milhões e biliões dos prestamistas estrangeiros, não estrangeiros, não estaremos antes a ser vendidos por grosso e a retalho – em todo o caso a contado?... E endividando pelos séculos dos séculos as inocentes gerações vindouras, que terão de pagar pelos nossos erros e crimes? 

sexta-feira, 21 de junho de 2013

21– Junho (quinta). [1990]

21– Junho (quinta). Não passes mais na minha memória, não passes. Aquieta-te no sem-fim do lembrar. Para invenção de mim nas horas difíceis de abandono ao impossível que está sempre na minha memória sem razão. Não há realidade no real que relembro, porque essa realidade sou eu. Sossega no teu nada, não voltes mais. O que escrevo não foi, é o absoluto do meu imaginar. Esfuma-te na balada que eu ouça, está só na sua música de pobreza e sê lá só a ficção de ti. Que a sombra que te trouxe te leve de novo para sempre. E a melancolia que nela vive seja a razão verdadeira de te esquecer.
*
Dentro de dias a Regina parte de novo num grupo excursionista para um longe e incerto de legenda. Índia, suponho, ou arredores desse longe. Há dois prazeres nela irreprimíveis que é viajar e falar. E eu apenas me reencontro na quietude e silêncio.
– Está quieto e calado.
Vem-me a ordem desde a infância. E ficou-me até hoje o jeito de obedecer.
*
Não passes mais no meu imaginar. Aquieta-te para sempre no sem-fim da memória.
*
Outra vez a contas com os sacanas dos dentes. De vez em quando levanta-se um vendaval e lá se vai mais um. Estou agora com o sorriso todo esburacado. Mas vou acrescentar a prótese para tapar os buracos. Não quero apresentar-me diante do Padre Eterno em condições estéticas desagradáveis.
*
Esquecia-me. Hoje começou o Verão. Mas o céu fez-lhe um manguito. Faço-o eu também para acompanhar. E há uma morte a registar, ocorrida a 19. Era a de um pintor «abstracto» da família do Rotko, talvez Nicholson, e de outros que deve ter vindo a haver e já desisti de saber quem são. Tinha 55 anos. Morreu de cancro, essa tuberculose moderna. Tinha boa qualidade na sua pintura. Conhecia-me desde há uns trinta anos ou quarenta. Mas nunca mais quis continuar ou renovar esse conhecimento. Foi meu aluno uns dois anos (bom, mas não brilhante) em Évora como o seu companheiro nas lides artísticas Álvaro Lapa, que também foi meu aluno aí durante uns quatro ou cinco anos (brilhante) e que também mandou a minha memória às malvas e fez bem. Chamava-se Joaquim Bravo. Paz à sua alma e glória à sua arte.

21 de Junho [1966]

Larga conversa telefónica com Sophia de Mello Breyner, recém-chegada do Brasil, fascinada com aquele mundo em que o tratamento geral por «você» – explicou – anula as distinções de superfície…
Admiro-a. É uma mulher que, embora feliz por se sentir herdeira de um peso de tradições, que a deslumbram, teve o espírito de recomeçar a aristocracia por caminhos próprios, hoje os únicos de validade possível.
A aristocracia de pensar nos outros através de si mesma pela Poesia.

J. Gomes Ferreira

Ovos & estatísticas

Em países como Portugal, onde o fosso entre ricos e pobres é cada vez maior, as estatísticas trazem sempre boas notícias. Assim, os portugueses ficaram ontem a saber pelo INE que vivem num país onde o rendimento médio líquido (líquido!) das famílias é de 1984 euros por mês.
Muitos hão-de estar a matutar sobre quem lhes ficou com o que falta aos 1984 euros líquidos mensais que a sua família terá recebido entre Março de 2010 e Março de 2011, e esse é o lado bom das estatísticas: dão que pensar. É conhecido o dito segundo o qual, se alguém comeu dois ovos e outrem não comeu nenhum, para as estatísticas comeram ambos um. Infelizmente, a maioria dos portugueses apenas tem hoje para comer os ovos estatísticos de que se alimentam os discursos políticos, que passam quase sempre ao largo do facto de, por cada família a auferir, por exemplo, 19 840 euros mensais (já nem falo das que auferem 198 400), ter que haver dez outras a sobreviver com 198,4.
Os números do INE dão também uma ideia do que é a evasão fiscal entre nós: em 2009, enquanto os trabalhadores por conta de outrem ganharam em média 11 378 euros anuais, os profissionais liberais ganharam... 1593 (isto é, 132 miseráveis euros por mês). O meu coração sangra de comiseração: como é que os médicos, advogados, economistas, engenheiros, etc., que trabalham por conta própria conseguem pagar as rendas dos consultórios?

JN, 20/06/2012 – M. A. Pina

quinta-feira, 20 de junho de 2013

Coimbra, 20 de Junho de 1975

Coimbra, 20 de Junho de 1975 – Estranha revolução esta, que desilude e humilha quem sempre ardentemente a desejou. A mais imunda vasa humana a vir à tona, as invejas mais sórdidas vingadas, o lugar imerecido e cobiçado tomado de assalto, a retórica balofa a fazer de inteligência. Mas teimo em crer que apesar de tudo valeu a pena assistir ao descalabro. Pelo menos não morro iludido, como os que partiram nas vésperas do terramoto. Cuidavam que combatiam pelo futuro e, na verdade, assim acontecia, mas apenas na medida em que o sonhavam como se ele tivesse de ser coerente com a dignidade do seu passado de lutadores. O trágico é que um futuro sonhado não passa de uma ficção. O tempo é o lugar do inédito. O futuro autêntico é sempre misterioso e autónomo das premissas de que partiu. Quando chega, traz os seus valores, as suas leis, a sua gente, nem boa, nem má. Traz os títeres que lhe convêm. Ou pior: os títeres a quem a hora convém.

Miguel Torga

Coimbra, 20 de Junho de 1974


                             FLECHA

Seta de um arco tenso disparado,
Vou cego e apontado
Ao alvo que o destino me destina.
Ali termina,
Inglória,
A curva trajectória
Da minha vida.
Insólita aventura,
Tão breve, tão impura,
Tão absurdamente acontecida!

Coimbra, 20 de Junho de 1973


REGRESSO

Quanto mais longe vou, mais perto fico
De ti, berço infeliz onde nasci.
Tudo o que tenho, o tenho aqui
Plantado.
O coração e os pés, e as horas que vivi,
Ainda não sei se livre ou condenado.


Miguel Torga

Seis meses depois

Seis meses depois de lhe ter dado o seu aval, aprovando despedimentos fáceis e baratos, menores indemnizações, subsídios de desemprego mais baixos e durante menos tempo, menor retribuição das horas de trabalho, menos dias de férias, menos feriados, limitação da acção sindical, etc., a UGT parece ter descoberto, agora que o Código dos Despedimentos (é um eufemismo continuar a chamar-lhe Código do Trabalho) foi promulgado, que tudo isso "é ma[u], nomeadamente por pôr em causa o valor dos salários e do trabalho extraordinário".
Entretanto, ficou para as calendas a viril ameaça feita há três meses pela mesma central de denúncia do Acordo de Concertação Social se o Governo, em vez de só se preocupar com "a desregulação laboral e a redução das prestações sociais", não activasse o previsto "Compromisso para a Competitividade, Crescimento e Emprego". Na altura, João Proença lamentava já que o Governo andasse a negociar "medidas no âmbito do memorando da troika que [iam] contra o Acordo".
E, contudo, João Proença não pode queixar-se de ter sido enganado. Passos Coelho avisara: "Temos que dar um passo atrás para dar dois à frente". O passo atrás oferecido a Proença em troca do seu acordo a 200 passos em frente no sentido da desregulação laboral foi ceder na meia hora de trabalho diário. O que, decerto por acaso, era uma exigência do patronato.

JN, 20/06/2012 – M. A. Pina

20 de Junho [1966]

Hoje de tarde, no Tivoli, ouvi o Concerto para Piano N.º 1 do Fernando Lopes-Graça. Pianista: o suíço Georges Bernand. Orquestra da Emissora regida pelo director soviético Ivanov – espesso, cabeça leonina… – que, aliás, só depois de chegar a Lisboa, logrou ler a partitura à pressa.
Execução dolorosamente solfejada sem um único pormenor de esmero.
O concerto, onde se sente que o Graça acumulou toda a riqueza generosa da juventude, continua válido e vivo. Apenas o tema popular português do último andamento se me afigura muito «exterior», em comparação com o material que ele descobriu posteriormente, de vivacidade mais grave.
– É uma obra da mocidade!… – esclarecia o Graça, no palco.
Era desnecessário dizê-lo. A orquestração mostrava o peso da certidão de idade…
Oh! Mas que alegria técnica!

No intervalo encontrei o Gastão Cruz e apresentei-lhe o meu filho Alexandre.
– Tem 13 anos… Prepare-se. Vai dar-lhe cabo do juízo… ele e a geração dele.
Gastão Cruz riu-se.
E o Alexandre, ingénuo, ignorando que se tratava de arte e de literatura:
– É professor?

J. Gomes Ferreira

20 de Junho de 1978

Não falta entre nós quem nos fale de «estórias», como se acabassem de descobrir a ideia, que aliás colheram dos escritores brasileiros. Mas estes herdaram-na da inapagável tradição lusitana do «Conte-nos urna estória!», pois assim pronunciámos sempre a palavra. Trata-se portanto de uma mera retribuição que eles nos fizeram.
A pintura, como aliás as outras artes, representa tudo como visto da horizontal, segundo a linha de terra, ou seja, ao nível a que se encontra o artista e o seu objecto, mesmo na pura abstracção. E nunca de cima, do alto, da vertical, do céu, do tecto ou do telhado, como o Diabo Coxo: tal como no-lo faz sentir a Vieira da Silva com as suas maravilhosas paisagens-mapas, aerodinâmicas, de cidades míticas, até nisso grande inovadora. Como seriam as feiras e quermesses do velho Bruegel, vistas do balão ou do cimo das árvores? As artes ainda não se acomodaram a um ponto de vista «lá-de-cima». E, no entanto, a aviação tem-nos dado tantas novidades visuais como o ultramicroscópio para a realidade íntima das coisas.

quarta-feira, 19 de junho de 2013

O negócio das reformas

A ideia já foi lançada, e não por acaso pelo presidente executivo da AIG, um dos impérios financeiros que esteve na origem da actual crise: os governos devem, montando as costas largas da crise financeira, aumentar a idade da reforma "para os 70, 80 anos". Os cidadãos europeus que se vão, pois, habituando à estimulante ideia de entregar durante 50 ou 60 anos parte dos seus salários ao Estado ou a um grupo financeiro – até onde continuar a ser possível discernir uma coisa da outra – e só começar a receber de volta, em suaves prestações mensais, o resultado desse investimento mediante apresentação da certidão de óbito.
Para o CEO da AIG, o céu é o limite. Tomando como exemplo a Grécia, recomenda uma nova receita austeritária: pôr "as pessoas a trabalhar mais tempo e [retirar] essa carga aos jovens" ("carga" há muito retirada pelo programa da troika: o desemprego jovem na Grécia já é superior a 50%).
Mas a Grécia é, de facto, um bom exemplo. Os gregos têm, conforme dados citados pela "Dinheiro vivo", uma esperança média de vida de 81,3 anos. Reformando-se aos 80, o Estado e as seguradoras a quem terão confiado, durante décadas de vida e de trabalho, os seus descontos, só lhes pagariam, em média, um ano e quatro meses de pensões.
Imagine-se quantas pagariam em Portugal, onde a esperança média de vida é, segundo os últimos números do INE, de 79 anos.
JN, 19/06/2012 – M. A. Pina

terça-feira, 18 de junho de 2013

O PRÍNCIPE LAGARTO

Desde há uns anos a esta parte que ando com uma estranha sensação de frialdade nos ossos. E como, desde que me conheço, sempre ouvi dizer que o melhor remédio para o frio ainda é o calar, adquiri o hábito de me expor ao sol. E como (assim a comer ainda rebento…) abomino as praias do Porto e arredores, sempre cobertas de nevoeiro ou varridas pela nortada, refugio-me em Peireses onde o sol, por norma, anda sempre de cara descoberta. Agarro num liteiro, vou até à margem direita do meu pátrio Regavão, escolho um sítio discreto e estendo-me como um lagarto.
Por falar em lagartos. O medo que as raparigas do meu tempo lhes tinham… Desde garotitas que lhes impingiam a peta de que os lagartos eram doidos por pernas e petas de raparigas…

«A saia da Carolina
Tem um lagarto pintado
– Carolina dá à perna
O lagarto dá ao rabo.»

Creio que era assim que se cantava.
Fosse que não fosse, muito me ria eu quando uma garota, à vista dum lagarto, largava a correr de saia apanhada entre pernas.
As petas que nos impingiam…
Minha Mãe recomendava:
– Tu não adormeças! Pode vir uma cobra e meter-se-te na boca.
E exemplificava:
– Aconteceu isso a um rapaz de Rabodasno. A cobra ficou metade dentro e metade fora, e, depois, com a parte de fora, que era a do rabo, chicoteava as orelhas do menino. Tiveram de lhe proteger a cabeça com uma cesta. Vi-o eu, a caminho de Montalegre, o rabo da cobra a bater na cesta: trás, trás, trás. Parecia o rabo dum burro a enxotar as moscas. Não adormeças, filho!
O que minha Mãe queria era que eu não adormecesse para não deixar ir as vacas aos lameiros dos vizinhos. Mas as crianças acreditam em tudo o que lhes dizem e eu passei a odiar as cobras. Ainda hoje tenho pesadelos com elas. Mas é engraçado. Nunca, em sonhos, uma cobra me atacou pela boca. Ataca-me sempre pelos pés. E aí é que o pesadelo principia. Eu quero recolher os pés e não consigo. Que aflição! Acordo sempre coberto de suores frios. Odeio cobras.
Já o mesmo não direi dos lagartos. Até certo ponto, simpatizo com os tipos. Acho que temos algo em comum: o prazer do sol. Eles, por terem o sangue frio, dizem, que lá disso não percebo nada. Eu, por ter frio nos ossos.
Ou talvez a minha simpatia pelos lagartos venha de muito mais longe, lá dos meus remotos tempos de pastor de vacas. Mau grado o sermão diário de minha mãe, um dia deitei-me à sombra dum carvalho e adormeci de papo para o ar. Nisto, sinto qualquer coisa no pescoço, acordo assarapantado e que vejo eu? Um lagarto de palmo e meio numa corrida doida, a toda a velocidade das suas quatro patitas desajeitadas como barbatanas em seco. Volto-me para ver do que é que ele fugia e encaro numa cobra enorme direita comigo. Levanto-me de golpe, ah, pernas para que vos quero!, direito ao portal, encosta arriba, só parei bem lá no alto, sem que primeiro não olhasse duas ou três vezes para trás, a certificar-me de que o monstro me não perseguia.
À noite contei a proeza em casa:
– Tinha para aí dois metros de comprimento, uma cabeçorra assim!
E juntava as duas mãos fechadas, para dar uma ideia do tamanho da cabeça da cobra.
Minha Mãe pegou logo na vassoira de giesta para me sacudir o pó.
– Oh, Mãe! Eu estava acordado! O lagarto é que vinha tão cego na corrida que nem me deu tempo de me levantar.
– Acossado pela cobra, cortou a direito – assentiu o meu Pai.
– Sabes, meu meninho? – acode de lá a tia Ermelinda do Mandes que tinha vindo pedir um pão emprestado e assistia à conversa. – Talvez esse lagarto seja um príncipe encantado que te quis avisar do perigo.
– Um quê, tia Ermelinda?
– Nunca ouviste contar a história do «Príncipe Lagarto»?
– Não senhora.
– Queres ouvir?
– Quero!
A tia Ermelinda contou-me a história do «Príncipe Lagarto».
Já me não lembro bem dela. Mas ainda hoje estou convencido de que os lagartos são príncipes. Basta olhar para eles com aquelas vestes reais, verde, púrpura e oiro, principescamente estendidos ao sol.
Não haja dúvida. Gosto dos lagartos. Temos alguma coisa em comum – o culto deste magnífico sol de Peireses.

Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS II – Crónicas de Barroso (p. 62 e ss.)

18 de Junho [1966]

Quase todas as noites, antes de adormecer, imagino cartas aos amigos ausentes a quem nunca escrevo: ao Adolfo, ao Chianca, ao Jorge de Sena
E, nesse sonho de epistológrafo telepático, mato saudades velhas, explico faltas que me ensanguentaram de remorsos (como ter falhado à minha promessa ao Jorge de Sena de elaborar um fingimento de crítica sobre o Junqueiro, etc.) – e assim enfio pelo túnel até desembocar no recorte das manhãs de ramela cor-de-rosa-azul…

J. Gomes Ferreira

18 – Junho (segunda). [1990]

18 – Junho (segunda). Ontem foi um dia «não» com o estupor da saúde (cabeça, tronco e membros, mas sobretudo a cabeça). Espessura cerebral, mal-estar, tonturas, difícil trânsito de mim à realidade, subtil ameaça de ir mesmo abaixo de vez.
Mas assim mesmo, em desconforto corporal, esteve aí o António Paixão e fui convivente. Trazia ele um aparelhómetro nipónico e um cão. O aparelho era uma coisa sofisticada, cheia de botões e vidros e destinava-se a filmar como já se não diz, ou a gravar, como é já de dizer. Creio que por já não ficar na fita uma imagem mas uma sinalização electrónica para dar imagem depois na TV. Gravou-se mas depois, mesmo sem TV, pudemos ver-nos, ainda a preto e branco, espreitando por um certo buraquinho. Lá estávamos a Regina e eu, em suficiente fotogenia. Eu sobretudo, se mo permitem com as minhas cãs. Quanto ao cão, é um bicho antediluviano de uma raça castiça que o Paixão nos disse ser um boxer. Bicho feio mas da raça das classes exploradoras e por isso caríssimo. Tinha duas beiçorras caídas de pessimismo, o olho turvo e sanguinolento. Paixão informou-nos sobre os métodos da sua criação que são complicadíssimos com horário de refeições comestíveis seleccionadas e decerto mais tarde uma escolha de parceira para o matrimónio. Chazou-se e falatou-se, o monstrozinho sempre amarrado à perna do dono por uma arreata que lhe travasse algum apetite de má-educação. Havia bolachas na mesa que aí ficaram como restos da cerimónia. Mas a certa altura houve um descuido com a trela e quando démos por nós estava o bicho atrombado às bolachas com uma voracidade própria de quem cometia um pecado e não queria que o apanhassem em flagrante. Paixão saltou sobre ele, arrebatou-o à sedução pecaminosa e deu-lhe nalgadas. Foi difícil convencê-lo de que tinha o seu horário e comestíveis de cão racista. Porque não queria largar o prazer proibido. Na sua fúria libertária deixou a mesa num chavascal. Queria comer as bolachas todas de uma vez e largou a mesa toda espalhada de selvajaria. E quando o Paixão o arrancou ao prazer, ainda mastigava no vazio do que já não comia ou apurava alguns restos nas pelangas dos beiços. Paixão explicou-nos: não pode comer açúcar. Teria diabetes? Não perguntei por civilidade. Mas soube de não sei que incompatibilidade entre a raça apurada do cão e a gulodice que ele apetecia. E lá o levou amarrado ao dever. E a Regina fartou-se de limpar os destroços das bolachas, espalhadas pela mesa e pelo chão e que um boxer que se preza não deve comer como um qualquer rafeiro proletário.

segunda-feira, 17 de junho de 2013

17 de Junho [1966]

Nasci num mundo parado e feliz… Depois, pouco a pouco, tudo começou a mover-se, a agitar-se com a flexibilidade de água a apodrecer as coisas, as pessoas, os sentimentos, as forças…
Parar – passou a ser o meu sonho… Parar, parar... Não com a morte, mas com o milagre da arte – nos dedos dos escultores e no verbo dos poetas.

J. Gomes Ferreira

17 de Junho de 1978

Patriota primeiro: «Portugal nasceu e tem vivido de um autêntico milagre!» Patriota segundo: «Sim, de um milagre… abortado!»
«Muita água tem corrido desde então por baixo das pontes!» «Pois saiba que muito mais água há-de vir a correr ainda POR CIMA delas!» 

domingo, 16 de junho de 2013

16 – Junho (sábado). [1990]

16 – Junho (sábado). Escrevo um pouco para pôr em movimento o mecanismo de escrever. Porque me vai faltando. O escrever foi sempre para mim uma necessidade. Não bem por ter coisas para dizer mas para dar vazão ao impulso que me vinha de dentro e precisava de chegar ao terminal, que era o acto de escrita. Assim o que havia a dizer nascia um tanto do próprio acto da escrita em que os movimentos que a traçavam geravam em si aquilo mesmo que escrevia. Em todo o caso o fundamental era a mistura do que precisava de dizer, o acto em que isso era a realidade traduzida. Estou bastante paralítico não bem por não ter coisas a dizer, mas porque o dizê-las me é pouco necessário. Porquê? Não sei. Há o desagradável da repetição, mesmo que me não repita, porque ser eu o mesmo que as diz, as toma mesmas a elas. E há o desencorajamento nascido do vazio do Mundo de hoje em que o dizer esse vazio é já um vazio. E há o cansaço de viajar sozinho nesta estúpida aventura de escrever. Os meus confrades em escrita não me aceitam na sua generalidade. Porque a literatura do meu tempo só é reconhecida na medida em que retoma e remói e glosa a herança do «Orpheu». Eu também passo por lá – mas só pelo que é menos aceite em Pessoa e que é o que remonta a Dostoievski, Pascal, Santo Agostinho, Marco Aurélio, Sófocles… Do Orpheu o que veio até nós e é entronizado é o que se concretizou na palhacice do Almada e floresceu no surrealismo de alguns. A gravidade da vida, a vertigem da nossa desorientação não tem o aval da opinião oficializada. O riso intrometeu-se-me na escrita não sei como. E é o que me recolhe alguma tolerância dos meus inquisidores.
Mas banda de lamúria que me é um vício insuportável. Está um belo dia de sol com pássaros a explica-lo, como diabo o não aprendo? São pássaros que cumprem o seu horário sobretudo pela manhã. Decerto para criarmos embalagem para o resto do dia. E há o monte de jornais a desbastar. Num semanário tiro os meus apontamentos mentais sobre o grande arraial que vai pelos profissionais da filosofia. É um saber que eu não sabia ser de saber na maior parte dos currículos secundários dos países europeus. Isto constitui um argumento de autoridade para o regime de dieta que ainda se nos consente. E porque é que esse argumento não funciona por exemplo para o caso do Latim? Porque nesses tais países latiniza-se com aplicação. Mas acabou-se: num país sem filósofos não é justificável que se filosofe em excesso. Há em todo o caso um pormenor que me entala o pensar e é que o programa proposto aposta na contemporaneidade. E a contemporaneidade que se topou foi a da filosofia analítica. Ora se uma questão primordial é o problema da «verdade», porque é que a fenomenologia e sobretudo um Heidegger não são chamados à conversa? Por mim, aliás, também tentei dar um contributo à contenda. Mas sou, como se sabe, um tipo doentiamente modesto e não vou repetir-me. Estes filósofos magistrais. Eles ainda não descobriram que toda a doutrinação filosófica é de um equilíbrio original que parte. E que não há assim «contradição» entre as várias «filosofias» como a não há entre as várias correntes estéticas, devendo, aliás, se se defende a eliminação da História da Filosofia nos liceus, eliminar-se também a da Literatura, se ainda se não eliminou (como a História tout court) ou como nas várias religiões ou nas várias políticas. E mais chegados para cá, é isso que torna compreensível o que separa o pobre do Cunhal do emérito Diogo. Mas acabou a conversa.

16 de Junho [1966]

Uma das últimas invenções do meu filho Alexandre é o que ele chama a «música de guarda». Isto é: enrouquece a voz, em coaxar de imitação de rã, e repete tudo o que ouve, desde Mozart a Stravinski, transfigurado por esse filtro caricatural.
É irresistível de graça – e às vezes com mais significado do que ele supõe.
Música de guarda …
J. Gomes Ferreira

sábado, 15 de junho de 2013

15 de Junho [1966]

O Fernando, a propósito de um vanguardista ter afirmado, em conversa particular, que o título de «Canto de Amor e de Morte» lhe parecia desnecessário (aliás os vanguardistas portugueses elogiam muito essa obra-prima):

– E o título «Canto do Adolescente» de Stockhausen é necessário?
 J. Gomes Ferreira

15 – Junho (sexta). [1990]

15 – Junho (sexta). Ontem estiveram aí os Bragas (Helena e Mário) e fomos almoçar a Janas. E depois do almoço o Mário Braga rompeu estrada fora em digressão digestiva. Onde é que vais? perguntei-lhe eu, já inquieto de insegurança doméstica. Não sei, disse ele, vamos por aí, talvez a Mafra. A Mafra? A ver o quê? O Saramago? Vamos à Ericeira e depois a Mafra? Fomos, quero dizer, íamos indo. E chegados à Ericeira, senti-me logo abafado de betão armado e multidão. Subitamente o país pôs-se a viver a cem graus. E a qualquer ponto a que se chegue é assim. Houve uma longa hibernação e agora tudo disparou para o frenesim. Já o tinha verificado há pouco em Évora, vi-o há uns dois anos na Guarda, vi-o mesmo na minha aldeia de Melo. A Guarda do meu tempo vivia no seu ninho ao cimo do monte. Hoje alastrou por toda a encosta até cá baixo à Estação. Melo estava quase morta e foi isso, aliás, que me levou a interromper Alegria Breve, que já ia a meio, e recomeçar o livro para o que ficou. Portanto, a Ericeira. Prédios altos de cimento, ruas coalhadas de carros, e gente e gente. Mas demorámo-nos um pouco para visitarmos uma espécie de aldeia miniatura e uma «cascata», ou seja uma multiplicada panorâmica de homens em movimento na prática de vários mesteres – serrar lenha, puxar água à manivela e por aí – uma engenhoca de um inventor popular cheio de jeito e paciência. À passagem dos visitantes estava um homem na pedincha, mas era horroroso. Tinha uma saca imensa pendente do queixo, de um bócio horrendo. Porque é que se não opera? perguntei-lhe. Porque os médicos lhe dizem que a operação o mataria. Verdade? Porque eu já o vira em Lisboa, ao fundo da rua do Carmo, com a saca do bócio e a mão estendida. Sim, era ele, o homem confirmou. Eu, horrorizado, meti ainda a mão no bolso para a espórtula, mas houve em mim não sei que entrave de repugnância, vindo do horror do homem e do horror da esmola. Mas o Mário Braga, rápido, meteu-lhe na mão uma nota de cem paus e eu aproveitei para não dar. Relembro isto aqui e de novo sobe em mim uma repulsa de vómito que deve ter que ver com o inimaginável da degradação e deformidade na imagem estável em nós de um corpo normal. Como esta normalidade possibilita a repugnância mais incrível. Rompemos enfim para Mafra, mas não chegámos a parar e apenas rasámos de lado o mosteiro. Regressámos a Fontanelas, estendemo-nos ao sol da mata. Estava áspero, o sol. Depois chazou-se. Disse-se mal, naturalmente, mas já não sei de quê. Depois foram-se embora. Dei-lhes o Em Nome da Terra. Iam ler, diriam coisas quando lessem. Estou, aliás, bem precisado de que me digam. Tudo calado. Mas também não quero perguntar.
E restabelecida a paz doméstica, pude enfim ler o jornal. Naturalmente o que mais me importa é o que vai pelo Leste – que é o que reflexamente vai de importante em todo o Mundo. A Leste as coisas não estão claras. Na Bulgária e sobretudo na Roménia acontece uma coisa curiosa e é que os comunas não despegam. Dir-se-á depressa que é isso a prova de que o comunismo afinal tinha alguma razão. E os que a isso se opõem respondem que o medo é ainda muito grande. E é ou deve ser. Pois como ter a certeza de não haver uma reviravolta? E como pagar depois as contas? Muito bem. Mas como explicar que nas eleições livres promovidas pelo Marcelo a oposição não ganhou? Medo? Não me digam. Meio século de um qualquer regime cria o hábito do conformismo e do gosto da estabilidade. Para que assim não fosse era necessário que o povo fosse o mito com que o mitificam. Coitado do povo. Bom. Mas eu tenho que me despachar para arrumar os papéis. E anoto portanto apenas um pequeno pormenor. Mas antes disso já pus aqui em reflexão a espantosa ideia de Ieltsine ter separado da União Soviética a Grande Rússia? Estão a ver a jogada? Tomar independente o próprio núcleo do país? Imaginem que o nosso continente se «separava» do todo nacional em que entram também os Açores e a Madeira. Paremos. O pormenor que eu quero anotar é só este: a União Soviética acaba de renunciar ao socialismo e adoptar uma economia de mercado. E depois disso o Gorbatchev declara que continua visceralmente a ser comunista [1]. Há cerca de 40 anos eu escrevi um conto sobre isto. Chama-se «linha Quebrada». Não me digam que sou profeta, que os racho. Porque tenho é apenas uma vista razoável sem precisar ainda de óculos e uma coisa que antigamente se chamava consciência e que ainda não usa testeiras.
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Esteve aqui há pouco a Brígida, minha colega dos tempos de Faro e aí professora de Educação Física. Deu-me algumas explicações para a Mónica do meu romance e veio aqui a casa para me falar do livro. Leu-o de enfiada, mas com um certo acabrunhamento em saldo. Gostou mas com um certo gosto amargo. Escreva agora um livro alegre, disse-me. Mas esse livro é alegre, disse eu, porque o resultado final deve ser um maior amor à vida. De resto, não escreverei romance. Três anos me levou este, quatro me levaria talvez outro e na aritmética da minha idade a conta já não dá para isso. Como não dá? contrapôs. Você tem já a máquina montada, é só meter-lhe outra história. Que podia eu dizer-lhe? Há os escritores felizes que em duas ou três semanas despacham um livro como esse que há dias ganhou o prémio do Notícias. Não me fizeram os deuses assim abonado. Você leu o livro de um jacto. Mas um simples almoço que se come em meia hora leva muitas mais a fabricar.



[1] Ontem na TV C9.3.93) em entrevista, a propósito do Mário Soares, dizia-se profundamente social-democrata.