segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Grand Duo by Napoléon Coste

O CANTAR DOS GALOS

Dizem que estou enganado. Mas eu continuo na minha: antigamente as noites eram maiores.
«Às nove deita-te home/ Se guardas para as dez, burro és...»
Um homem ia para a cama às nove. Alta madrugada, ouvia cantar os galos e despertava.
Agora os galos não cantam porque os não há. E os homens, à falta de quem os desperte de madrugada, descuram as suas obrigações conjugais. Resultado? A natalidade baixa e a nação corre perigo.
Já aqui falei dos subsídios aos burros. Porque não subsidiar os galos?
Qualquer dia levo um para o Porto. Ainda o não levei com receio de que me suceda o mesmo que aconteceu a uma conhecida minha que foi para a América. Chegou lá e, do cantar dos galos saudosa, montou uma capoeira com meia dúzia de galinhas e um galaroz.
Passado um mês tinha o xarifo à porta:
– Tem de matar o galo.
– Porquê?
– Os vizinhos queixam-se de que ele os não deixa dormir.
Uns bárbaros, estes americanos. Só vêem o dólar. Tudo o que seja beleza, sentimento, poesia, passa-lhes ao lado. Há lá coisa mais idílica do que o cantar dum galo ao romper o dia?
«Acorda, meu amor! Já cantam os galos...».
Umas das variantes para mim mais queridas da poesia provençal dos séculos XII e XIII são as «Albas». Como essas delicadas e doridas canções traduzem bem a mágoa dos amantes clandestinos ante a separação imposta pelo romper da aurora:
«Acorda, meu amor! Já se ouve o toque da alvorada»!
Nos séculos XII e XIII o despontar da aurora era anunciado por um arauto que ia pelas ruas a tocar um clarim.
No século XVI, segundo Shakespeare, «Romeu e Julieta», pelo canto da cotovia;
«Acorda Romeu! Já se ouve a cotovia...»
Nos meus tempos de amante, pelo cantar dos galos:
«Acorda, ladrão, que já cantam os galos! Raspa-te antes que meu pai se levante e pegue na escupeta...»
Que saudades eu tenho desses tempos...
Exijo o regresso imediato dos galos aos poleiros!
Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS – Crónicas de Barroso (p. 185 e s.)

domingo, 30 de outubro de 2011

Le Départ de Napoléon Coste sur guitare classique Bertrand Ligier - www....

Dia 30 [Outubro de 2008]

A pergunta

E eu pergunto aos economistas políticos, aos moralistas, se já calcularam o número de indivíduos que é forçoso condenar à miséria, ao trabalho desproporcionado, à desmoralização, à infância, à ignorância crapulosa, à desgraça invencível, à penúria absoluta, para produzir um rico?
(1799-1854)
José Saramago, O CADERNO

30 de Outubro

 Lembrar ROMEU e JULIETA, de William Shakespeare.

 Depois de ter recebido de um seu amigo um serviço considerável, comentário do N.: «A mim, ninguém me faz um favor que mo não pague!» [JRM]

sábado, 29 de outubro de 2011

Fantasie Hongroise, Op. 65, No. 1 by Johann Kaspar Mertz - Gohar Vardanyan

Dia 29 [Outubro de 2008]

Há uns dias atrás, várias pessoas de diversos países e diferentes posições políticas, subscrevemos o texto que reproduzo abaixo. É uma chamada de atenção, um protesto, a expressão do alarme que sentimos diante da crise e das possíveis saídas que se afiguram. Não podemos ser cúmplices.
Novo capitalismo?
Chegou o momento da mudança à escala pública e individual. Chegou o momento da justiça.
A crise financeira aí está de novo destroçando as nossas economias, desferindo duros golpes nas nossas vidas. Na última década, os seus abanões têm sido cada vez mais frequentes e dramáticos. Ásia Oriental, Argentina, Turquia, Brasil, Rússia, a hecatombe da Nova Economia, provam que não se trata de acidentes conjunturais fortuitos que acontecem na superfície da vida económica mas que estão inscritos no próprio coração do sistema. Essas rupturas, que acabaram produzindo uma contracção funesta da vida económica actual, com o argumento do desemprego e da generalização da desigualdade, assinalam a quebra do capitalismo financeiro e significam o definitivo ancilosamento da ordem económica mundial em que vivemos. Há, pois, que transformá-lo radicalmente.
Na entrevista com o presidente Bush, Durão Barroso, Presidente da Comissão Europeia, declarou que a presente crise deve conduzir a uma «nova ordem económica mundial», o que é aceitável, se esta nova ordem se orientar pelos princípios democráticos – que nunca deveriam ter sido abandonados – da justiça, liberdade, igualdade e solidariedade.
As «leis do mercado» conduziram a uma situação caótica que levou a um «resgate» de milhares de milhões de dólares, de tal modo que, como se referiu acertadamente, «se privatizaram os ganhos e se nacionalizaram as perdas». Encontraram ajuda para os culpados e não para as vítimas. Esta é uma ocasião única para redefinir o sistema económico mundial a favor da justiça social.
Não havia dinheiro para os fundos de combate à SIDA, nem de apoio para a alimentação no mundo… e afinal, num autêntico turbilhão financeiro, acontece que havia fundos para que não se arruinassem aqueles mesmos que, favorecendo excessivamente as bolhas informáticas e imobiliárias, arruinaram o edifício económico mundial da «globalização».
Por isto é totalmente errado que o Presidente Sarkozy tenha falado sobre a realização de todos estes esforços a cargo dos contribuintes «para um novo capitalismo»!… e que o Presidente Bush, como dele seria de esperar, tenha concordado que deve salvaguardar-se «a liberdade de mercado» (sem que desapareçam os subsídios agrícolas!)…
Não: agora devemos ser resgatados, os cidadãos, favorecendo com rapidez e valentia a transição de uma economia de guerra para uma economia de desenvolvimento global, em que essa vergonha colectiva do investimento de três mil milhões de dólares por dia em armas, ao mesmo tempo que morrem de fome mais de 60 000 pessoas, seja superada. Uma economia de desenvolvimento que elimine a abusiva exploração dos recursos naturais que tem lugar na actualidade (petróleo, gás, minerais, carvão) e que faça com que se apliquem normas vigiadas por umas Nações Unidas refundadas – que envolvam o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial «para a  reconstrução e desenvolvimento» e a Organização Mundial de Comércio, que não seja um clube privado de nações, mas sim uma instituição da ONU – que disponham dos meios pessoais, humanos e técnicos necessários para exercer a sua autoridade jurídica e ética de forma eficaz.
Investimento nas energias renováveis, na produção de alimentos (agricultura e aquicultura), na obtenção e condução de água, na saúde, educação, habitação… para que a «nova ordem económica» seja, por fim, democrática e beneficie as pessoas. O engano da globalização e da economia de mercado deve terminar! A sociedade civil já não será um espectador resignado e, se necessário for, utilizará todo o poder de cidadania que hoje, com as modernas tecnologias de comunicação, possui.
Novo capitalismo? Não!
Chegou o momento da mudança à escala pública e individual. Chegou o momento da justiça.

Francisco Altemir
José Saramago, O CADERNO

29 de Outubro

• Estava um lavrador no seu quintal a abater com o machado uma laranjeira que, de velha, já não dava fruto, passa por ali o prior da freguesia, que, vendo aquilo, exclama: «Ó amigo Joaquim, vossemecê não dava o pau da sua laranjeira para eu mandar fazer outro Santo António, que ele, o da nossa igreja, deu-lhe o caruncho e está a cair a pedaços?» «Conte com ele, senhor padre cura! Mas primeiro tenho eu de tirar desta as tábuas pra fazer uma manjedoura prò meu burro, que a dele está podre. O que sobejar é prò seu santo!» Assim foi. Feita a manjedoura e acabada a obra do santeiro, o lavrador vai um dia à igreja. Vendo o novo Santo António adorado por todos no seu altar, diz ele de si para consigo abanando a cabeça: «Bem te conheço meu pau de laranjeira, irmão gémeo da manjedoura do meu burro. Lá milagres farás tu, mas laranjas é que tu nunca hás-de dar!» (Tradicional, adaptado.) [JRM]

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Gabriel Bianco 2008 GFA Winner Mertz/Schubert

Dia 28 [Outubro de 2008]

Fernando Meirelles & Cª

A história da adaptação de Ensaio sobre a Cegueira ao cinema passou por altos e baixos desde que Fernando Meirelles, aí pelo ano de 1997, perguntou a Luiz Schwarcz, meu editor brasileiro, se eu estaria interessado em ceder os respectivos direitos. Recebeu como resposta uma peremptória negativa: não. Entretanto, no escritório da minha agente literária em Bad Homburg, Frankfurt, começaram a chover, e choveram durante anos, cartas, correios electrónicos, chamadas telefónicas, mensagens de toda a espécie de produtores de outros países, em particular dos Estados Unidos, com a mesma pergunta. A todos mandei dar a resposta conhecida: não. Soberba minha? Não era questão de soberba, simplesmente não tinha a certeza, nem sequer a esperança, de que o livro fosse tratado com respeito naquelas paragens. E os anos passaram. Um dia, acompanhados pela minha agente, apareceram-me em Lanzarote, vindos directamente de Toronto, dois canadianos que pretendiam fazer o filme, Niv Fichman, o produtor, e Don McKellar, o guionista. Eram gente nova, nenhum deles me fazia recordar o Cecil B. de Mille, e, depois de uma conversa franca, sem portas falsas nem reservas mentais, entreguei-lhes o trabalho. Faltava saber quem seria o director. Outros anos tiveram de passar até ao dia em que me foi perguntado o que pensava eu de Fernando Meirelles. Completamente esquecido do que havia sucedido naquele já longínquo ano de 1997, respondi que pensava bem. Tinha visto e gostado da Cidade de Deus e do Fiel Jardineiro, mas continuava sem associar o nome deste director à pessoa do outro…
Finalmente, o resultado de tudo isto já está aqui. Traz o título de Blindness, com o qual se espera facilitar a sua relação com o livro no circuito internacional. Não vi qualquer motivo para discutir a escolha. Hoje, em Lisboa, foi a apresentação deste Ensaio sobre a Cegueira em imagens e sons. A plateia da FNAC estava bem servida de jornalistas que espero dêem boa conta do recado. Amanhã será a ante-estreia. Conversámos sobre estes episódios já históricos e, em dado momento, Pilar, a mais prática e objectiva de todas as subjectividades que conheço, lançou uma ideia: “No meu entender, o livro antecipou os efeitos da crise que estamos a sofrer. As pessoas, desesperadas, correndo por Wall Street, de banco em banco antes que o dinheiro se acabe, não são outras que as que se movem, cegas, sem rumo, no romance e agora no filme. A diferença é que não têm uma mulher do médico que as guie, que as proteja”. Reparando bem, a andaluza é capaz de ter razão.
José Saramago, O CADERNO

DIÁRIO (XIII)

Castelo Branco, 28 de Outubro de 1979 – Ah, pátria que tanto me custas no corpo e tanto me dóis na alma! Mas valeu a pena a pertinácia do meu amor e a melancolia de te ter possuído em vão.
Miguel Torga, DIÁRIO (XIII), 118

Sol

The Sun by the Atmospheric Imaging Assembly of NASA's Solar Dynamics Observatory - 20100819.jpg

28 de Outubro

 Abençoada solidão - maldita sejas! [JRM]

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Matteo Carcassi - Minuetto op.21 n°12 - Romantic guitar

Dia 27 [Outubro de 2008]

Quando for crescido quero ser como Rita

Esta Rita a quem quero parecer-me quando for crescido é Rita Levi-Montalcini, ganhadora do Prémio Nobel de Medicina em 1984 pelas suas investigações sobre o desenvolvimento das células neurológicas. Ora, Prémio Nobel é coisa que já tenho, logo não seria por ambição dessa grande ou pequena glória, as opiniões dos entendidos divergem, que estou disposto a deixar de ser quem tenho sido para tornar-me em Rita. De mais a mais estando eu numa idade em que qualquer mudança, mesmo quando prometedora, sempre se nos afigura um sacrifício das rotinas em que, mais ou menos, acabámos por nos acomodar.
E por que quero eu parecer-me a Rita? É simples. No acto do seu investimento como Doutora Honoris Causa na aula magna da Universidade Complutense, de Madrid, esta mulher, que em Abril completará cem anos, fez umas quantas declarações (pena que não tenhamos conseguido a transcrição completa do seu improvisado discurso) que me deixaram ora assombrado, ora agradecido, posto que não é fácil imaginar juntos e unidos estes dois sentimentos extremos. Disse ela: “Nunca pensei em mim mesma. Viver ou morrer é a mesma coisa. Porque, naturalmente, a vida não está neste pequeno corpo. O importante é a maneira como vivemos e a mensagem que deixamos. Isso é o que nos sobrevive. Isso é a imortalidade”. E disse mais: “É ridícula a obsessão do envelhecimento. O meu cérebro é melhor agora do que foi quando eu era jovem. É verdade que vejo mal e oiço pior, mas a minha cabeça sempre funcionou bem. O fundamental é manter activo o cérebro, tentar ajudar os outros e conservar a curiosidade pelo mundo”. E estas palavras que me fizeram sentir que havia encontrado uma alma gémea: “ Sou contra a reforma ou qualquer outro tipo de subsídio. Vivo sem isso. Em 2001 não cobrava nada e tive problemas económicos até que o presidente Ciampi me nomeou senadora vitalícia”.
Nem toda a gente estará de acordo com este radicalismo. Mas aposto que muitos dos que me lêem vão também querer ser como Rita quando crescerem. Que assim seja. Se o fizerem tenhamos a certeza de que o mundo mudará logo para melhor. Não é isso o que andamos a dizer que queremos? Rita é o caminho.
José Saramago, O CADERNO

27 de Outubro

• «Ser doente pode custar e doer: mas o que não se aguenta é sê-lo – e fingir que se goza saúde!», diz o incurável. [JRM]

• O médico, professor e investigador português António Caetano de Abreu Freire Egas Moniz (1874-1955), partilha o Prémio Nobel da Medicina com Walter Hess (1881-1973), pela "sua descoberta do valor terapêutico da leucotomia em certas psicoses".

• Feriado municipal em Lagos.

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Raphaella Smits plays Luigi Legnani - Capriccio n°7 Prestissimo

26 de Outubro

• O estruturalismo de certos cavalheiros faz-me pensar na «gaiola» ou esqueleto de um edifício cuja construção tivesse sido suspensa na primeira fase: nem conteúdo! [JRM]
• Morreu, em 1998, o escritor José Cardoso Pires, autor de O Delfim, obra que serviu de base ao filme do mesmo nome de Fernando Lopes.
• Sabia que desde o ano 2000 a moeda oficial de Timor Leste (bandeira) é o dólar dos Estados Unidos?
• A 26 de Outubro de 1855, morre o pintor português José Vital Branco Malhoa. Entre as suas obras mais emblemáticas, poder-se-á citar a tela O Fado, de 1910.

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Peneireiro-vulgar

Common kestrel falco tinnunculus.jpg
Peneireiro-vulgar (Falco tinnunculus).

DIÁRIO (XIII)

Coimbra, 25 de Outubro de 1979 – Não. Nunca hei-de escrever a última página. Ficará sempre uma inédita na minha aflição.
Miguel Torga, DIÁRIO (XIII), 118

O COMETA

Esta noite dormi pouco. Acordei alta madrugada e vim para a janela. Estava uma noite de rouxinóis, se rouxinóis houvessem em Setembro. Se os há calaram-se. Ficaram as estrelas, outro ornamento de luxo das noites barrosãs. Na cidade, a luz pública e os letreiros luminosos empalidecem e afastam as estrelas. Na escuridão da aldeia, elas sobressaem e aproximam-se. Quase ao alcance das mãos. Não as conheço a todas pelo nome. Mas seio lugar que a cada uma cabe na harmonia do universo. Algumas são-me familiares desde a infância: a Estrela Polar, o Sete-Esprelo, as Três-Marias, a Estrela do Pastor, também chamada Estrela da Manhã. Cedo me habituei a considerá-la uma divindade:
– Estrela da Manhã.
– Rogai por nós.
Só mais tarde vim a saber que ela era um planeta e tinha o nome duma deusa: Vénus. Não fiz caso. Para mim continua a ser das estrelas mais queridas. AÍ pela meia-noite está sempre à frente da minha janela. Nunca me deito que a não cumprimente:
– Boa noite, amor. Vela por mim.
Eis se não quando, um dia destes, ao aproximar-me da janela para me despedir de Vénus, deparo com um grande ponto vermelho no céu. Caí das nuvens:
– Que será aquilo?
Só de manhã, enquanto fazia a barba, ouvi no rádio que lá para Lisboa houve quem passasse a noite a ver Marte por um canudo.
– É então Marte... Pois eu, quando vi aquele ponto vermelho com reflexos laranja, até julguei que estava a ver um cometa. E, a propósito de cometas, vou contar uma história.
Aqui há uns quatro ou cinco anos publiquei um livro em que falava da Música de Parafita. Nem todos os parafitenses gostaram. E um dos mais indignados escreveu-me a dizer-me, metaforicamente, que eu estava a meter o nariz onde não era chamado. Vinha mais ou menos assim contada a anedota:
Que in illo tempore havia lá na terra dele um seminarista já adiantado nos estudos. E que, estando ele em gozo de férias, refastelado à sombra, a ver quem passava na rua, aparece o Gato, homem sabido e reinadio, vira-se para ele e declama:
– Ora viva o meu ilustre vizinho! É para mim uma honra e um prazer saudar um homem superior, destinado a voar acima do comum dos mortais, cabeça levantada, nariz nos astros: nas estrelas, nos planetas, no «cu o metas»...
Não está mau o trocadilho. Mas mal aplicado. Nem então estava a meter o nariz onde não devia, nem hoje estou a metê-lo no cometa, uma vez que se trata de Marte.
Dizem os astrónomos que atingiu este mês o ponto mais próximo da Terra. Próximo em termos astronómicos: uns 55 milhões de quilómetros, se bem entendi.
Mais dizem os sábios que só daqui a uns 60 mil anos voltará a ser visível a olho nu. Gostava de estar cá para ver.

Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS – Crónicas de Barroso (p. 183 e s.)

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Zoran Anic - Luigi Legnani Caprice No.2

Dia 24 [Outubro de 2008]

José Luis Sampedro

Esta tarde ouvi falar de José Luis Sampedro, economista, escritor, e, sobretudo, sábio daquela sabedoria que não é dada pela idade, ainda que esta possa ajudar alguma coisa, mas pela reflexão como forma de vida. Perguntaram-lhe na televisão pela crise de 29, que ele viveu em criança, mas que depois estudou como catedrático. Deu respostas inteligentes que os interessados em compreender o que está ocorrendo encontrarão nos seus livros, tanto escreveu José Luis Sampedro, ou procurando a reportagem na rede, mas uma pergunta que ele próprio fez, não o jornalista, ficou-me gravada na memória. Perguntava-nos o mestre, e também a si mesmo, como se explica que tenha aparecido tão rapidamente o dinheiro para resgatar os bancos e, sem necessidade de qualificativos, se esse dinheiro teria aparecido com a mesma rapidez se tivesse sido solicitado para acudir a uma emergência em África, ou para combater a sida… Não era necessário esperar muito para intuir a resposta. À economia, sim, podemos salvá-la, mas não ao ser humano, esse que deveria ter a prioridade absoluta, fosse quem fosse, estivesse onde estivesse. José Luis Sampedro é um grande humanista, um exemplo de lucidez. O mundo, ao contrário do que às vezes se diz, não está deserto de gente merecedora, como ele, de que lhe dêmos o melhor da nossa atenção. E façamos o que ele nos diz: intervir, intervir, intervir.
José Saramago, O CADERNO

24 de Outubro

• «Oh senhor!», respinga Alípio, «depois de tanta demolição do passadismo e seus monumentos, ainda nenhum dos nossos exaltados poetas revolucionários se lembrou de inventar nova letra para substituir a d'A Portuguesa, que está mais do que ultrapassada! Onde diabo se meteram eles?» [JRM]

• 1147 - D. Afonso Henriques conquista Lisboa aos mouros.

• 1836 - Ramalho Ortigão, famoso polemista português (m. 1915).

domingo, 23 de outubro de 2011

Classical guitar - Thomas Viloteau, Legnani's Fantasia Op.19

Dia 23 [Outubro de 2008]

Têm alma os verdugos?

Nestes últimos dias abriu o tiro ao alvo contra o juiz Garzón. Mesmo aqueles que o defendem argumentam que tem uma personalidade controversa, como se todos tivéssemos a obrigação de ser iguais ao semelhante mais próximo… O caso é que Garzón, com os seus autos singulares, é o juiz que mais alegrias tem proporcionado àqueles a quem, apesar de tudo, esperam muito da justiça ou, melhor dito, dos encarregados de administrá-la. Garzón, na sequência de queixas que lhe apresentaram,  interveio num assunto que é maior que ele e que todas as instituições judiciais juntas: a guerra civil espanhola, a ilegalidade do franquismo, a dignidade dos que defenderam a República e um modo de viver a vida. Ele sabe que talvez tenha de abandonar o campo, mas as portas já estão abertas para que se reconheçam verdades, junto a identificações, e inclusive, por fim, enterros. A transição espanhola, uma época vivida sobre o possível, não é uma carta de corso: a esquerda cedeu porque os militares e o franquismo social estavam apontando, mas não se rendeu, não disse «esta palavra é definitiva», simplesmente esperou que chegasse o dia de contar os seus mortos e chamar as coisas pelo seu nome. Garzón ajudou com a sua posição, e nunca alegria maior foi sentida pelas vítimas daquela guerra, pelos que conseguiram sobreviver até hoje.
O juiz Garzón não é um sectário. Entende que nada humano lhe é alheio e entra nos assuntos que considera delitivos e porque para isso tem autoridade. Também se pergunta se os verdugos têm alma, sinal mais do que suficiente para compreender que analisa desde as duas margens. Há uns meses pediu-me um prólogo para um trabalho que havia realizado com o jornalista Vicente Romero. Era, repito, uma investigação sobre o comportamento dos verdugos. Recomendo vivamente a leitura deste livro – El alma de los verdugos, ed. RBA – e, enquanto não o têm  nas vossas mãos, deixo-vos estas linhas que, à maneira de prólogo, escrevi para Baltasar Garzón e Vicente Romero.
Têm alma os verdugos?
Uma alma que fosse possível considerar responsável por todo e qualquer acto cometido teria de levar-nos, forçosamente, a reconhecer a total inocência do corpo, reduzido a ser o instrumento passivo de uma vontade, de um querer, de um desejar não especificamente localizáveis nesse mesmo corpo. A mão, em estado de repouso, com os seus ossos, nervos e tendões, está pronta para cumprir no instante seguinte a ordem que lhe for dada e de que em si mesma não é responsável, seja para oferecer uma flor ou para apagar um cigarro na pele de alguém. Por outro lado, atribuir, a priori, a responsabilidade de todas as nossas acções a uma identidade imaterial, a alma, que, através  da consciência, seria, ao mesmo tempo, juiz dessas acções, conduzir-nos-ia a um círculo vicioso em que a sentença final teria de ser a inimputabilidade. Sim, admitamos que a alma é responsável, porém, onde é que está a alma para que possamos pôr-lhe as algemas e levá-la ao tribunal? Sim, está demonstrado que o martelo que destroçou o crânio desta pessoa foi manejado por esta mão, contudo, se a mão que matou fosse a mesma que, tão inconsciente de uma coisa como da outra, tivesse simplesmente oferecido uma flor, como poderíamos incriminá-la? A flor absolve o martelo?
Ficou dito acima que a vontade, o querer, o desejar (sinónimos que, apesar de o não serem efectivamente, não podem viver separados) não são especificamente localizáveis no corpo. É certo. Ninguém pode afirmar, por exemplo, que a vontade esteja alojada entre os dedos médio e indicador de uma mão neste momento ocupada a estrangular alguém com a ajuda da sua colega do lado esquerdo. No entanto, todos intuímos que se a vontade tem casa própria, e deverá tê-la, ela só poderá ser o cérebro, esse complexo universo cujo funcionamento, em grande parte (o córtex cerebral tem cerca de cinco milímetros de espessura e contém 70 000 milhões de células nervosas dispostas em seis  camadas ligadas entre si) se encontra ainda por estudar. Somos o cérebro que em cada momento tivermos, e esta é a única verdade essencial que podemos enunciar sobre nós próprios. Que é, então, a vontade? É algo material? Não concebo, não o concebe ninguém, com que espécie de argumentos seria defensável uma alegada materialidade da vontade sem a apresentação de uma «amostra material» dessa mesma materialidade…
O voluntarismo, como é geralmente conhecido, é a teoria que sustenta que a vontade é o fundamento do ser, o princípio da acção ou, também, a função essencial da vida animal. No aristotelismo e no estoicismo da antiguidade clássica observam-se já tendências voluntaristas. Na filosofia contemporânea são voluntaristas Schopenhauer (a vontade como essência do mundo, mais além da representação cognoscitiva) e Nietzsche (a vontade de poder como princípio da vida ascendente). Isto é sério e, por todas as evidências, necessitaria aqui alguém, não quem estas linhas está escrevendo, capaz de relacionar aquelas e outras reflexões filosóficas sobre a vontade com o conteúdo deste livro, cujo título é, não o esqueçamos, A Alma dos Verdugos. Aqui talvez tivesse eu de deter-me se, felizmente para os meus brios, não me tivesse saltado aos olhos, folheando com mão distraída um modesto dicionário, a seguinte definição: «Vontade: Capacidade de determinação para fazer ou não fazer algo. Nela se radica a liberdade». Como se vê, nada mais claro: pela vontade posso determinar-me a fazer ou não fazer algo, pela liberdade sou livre para determinar-me num sentido ou noutro. Habituados como estamos pela linguagem a considerar vontade e liberdade como conceitos em si mesmos positivos, apercebemo-nos de súbito, com um instintivo temor, que as cintilantes medalhas a que chamamos liberdade e vontade podem exibir do outro lado a sua absoluta e total negação. Foi usando da sua liberdade (por mais chocante que nos pareça a utilização da palavra neste contexto) que o general Videla viria a tornar-se, por vontade própria, insisto, por vontade própria, num dos mais detestáveis protagonistas da sangrenta e pelos vistos infinita história da tortura e do assassinato no mundo. Foi igualmente usando da sua vontade e da sua liberdade que os verdugos argentinos cometeram o seu infame trabalho. Quiseram fazê-lo  e fizeram-no. Nenhum perdão é portanto possível. Nenhuma reconciliação nacional ou particular.
Importa pouco saber se têm alma. Aliás, desse assunto deverá estar informado, melhor do que ninguém, o sacerdote católico argentino Christian von Vernich que há alguns meses foi condenado a prisão perpétua por genocídio. Seis assassinatos, torturas a 34 pessoas e sequestro ilegal em 42 casos, eis a sua folha de serviços. É até possível, permita-se-me a trágica ironia, que tenha alguma vez dado a extrema unção a uma das suas vítimas…
José Saramago, O CADERNO

23 de Outubro

À carência duma literatura verdadeiramente inventiva e criadora corresponde sempre uma produção excessiva, aberrante, de criticismo e teorização. Doença essa, crónica, entre nós. [JRM]

sábado, 22 de outubro de 2011

22 de Outubro

• As chamadas «boas maneiras» – o beija-mão, a vénia, o rapapé, a chapelada – são apenas artes de ocultar a falta de verdadeira cordialidade, respeito ou consideração, e de boas intenções: sobretudo no tocante à Mulher. Já o aperto de mão, a saudação de mão no ar, de palma aberta, eram apenas sinais de que não se estava usando armas: mas estas continuavam à cinta, prontas a usar às vezes no abraço mortal. [JRM]

• Sabia que cerca de 125 milhões de pessoas em todo mundo usam lentes de contato, quase 2% da população mundial?

Dia 22 [Outubro de 2008]

Chico Buarque de Holanda


Haverá universos paralelos? Perante as variadas «provas» apresentadas ao tribunal da opinião pública pelos autores que se dedicam à ficção científica, não é difícil acreditar que sim, ou, pelo menos, estar de acordo em conceder à temerária hipótese aquilo que não se nega a ninguém, isto é, o benefício da dúvida. Ora, supondo que realmente existam esses tais universos paralelos, será lógico e creio que inevitável ter de admitir igualmente a existência de literaturas paralelas, de escritores paralelos, de livros paralelos. Um espírito sarcástico não deixaria de recordar-nos que não se necessita ir tão longe para encontrar escritores paralelos, mais conhecidos por plagiários, os quais, no entanto, nunca chegam a ser plagiários de todo porque alguma coisa da lavra própria se sentem na obrigação de pôr na obra que assinarão com o seu nome. Plagiário absoluto foi aquele Pierre Menard que, no dizer de Borges, copiou o Quixote palavra por palavra, e mesmo assim o mesmo Borges nos advertiu que escrever o termo justiça no século XX não significa a mesma coisa (nem é a mesma justiça) que tê-la escrito no século XVII… Outro tipo de escritor paralelo (também chamado nègre ou, mais modernamente, ghost) é aquele que escreve para que outros gozem a suposta ou autêntica glória de ver o seu nome escrito na capa de um livro. Disto trata, aparentemente, o romance – Budapeste – de Chico Buarque de Holanda, e se digo  «aparentemente» é porque o escritor «fantasma» cujas grotescas aventuras vamos acompanhando divertidos, se bem que ao mesmo tempo apiedados, é tão-somente a causa inconsciente de um processo de repetições sucessivas que, se não chegam a ser de universos nem de literaturas, sem dúvida o serão, inquietantemente, de autores e de livros. O mais desassosegador, porém, é a sensação de vertigem contínua que se apoderará do leitor, que em cada momento saberá onde estava, mas que em cada momento não sabe onde está. Sem parecer pretendê-lo, cada página do romance expressa uma interpelação «filosófica» e uma provocação «ontológica»: que é, afinal, a realidade? o que e quem sou eu, afinal, nisso que me ensinaram a chamar realidade? Um livro existe, deixará de existir, existirá outra vez. Uma pessoa escreveu, outra assinou, se o livro desapareceu, também desapareceram ambas? E se desapareceram, desapareceram de todo, ou em parte? Se alguém sobreviveu, sobreviveu neste, ou noutro universo? Quem serei eu, se tendo sobrevivido, não sou já quem era? Chico Buarque ousou muito, escreveu cruzando um abismo sobre um arame, e chegou ao outro lado. Ao lado onde se encontram os trabalhos executados com mestria, a da linguagem, a da construção narrativa, a do simples fazer. Não creio enganar-me dizendo que algo novo aconteceu no Brasil com este livro.
José Saramago, O CADERNO

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Dionisio Aguado: Rondo in A minor

Dia 21 [Outubro de 2008]

Constituições e realidades

A Constituição Portuguesa entrou em vigor em 25 de Abril de 1976, dois anos depois da Revolução e ao fim de um agitado período de lutas partidárias e de movimentos sociais. Desde então passou por sete revisões, tendo sido a última delas já em 2005. Em muitos dos artigos que a compõem, uma constituição política é uma declaração de intenções. Que não se rasguem as vestes os constitucionalistas. Dizê-lo não significa uma minimização da importância desses documentos, em paralelo neste particular com a Declaração dos Direitos Humanos, em vigor (melhor diríamos em latência) desde 1948. Como sabemos, as revisões constitucionais são uma espécie de acertos de marcha, de ajustamentos à realidade social, quando não resultaram, simplesmente, da vontade política de uma maioria parlamentar que permitiu promover ou impor as suas opções. De outro ponto de vista, talvez por superstição, talvez por inércia, não é raro que se mantenham nas constituições, pelo menos em algumas delas, vestígios “fósseis” de disposições que perderam, no todo ou em parte, o seu sentido original. Só assim se explica que no preâmbulo da Constituição Portuguesa se mantenha, intocável, ou como uma concessão puramente retórica, a expressão “abrir caminho para o socialismo”. Num mundo dominado pelo mais cruel liberalismo económico e financeiro alguma vez imaginado, aquela referência, último eco de mil aspirações populares, arrisca a fazer sorrir. Um sorriso com lágrimas, digamos. As constituições estão aí e é à luz delas, penso eu, que deveria ser julgada a gestão dos nossos governos. A lei da selva que imperou nos últimos trinta anos não teria chegado às consequências que estão à vista se os governos, todos eles, houvessem feito das constituições dos seus países um vademecum de uso diurno e nocturno, uma cartilha do bom cidadão. Talvez o tremendo choque que o mundo está sofrendo possa levar-nos a fazer das nossas constituições algo mais que a simples declaração de intenções que ainda são em muitos dos seus aspectos. Oxalá.
José Saramago, O CADERNO

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

20 de Outubro

Muammar al-Gaddafi, ex-ditador da Líbia, morre em combate em Sirte.

• O 20 de Outubro foi escolhido para Dia Mundial da Osteoporose, uma doença que torna os ossos mais finos e frágeis, e que por isso facilita o aparecimento de fracturas.

Dia 20 [Outubro de 2008]

Pensava escrever no blog sobre a crise económica que nos lançaram para cima quando tive que me dedicar a cumprir um compromisso com outros meios de comunicação. Deixo aqui o que penso e que já foi publicado em Espanha, no jornal Público, e em Portugal, no semanário Expresso.

Crime (financeiro) contra a humanidade

A história é conhecida, e, nos antigos tempos de uma escola que a si mesma se proclamava como perfeita educadora, era ensinada aos meninos como exemplo da modéstia e da discrição que sempre deverão acompanhar-nos quando nos sintamos tentados pelo demónio a ter opinião sobre aquilo que não conhecemos ou conhecemos pouco e mal. Apeles podia consentir que o sapateiro lhe apontasse um erro no calçado da figura que havia pintado, porquanto os sapatos eram o ofício dele, mas nunca que se atrevesse a dar parecer sobre, por exemplo, a anatomia do joelho. Em suma, um lugar para cada coisa e cada coisa no seu lugar. À primeira vista, Apeles tinha razão, o mestre era ele, o pintor era ele, a autoridade era ele, quanto ao sapateiro, seria chamado na altura própria, quando se tratasse de deitar meias solas num par de botas. Realmente, aonde iríamos nós parar se qualquer pessoa, até mesmo a mais ignorante de tudo, se permitisse opinar sobre aquilo que não sabe? Se não fez os estudos necessários, é preferível que se cale e deixe aos sabedores a responsabilidade de tomar as decisões mais convenientes (para quem?).
Sim, à primeira vista, Apeles tinha razão, mas só à primeira vista. O pintor de Filipe e de Alexandre da Macedónia, considerado um génio na sua época, esqueceu-se de um aspecto importante da questão: o sapateiro tem joelhos, portanto, por definição, é competente nestas articulações, ainda que seja unicamente para se queixar, sendo esse o caso, das dores que nelas sente. A estas alturas, o leitor atento já terá percebido que não é propriamente de Apeles nem de sapateiro que se trata nestas linhas. Trata-se, isso sim, da gravíssima crise económica e financeira que está a convulsionar o mundo, a ponto de não escaparmos à angustiosa sensação de que chegámos ao fim de um época sem que se consiga vislumbrar qual e como seja o que virá a seguir, após um tempo intermédio, impossível de prever, para levantar as ruínas e abrir novos caminhos. Como assim? Uma lenda antiga para explicar os desastres de hoje? Por que não? O sapateiro somos nós, nós todos que assistimos, impotentes, ao avanço esmagador dos grandes potentados económicos e financeiros, loucos por conquistarem mais e mais dinheiro, mais e mais poder, por todos os meios legais ou ilegais ao seu alcance, limpos ou sujos, correntes ou criminosos. E Apeles? Apeles são esses precisamente, os banqueiros, os políticos, os seguradores, os grandes especuladores, que, com a cumplicidade dos meios de comunicação social, responderam nos últimos trinta anos aos nossos tímidos protestos com a soberba de quem se considerava detentor da última sabedoria, isto é, que ainda que o joelho nos doesse não nos seria permitido falar dele, denunciá-lo, apontá-lo à condenação pública. Foi o tempo do império absoluto do Mercado, essa entidade presuntivamente auto-reformável e autocorrectora encarregada pelo imutável destino de preparar e defender para todo o sempre a nossa felicidade pessoal e colectiva, ainda que a realidade se encarregasse de o desmentir a cada hora.
E agora? Irão finalmente acabar os paraísos fiscais e as contas numeradas? Irá ser implacavelmente investigada a origem de gigantescos depósitos bancários, de engenharias financeiras claramente delituosas, de investimentos opacos que, em muitíssimo casos, não são mais que maciças lavagens de dinheiro negro, de dinheiro do narcotráfico? E já que falamos de delitos… Terão os cidadãos comuns a satisfação de ver julgar e condenar os responsáveis directos do terramoto que está sacudindo as nossas casas, a vida das nossas famílias, o nosso trabalho? Quem resolve o problema dos desempregados (não os contei, mas não duvido de que já sejam milhões) vítimas do crash e que desempregados irão continuar a ser durante meses ou anos, malvivendo de míseros subsídios do Estado enquanto os grandes executivos e administradores de empresas deliberadamente levadas à falência gozam de milhões e milhões de dólares a coberto de contratos blindados que as autoridades fiscais, pagas com o dinheiro dos contribuintes, fingiram ignorar? E a cumplicidade activa dos governos, quem a apura? Bush, esse produto maligno da natureza numa das suas piores horas, dirá que o seu plano salvou (salvará?) a economia norte-americana, mas as perguntas a que terá de responder são estas: Não sabia o que se passava nas luxuosas salas de reunião em que até o cinema já nos fez entrar, e não só entrar, como assistir à tomada de decisões criminosas sancionadas por todos os códigos penais do mundo? Para que lhe serviram a CIA e o FBI, mais as dezenas de outros organismos de segurança nacional que proliferam na mal chamada democracia norte-americana, essa onde um viajante, à entrada do país, terá de entregar ao polícia de turno o seu computador para que ele faça copiar o respectivo disco duro? Não percebeu o senhor Bush que tinha o inimigo em casa, ou, pelo contrário, sabia e não lhe importou?
O que está a passar-se é, em todos os aspectos, um crime contra a humanidade e é desta perspectiva que deveria ser objecto de análise em todos os foros públicos e em todas as consciências. Não estou a exagerar. Crimes contra a humanidade não são somente os genocídios, os etnocídios, os campos de morte, as torturas, os assassínios selectivos, as fomes deliberadamente provocadas, as poluições maciças, as humilhações como método repressivo da identidade das vítimas. Crime contra a humanidade é o que os poderes financeiros e económicos dos Estados Unidos, com a cumplicidade efectiva ou tácita do seu governo, friamente perpetraram contra milhões de pessoas em todo o mundo, ameaçadas de perder o dinheiro que ainda lhes resta e depois de, em muitíssimos casos (não duvido de que eles sejam milhões), haverem perdido a sua única e quantas vezes escassa fonte de rendimento, o trabalho.
Os criminosos são conhecidos, têm nomes e apelidos, deslocam-se em limusinas quando vão jogar o golf, e tão seguros de si mesmos que nem sequer pensaram em esconder-se. São fáceis de apanhar. Quem se atreve a levar este gang aos tribunais? Ainda que não o consiga, todos lhe ficaremos agradecidos. Será sinal de que nem tudo está perdido para as pessoas honestas.
José Saramago, O CADERNO

DIÁRIO (XIII)

Segura, 20 de Outubro de 1979 – Começo a caber na pátria. Já não olho a fronteira com a inquietação de outrora. O corpo e o espírito vão-se acostumando à ideia de que os sete palmos nacionais de terra chegam perfeitamente para consumar um destino humano.
Miguel Torga, DIÁRIO (XIII), 118 

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Paganini SONATA No.1 for guitar & violin from Centone di Sonate PASIECZN...

A TEMPESTADE

Quando eu era pequeno e trovejava, minha mãe dizia-me:
– Olha o Senhor a ralhar... Está quieto e reza.
E eu encolhia-me e rezava.
Agora sei que não é o Senhor a ralhar comigo. Mas continuo a guardar respeito às trovoadas. Santa Bárbara Bendita!
– Não vás para a janela! – recomendava a minha mãe.
Minha mãe foi-se embora há muito.
Eu e as trovoadas continuamos.
Vem lá uma. E eu vou para a janela.
O cisco da eira dança no ar e a copa do castanheiro verga perigosamente.
– Irá partir?
O castanheiro da eira deve ter séculos. Quando eu nasci já ele era o que é hoje: um gigante. E os gigantes riem-se das ventanias.
A trovoada está cada vez mais perto. Calculo-lhe a distância pelo intervalo entre o relâmpago e o ribombo.
Umas pingas grossas, raras, começam a bater terreno.
Novo alustre, novo estrondo.
As pingas dão lugar a uma corda d’água. Em poucos segundos, a eira fica um lago.
Mais relâmpagos. A trovoada está mesmo sobre a aldeia.
A chuva transforma-se em granizo. Pedras do tamanho de amêndoas.
A eira desaparece sob um grosso manto de saraiva.
A ventania aumenta.
De repente, um estalido forte e seco.
– Este caiu perto! – digo para comigo.
– Mas não vi qualquer clarão... – acrescento, intrigado.
A trovoada afasta-se.
Uma vizinha vem me dizer que um tronco do castanheiro caiu e trancou o caminho.
Fico céptico:
– Mas eu estava a olhar para ele e não vi nada...
– Foi o tronco do outro lado, atrás do palheiro.
Corro ao local.
Uma grossa pernada jaz no chão.
Fico triste.
Este mês de Agosto tem sido fértil em catástrofes.
Esta foi a que me tocou de mais perto.
Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS – Crónicas de Barroso (p. 181 e s.)

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Anton Diabelli - Andante - Romantic guitar

Dia 17 [Outubro de 2008]

Entre todas as coisas improváveis do mundo, ocupa um dos primeiros lugares a hipótese de que o cardeal Rouco Varela venha a ler este blog. Em todo o caso, uma vez que a Igreja Católica continua a afirmar que os milagres existem, a ela e a eles me confio para que, sob os olhos do ilustre, instruído e simpático purpurado, caiam um dia as linhas que se seguem. Há muitos mais problemas que o laicismo, considerado por sua eminência responsável do nazismo e do comunismo, e é precisamente de um deles que se fala aqui. Leia, senhor cardeal, leia. Ponha o seu espírito a fazer ginástica.
Deus como problema
Não tenho dúvidas de que este arrazoado, logo a começar pelo título, irá obrar o prodígio de pôr de acordo, ao menos por esta vez, os dois irredutíveis irmãos inimigos que se chamam Islamismo e Cristianismo, particularmente na vertente universal (isto é, católica) a que o primeiro aspira e em que o segundo, ilusoriamente, ainda continua a imaginar-se. Na mais benévola das hipóteses de reacção possíveis, clamarão os bem-pensantes que se trata de uma provocação inadmissível, de uma indesculpável ofensa ao sentimento religioso dos crentes de ambos os partidos, e, na pior delas (supondo que pior não haja), acusar-me-ão de impiedade, de sacrilégio, de blasfémia, de profanação, de desacato, de quantos outros delitos mais, de calibre idêntico, sejam capazes de descobrir, e portanto, quem sabe, merecedor de um castigo que me sirva de escarmento para o resto da vida. Se eu próprio pertencesse ao grémio cristão, o catolicismo vaticano teria de interromper os espectáculos estilo cecil b. demille em que agora se compraz para dar-se ao trabalho de me excomungar, porém, cumprida essa obrigação disciplinária, veria caírem-se-lhe os braços. Já lhe escasseiam as forças para proezas mais atrevidas, uma vez que os rios de lágrimas choradas pelas suas vítimas empaparam, esperemos que para sempre, a lenha dos arsenais tecnológicos da primeira inquisição. Quanto ao islamismo, na sua moderna versão fundamentalista e violenta (tão violenta e fundamentalista como foi o catolicismo na sua versão imperial), a palavra de ordem por excelência, todos os dias insanamente proclamada, é «morte aos infiéis», ou, em tradução livre, se não crês em Alá, não passas de imunda barata que, não obstante ser também ela uma criatura nascida do Fiat divino, qualquer muçulmano cultivador dos métodos expeditivos terá o sagrado direito e o sacrossanto dever de esmagar sob o chinelo com que entrará no paraíso de Maomé para ser recebido no voluptuoso seio das huris. Permita-se-me portanto que torne a dizer que Deus, sendo desde sempre um problema, é, agora, o problema.
Como qualquer outra pessoa a quem a lastimável situação do mundo em que vive não é de todo indiferente, tenho lido alguma coisa do que se tem escrito por aí sobre os motivos de natureza política, económica, social, psicológica, estratégica, e até moral, em que se presume terem ganho raízes os movimentos islamistas agressivos que estão lançando sobre o denominado mundo ocidental (mas não só ele) a desorientação, o medo, o mais extremo terror. Foram suficientes, aqui e além, umas quantas bombas de relativa baixa potência (recordemos que quase sempre foram transportadas em mochila ao lugar dos atentados) para que os alicerces da nossa tão luminosa civilização estremecessem e abrissem fendas, e ruíssem aparatosamente as afinal precárias estruturas da segurança colectiva com tanto trabalho e despesa levantadas e mantidas. Os nossos pés, que críamos fundidos no mais resistente dos aços, eram, afinal, de barro.
É o choque das civilizações, dir-se-á. Será, mas a mim não me parece. Os mais de sete mil milhões de habitantes deste planeta, todos eles, vivem no que seria mais exacto chamarmos a civilização mundial do petróleo, e a tal ponto que nem sequer estão fora dela (vivendo, claro está, a sua falta) aqueles que se encontram privados do precioso «ouro negro». Esta civilização do petróleo cria e satisfaz (de maneira desigual, já sabemos) múltiplas necessidades que não só reúnem ao redor do mesmo poço os gregos e os troianos da citação clássica, mas também os árabes e os não árabes, os cristãos e os muçulmanos, sem falar naqueles que, não sendo uma coisa nem outra, têm, onde quer que se encontrem, um automóvel para conduzir, uma escavadora para pôr a trabalhar, um isqueiro para acender. Evidentemente, isto não significa que por baixo dessa civilização a todos comum não sejam discerníveis os rasgos (mais do que simples rasgos em certos casos) de civilizações e culturas antigas que agora se encontram imersas em um processo tecnológico de ocidentalização a marchas forçadas, o qual, não obstante, só com muita dificuldade tem logrado penetrar no miolo substancial das mentalidades pessoais e colectivas correspondentes. Por alguma razão se diz que o hábito não faz o monge…
Uma aliança de civilizações poderá representar, no caso de vir a concretizar-se, um passo importante no caminho da diminuição das tensões mundiais de que cada vez parecemos estar mais longe, porém, seria de todos os pontos de vista insuficiente, ou mesmo totalmente inoperante, se não incluísse, como item fundamental, um diálogo inter-religiões, já que neste caso está excluída qualquer remota possibilidade de uma aliança… Como não há motivos para temer que chineses, japoneses e indianos, por exemplo, estejam a preparar planos de conquista do mundo, difundindo as suas diversas crenças (confucionismo, budismo, taoísmo, hinduísmo) por via pacífica ou violenta, é mais do que óbvio que quando se fala de aliança das civilizações se está a pensar, especialmente, em cristãos e muçulmanos, esses irmãos inimigos que vêm alternando, ao longo da história, ora um, ora outro, os seus trágicos e pelos vistos intermináveis papéis de verdugo e de vítima.
Portanto, quer se queira, quer não, Deus como problema, Deus como pedra no meio do caminho, Deus como pretexto para o ódio, Deus como agente de desunião. Mas desta evidência palmar não se ousa falar em nenhuma das múltiplas análises da questão, sejam elas de tipo político, económico, sociológico, psicológico ou utilitariamente estratégico. É como se uma espécie de temor reverencial ou a resignação ao «politicamente correcto e estabelecido» impedissem o analista de perceber algo que está presente nas malhas da rede e as converte num entramado labiríntico de que não tem havido maneira de sairmos, isto é, Deus. Se eu dissesse a um cristão ou a um muçulmano que no universo há mais de 400 mil milhões de galáxias e que cada uma delas contém mais de 400 mil milhões de estrelas, e que Deus, seja ele Alá ou o outro, não poderia ter feito isto, melhor ainda, não teria nenhum motivo para fazê-lo, responder-me-iam indignados que a Deus, seja ele Alá ou o outro, nada é impossível. Excepto, pelos vistos, diria eu, fazer a paz entre o islão e o cristianismo, e, de caminho, conciliar a mais desgraçada das espécies animais que se diz terem nascido da sua vontade (e à sua semelhança), a espécie humana, precisamente.
Não há amor nem justiça no universo físico. Tão-pouco há crueldade. Nenhum poder preside aos 400 mil milhões de galáxias e aos 400 mil milhões de estrelas existentes em cada uma. Ninguém faz nascer o Sol cada dia e a Lua cada noite, mesmo que não seja visível no céu. Postos aqui sem sabermos porquê nem para quê, tivemos de inventar tudo. Também inventámos Deus, mas esse não saiu das nossas cabeças, ficou lá dentro como factor de vida algumas vezes, como instrumento de morte quase sempre. Podemos dizer «Aqui está o arado que inventámos», não podemos dizer «Aqui está o Deus que inventou o homem que inventou o arado». A esse Deus não podemos arrancá-lo de dentro das nossas cabeças, não o podem fazer nem mesmo os próprios ateus, entre os quais me incluo. Mas ao menos discutamo-lo. Já nada adianta dizer que matar em nome de Deus é fazer de Deus um assassino. Para os que matam em nome de Deus, Deus não é só o juiz que os absolverá, é o Pai poderoso que dentro das suas cabeças juntou antes a lenha para o auto-de-fé e agora prepara e ordena colocar a bomba. Discutamos essa invenção, resolvamos esse problema, reconheçamos ao menos que ele existe. Antes que nos tornemos todos loucos. E daí, quem sabe? Talvez fosse a maneira de não continuarmos a matar-nos uns aos outros.
José Saramago, O CADERNO

17 de Outubro

• O poeta António Ramos Rosa nasceu a 17 de Outubro de 1924.

• No mesmo dia do ano de 1917, nasceu o camilianista Alexandre Cabral.

domingo, 16 de outubro de 2011

David Russell Mauro Giuliani Rossiniana 3 LIVE Part I

Dia 16 [Outubro de 2008]

Federico Mayor Zaragoza

Começa a Feira do Livro de Frankfurt: reunidas ali, as grandes indústrias do mundo do livro anunciam maus tempos para este objecto, de que tanto vivemos no passado e a que tanto ainda continuaremos a dever. Dizia que estão ali os grandes editores, mas há um número sem fim de pequenas editoras que não podem viajar, que não dispõem dos escaparates das outras e que, sem embargo, estão dificultando que se cumpra o prazo fatal de dez anos para que se acabe o livro em papel e se imponha o digital. Como será o futuro? Não sei. Enquanto não chega esse dia, que para os habitantes da Galáxia Gutemberg será duro, deixo aqui uma breve homenagem às pequenas editoras, a Ânfora, de Espanha, por exemplo, que publica por estes dias um livro do meu amigo Federico Mayor Zaragoza, esse homem que quis que a UNESCO fosse algo mais que uma sigla ou um lugar de prestígio, isto é, um foro de solução de problemas, usando a cultura e a educação como ingredientes fundamentais, senão únicos. Prologuei o livro de Mayor Zaragoza chamado En pie de paz, um voto mais que um título, e hoje trago-o aqui a este blog como modesta parcela a juntar a essa cifra de quantos se esforçam por melhorar a vida das pessoas. Das anónimas pessoas que são a carne do planeta.
En pie de paz
Federico Mayor Zaragoza traduz em poemas as dores da sua consciência. Não é, obviamente, o único poeta a proceder assim, mas a diferença, a meu ver fundamental, está no facto de eles, esses poemas, praticamente sem excepção, constituírem um apelo à consciência do mundo, por uma vez sem as ilusões de um certo optimismo quase sistemático que parecia ser o seu. Falar de consciência do mundo poderia ser facilmente entendido como mais uma vaguidade a juntar àquelas que nos últimos tempos têm vindo a infectar o discurso ideológico de alguns sectores do chamado pensamento de esquerda. Não é esse o caso. Federico Mayor Zaragoza conhece a humanidade e o mundo como poucos, não é um volúvel turista das ideias, desses que dedicam o melhor da sua atenção a saber de que lado sopra o vento e, logo, a acertar os rumos sempre que o considerem conveniente. Quando afirmo que Federico Mayor apela nos seus poemas à consciência do mundo, isso quer dizer que é às pessoas, a todas e a cada uma, que se dirige, à gente que anda por aí, perplexa, desorientada, aturdida, no meio de mensagens intencionalmente contraditórias, procurando não respirar uma atmosfera em que a mentira organizada passou a competir com o simples oxigénio e o simples azoto.
Alguns dirão que a poesia de Federico Mayor Zaragoza se vem alimentando do inesgotável baú das boas intenções. Pessoalmente, não estou de acordo. Federico Mayor alimenta-se, sim, poética e vitalmente, de outro baú, esse que guarda o tesouro da sua inesgotável e extraordinária bondade. Os seus poemas, mais elaborados do que aparentam na sua simplicidade formal, são a expressão de uma personalidade exemplar que não se desligou da massa vivente, que a ela pertence pelo sentimento e pela razão, esses dois atributos humanos que em Federico atingem um nível superior. Devemos a este homem, a este poeta, a este cidadão, muito mais do que imaginamos.
José Saramago, O CADERNO