quinta-feira, 16 de maio de 2013

16 – Maio (quarta). [1990]

E hoje era dia de ir ao dentista para uma consulta marcada há um mês. Como o outro se aposentou, mudei-me para este a conselho da Cecília. Consulta para as 15 e 40, assim mesmo marcado com um rigor de caminhos-de-ferro. Às 15 e 30 lá estávamos eu e a Regina, para a hipótese do embaraço de trânsito a atrasar. Não houve embaraço e pusemo-nos à espera, a hora marcada fora-se desmarcando porque o senhor doutor viera mais tarde, havia mais gente antes de nós e havia jornais e revistas para alimentar a paciência. Finalmente, hora e meia depois chegou a nossa vez. Mas eis que entretanto chegara uma senhora não sujeita ao horário da plebe e a empregada pede-nos só mais um minutinho, que o problema era apenas um sumário arranjo da prótese. Não era arranjo de prótese, eram arranjos com o senhor doutor. E em face disso, anulámos a consulta e levantámos ferro. A empregada consternada, como era do seu dever, lamentou-nos a decisão porque «estava a acabar». Levantámos ferro à mesma porque a democracia é para se cumprir e nós somos democratas. E agora há que encontrar outro artífice para as nossas melindrosas dentaduras. A Regina vai arranjar. É um inferno resolver qualquer merdícula nesta babilónia. E quando se supõe resolvida, há que recomeçar as buscas como nas regras do trânsito que depois de enfim sabidas são logo alteradas. E isto não me faz bem aos nervos, que são muito delicados. E para os recompor na ordem, o melhor é rogar pragas. É o que faço, enquanto translado o meu assento para o meu sofá.
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Ontem a Lourdes Belchior enviou-me, pela Lídia Jorge uma crítica à tradução francesa de Aparição. É uma crítica amável, que me pôs um sorriso na alma. Sobretudo porque o crítico lamentava que tão tarde aparecesse em França este livro de um très grand écrivain. Descontada a amabilidade, fica ainda com que contentar-me. Sobretudo por ser ainda legível este livro já longevo com os seus trinta anos. A menos que por isso mesmo se respeite e o respeito se acumule com a amabilidade, sendo-me pois cortada uma porção maior no meu contentamento.

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