Acordei
bem disposto.
Pareceu-me
um dia diferente. Mais bonito, mais perfumado.
Abri
a janela.
Também
o sol me pareceu diferente. Mais cálido, mais acariciador.
Saí.
Também
os campos me pareceram diferentes. O ar mais leve, a água mais límpida, as
flores mais belas, os pássaros mais alegres.
De
repente, lembrei-me:
– 25
de Abril!
O
sol, as flores, os pássaros, celebravam o 25 de Abril!
«Se
vós me não aclamardes, as pedras o farão.»[1]
Esta frase transporta-nos para o relato, feito por S. Lucas, da entrada
triunfal de Jesus Cristo em Jerusalém. Também nesse dia raiou sobre a Judeia
uma aurora diferente. Uma alvorada messiânica, carregada de promessas.
Principiou por ser um rumor longínquo, ainda indefinido, mas que a pouco e pouco
foi ganhando forma, crescendo no firmamento e no coração dos homens. Aleluia!
Viva o Messias! Bendito o que vem, em nome de David!
Depois
dessa, outras auroras redentoras raiaram sobre a terra. Estou a lembrar-me da
Implantação da República, em 5 de Outubro de 1910, andava o meu pai na tropa.
Nesse tempo das alpergatas de barro, a notícia, difundida de boca em boca,
levou dois dias a chegar a Montalegre.
Estou
a lembrar-me da madrugada do 25 de Abril de 1974, tinha eu meio século. Desta
feita, todos nós pudemos seguir, de ouvido colado ao rádio doméstico, esse
rumor impreciso, por vezes contraditório, que a pouco e pouco se foi tornando
mais nítido, mais perceptível, mais forte, mais alegre, até ao grande estrondo
duma grande queda. Era o deus de pés de barro que ruía. Era a Ditadura que
baqueava. Barroso podia, finalmente, abrir as janelas e deixar entrar o sol.
Durante
a Ditadura, Barroso foi uma casa ensombrada por fantasmas que se compraziam em
chupar-nos o sangue e a alegria de viver, em difundir o medo, a escravidão, o
sofrimento. Uma porca miséria, como dizem os italianos. Uma tristeza, como
diria mestre Saias, que era homem de sínteses.
Quando
ouço alguém a maldizer o 25 de Abril e a suspirar por Salazar, eu, que sempre
fui um homem pacífico, sinto ganas de lhe deitar a mão aos colarinhos, suspendê-lo,
esganá-lo. Como é que ainda há gente tão estúpida, tão cega, tão fanática?
É
preciso que todos aqueles que hoje usufruem das estradas, do ensino secundário,
do hospital, dos centros de saúde, dos quartéis de bombeiros, dos lares de
terceira idade, dos grupos culturais, da água ao domicílio, do saneamento
básico, dos subsídios, da abertura das fronteiras, do Congresso de Vilar de
Perdizes, da Feira do Fumeiro, da Imprensa Regional, de Eleições Livres, da
liberdade de pensamento, do respeito pelos direitos humanos, saibam que tudo
isso são conquistas de Abril. Daí a obrigação de o aclamarem.
E,
«se vós o não aclamardes, as pedras o farão»…
Quanto
aos que ainda suspiram por Salazar, quero dar-lhes o exemplo da Maria Rosa. A
Maria Rosa era mãe do presidente da Junta, salazarista convicto e militante. A
Maria Rosa sentia-se na obrigação de seguir e defender a política do filho. Mas
reconhecia, honestamente, que as coisas iam de mal a pior. E em conversas com a
minha mãe, da qual era prima e amiga, rematava sempre os seus queixumes com
estas sensatas palavras: «Enquanto Salazar, esse cabeçudo, não morrer, isto não
endireita… Mas olha que isto não se diz, ouviste?»
Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS II
– Crónicas de Barroso (p. 53 e s.)
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