terça-feira, 31 de maio de 2011

Troca de posições

Vital Moreira - 31-05-2011
Aparentemente, o PSD quer abrir um triste precedente, retrocedendo numa questão-chave para a liberdade individual

A frase de Paulo Portas, há dias, segundo a qual o CDS se encontra agora "mais à esquerda do que o PSD", nunca poderia ter sido proferida até agora sem ser tomada como simples boutade política. O que a tornou inesperadamente credível não foi nenhuma deslocação do primeiro para a esquerda, mas sim uma notória deriva do segundo para a direita. Quais são as implicações desta transfiguração política?
Do projeto de social-democracia nórdica que alegadamente Sá Carneiro sonhava para Portugal só restam hoje "resquícios", como reconheceu o próprio Passos Coelho numa recente entrevista. Começou aliás cedo o distanciamento do PSD em relação ao modelo de que reivindicou o nome, sem nunca ter feitio jus a ele. Todavia, ao longo das três primeiras décadas de regime constitucional, se o PSD sempre contestou o excessivo intervencionismo económico do Estado, nunca porém se demarcou do modelo de Estado social garantido na Constituição de 1976, baseado num elevado grau de proteção dos direitos laborais e na responsabilidade pública pela efetivação do direito à saúde, à educação e à segurança social. Mesmo sem ter tomado nenhuma iniciativa relevante nessa área, tendo-se mesmo oposto a algumas (como o rendimento mínimo garantido), a verdade é que posteriormente, uma vez no Governo, o PSD absteve-se em geral de as revogar ou reformular drasticamente.
Sem grande simplificação, pode dizer-se que ao longo de todos estes anos de rotativismo governativo entre o PS e o PSD (com o CDS à mistura por vezes), se o PS se conformou com as medidas de privatização e de liberalização económica antes tomadas pelo PSD, este por sua vez foi-se conformando com as iniciativas daquele no plano social, como a criação do SNS, a instituição do sistema geral de segurança social, o alargamento e expansão do serviço público de educação, entre outras. Por isso, se a Constituição foi sendo profundamente reconvertida no que respeita à ordem económica - que sofreu uma verdadeira metamorfose, como escrevi noutro lugar -, já tal não ocorreu nem no capítulo dos direitos laborais nem na "constituição social".
Tudo mudou com a chegada da Passos Coelho à liderança do PSD. Embora os sinais viessem de trás, designadamente desde a proposta de Marques Mendes, há uns seis anos, de privatização substancial do sistema de pensões, foi com o atual líder que apareceu uma agenda caracterizadamente neoliberal na esfera social (e não somente na esfera económica). Desde o polémico projeto de revisão constitucional de há um ano até ao presente programa eleitoral em vista das eleições de 5 de Junho, tornaram-se claros os contornos da ofensiva "laranja" contra o "acquis social" pós-revolução de 1975. Dela fazem parte, entre outros aspetos, o estabelecimento de um teto nas contribuições para o sistema público de pensões, desviando o resto para fundos de pensões privados, a redução do SNS a um programa básico de cuidados de saúde, lançando o resto no mercado, ao mesmo tempo que se propõe a chamada liberdade de opção entre o sistema público e o privado, à custa do orçamento, o mesmo se propondo para o ensino, que seria rapidamente privatizado a expensas do Estado.
Quando o líder do PSD se permite dizer, aliás sem receio de contestação, que o seu programa eleitoral é bem mais radical do que o programa da troika, ele não quer referir-se somente às medidas de ajustamento orçamental e financeiro mas também ao programa de privatizações e, bem entendido, à referida reconfiguração dos três pilares básicos do Estado social que são a educação, a saúde e a segurança social. O PSD conseguiu o que desde o verão de 2010 era o seu objetivo prioritário, ou seja, fazer tudo para forçar o pedido de ajuda externa, para depois utilizar as condições políticas daquela para alavancar uma ofensiva em forma contra o nosso Estado social. Antes de combater a crise orçamental, o PSD está sobretudo interessado em servir-se dela para acionar o seu próprio programa económico, social e ideológico.
Como se não bastasse o fundamentalismo liberal em matéria económica e social, o líder do PSD resolveu inesperadamente juntar uma dose de reacionarismo ideológico, ao ensaiar um despudorado flirt com a cruzada da direita católica contra a despenalização do aborto. Este deprimente episódio não revela somente oportunismo na disputa desse eleitorado ao CDS, antes mostra também que para tentar ganhar mais uns votos (ainda que provavelmente à custa da perda de outros...) o PSD está disponível para reabrir a "guerra do aborto" entre nós. Não se conhece lá fora nenhum caso de retrocesso nesta matéria. Mesmo quando não foi a própria direita a despenalizar o aborto (como em França), ela respeitou em geral como irreversível essa mudança, quando da responsabilidade da esquerda. Aparentemente, o PSD quer assumir a responsabilidade de abrir um triste precedente entre nós, retrocedendo numa questão-chave para a liberdade individual. E que se seguirá depois: rever a lei do divórcio, questionar a lei do casamento de pessoas do mesmo sexo, repensar a despenalização das drogas leves?!
Ao ultrapassar o CDS pela direita, o qual adotou posições menos aventureiras e mais prudentes em qualquer dos referidos domínios, o PSD não questiona somente a dimensão social e o liberalismo moderado da sua herança política e doutrinária, por mais indefinida que esta fosse. Reposiciona-se também no nosso espectro político-partidário, baralhando as tradicionais fidelidades ideológicas e sociológicas. Decididamente, o nosso sistema político não precisava de mais este fator de imprevisibilidade e de instabilidade... 

Professor universitário. Deputado ao Parlamento Europeu pelo Partido Socialista (vital.moreira@ci.uc.pt); a pedido do autor, este artigo respeita as normas do Acordo Ortográfico

Imagem do dia

Agraulis vanillae 1.jpg
Borboleta da espécie Agraulis vanillae.

Cadernos de Lanzarote (Diário de 1993)

31 de Maio
De comboio ao Porto. Na carruagem deparámos com Chico Buarque, que ali vai dar um recital. As nossas datas, sabemo-lo logo, estarão desencontradas, não será possível ir ouvi-lo. Mas, à noite, o Chico, acompanhado do Sérgio Godinho, aparece-me no Palácio de Cristal, onde a Feira agora se instalou, para dar-me um abraço. Nada o obrigava, não lhe faltariam coisas mais interessantes para fazer, e foi ali para me abraçar...

31 de maio de 1961

É criada a República da África do Sul.

“Tablóides”

Maio de 76
• Um crítico ilustre, grande poeta e meu admirado amigo, que fora o primeiro a saudar em carta, com entusiasmo, a Páscoa Feliz, exprobou-me num artigo de jornal, anos depois, o meu (frequente?) recurso ao «fantástico», chegando a negar que Uma Aventura Inquietante fosse romance. Que seria então? Não no-lo disse ele. O leitor comum, para quem corno sempre o escrevi, percebeu logo que era romance, e assim o tem lido. Outro crítico diria em conversa privada que eu «estava a mangar com a tropa»: assim com justiça se autoc1assificando. No entanto, um docente de Matemáticas da Universidade do Porto dir-me-ia em carta que o relera muitas vezes, nele achando sempre novos temas filosóficos de interesse. Para a crítica literária, como se vê, não há como os matemáticos!
     Poderia eu perguntar agora: Qual é o papel do «fantástico» na literatura, dentro e fora do romance? a Bíblia, As Mil e Uma Noites, a Ilíada, a Odisseia, a Eneida, Os Lusíadas, o Quixote, a Utopia (de Th. More), o Gulliver, o Robinson Crusoé, o Diabo Coxo, os contos tradicionais em geral, Hoffmann, os Grimm, Andersen, Edgar Poe, a Peau de Chagrin, O Retrato de Dorian Gray, a inigualável Alice in Wonderland (que criou uma linguagem nova), Nodier, Gautier, Nerval, Júlio Veme, Gogol, Lautréamont, Jarry, Kafka, Beckett, Ionesco, e mil obras outras e outros imortais, têm cultivado a rodos o «fantástico»: só eu, obscuro português do século vinte, não posso nem tocá-lo! (Dar-me-ão licença de ir ouvir Tristão e Isolda a S. Carlos?)
     O curioso do caso é que a Aventura se inspira do banal achado (meu, real!) de uma carteira vazia na lama e neve de um boulevard, e não há nela qualquer instância do tal «fantástico», transcendente ou sobrenatural!
     São eles (se vale a pena falar disso), os reverendos críticos de ofício, que por vezes parecem viver num outro mundo – o do Inexistente!
• Alguém nos apresentou no grupo o Sr. Botelho de Sousa. O equatoriano Aguinaldo espantou-se: «Que nombres más raros tienen los portugueses!»
     «Que é que este tem de extraordinário?», tornei eu, arrenegado.
     «Botella de sosa!» (garrafa de soda) e escondeu o riso na palma da mão.
     E ainda dizem «línguas irmãs»!

segunda-feira, 30 de maio de 2011

Guincho-comum (Larus ridibundus)

Guincho-comum

“Tablóides”

30 de Maio de 1976
• Belo: – Ouço dizer que as Três Marias se tresmalharam?
  Melo: – Tresmanas ou Sesmarias?
  Telo: – Nem uma coisa nem outra: CISMarias!
• Acabado o concerto, um dos presentes teve um comentário que causou sensação: «Uma coisa que sempre me intrigou a respeito da música espanhola – quer ela seja obra de russos, de alemães, húngaros, franceses, ou mesmo de espanhóis! – é que ela me parece sempre uma imitação da música espanhola!»

OS PARDAIS

Um dia destes de manhã, ao entrar no quarto de banho, ouvi um barulho esquisito. Como ventava e chovia que tinha diabo, atribui aquilo ao refluxo do vento na chaminé do respiro. «Que temporal vai lá fora!», pensei, arrepiado por ter de sair à rua. Como de facto saí.
Voltei ao meio-dia. O barulho continuava. «Home! Não está tanto vento como isso», estranhei.
De repente, heureca! (Estando eu no quarto de banho, tinha, por força, de plagiar Arquimedes). Heureca: um pássaro...
Isso mesmo: um rufiar de asas. Por ictos. Primeiro vigoroso, depois num delíquio de esgotamento.
«Um pardal», conclui. Isto porque, frequentemente, os ouço chilrear no telhado. Nada mais fácil do que um deles ter-se empoleirado no caireI da chaminé e caído no buraco.
«Arranjaste-a bonita. Agora desenrasca-te.» E fui à minha vida.
Passei a tarde num monólogo dialéctico: «Devias ter libertado o pardal.» «Como?» «Levantavas a tampa do respiro.» «Boa-te-vai. E eu ia mesmo rebentar a parede por causa dum pardal.» «Não fazias mais do que a tua obrigação.» «Deixa-te de bucolismos. Que diferença faz ao mundo um pardal a mais ou a menos?» «Mete a mão na consciência e tem vergonha.»
Das centenas, se não milhares de pardais que degolei na minha infância. De súcia com o Facaia, meu vizinho de porta e sócio na malandrice. Por noites de Inverno. Daquelas noites de breu, só possíveis nas nossas aldeias de há cinquenta anos. Nesses remotos tempos, pelas seis horas era noite cerrada. Pelas sete, os pardais estavam no primeiro sono, deliciosamente aninhados no palhuço dos combarros. Nós conhecíamos-lhes o poiso. E, depois de ceia, munidos, um de lareiro, outro de lampião, capa e saco, saíamos à caça.
O da luz, conjugando capa e lanterna, desenhava a claridade duma janela na parede. O outro começava a varejar o beiral.
Acordadas em sobressalto, as aves viam o clarão e precipitavam-se para ele. Batiam de cabeça na pedra e tombavam como tordos, que o mesmo é dizer, como pardais. Era só arrebanhar neles para o saco. Rapidamente, porque muitos estavam apenas atordoados e, se lhe déssemos tempo, recuperavam os sentidos e punham-se na alheta.
Saco cheio, dividíamos o espólio.
Saco cheio, é um exagero. Nunca me lembro de o termos enchido. Sem embargo, fizemos caçadas suficientes para encher o papo a toda a malta. Arroz de pardais. Prato muito apreciado nesses remotos tempos do arroz de quinze.
Agora sinto remorsos.
O garoto que eu algum dia já fui, ri-se do velho que hoje sou. «Ó barbas-de-farelo? E os porcos? Desses não tens tu pena. Bem gostas de untar o queixo, pelas matanças. Pois o princípio é o mesmo. Primeiro engordam-se. Depois comem-se. Aos cevados, deitamos-lhes nós o grão. Os pardais, roubam-no eles nas searas e nas eiras. Métodos diferentes, resultados idênticos.» «Com uma diferença. Os porcos não voam, não cantam, não alegram a paisagem.» «Mas enfeitam o prato e compõem o estômago.» «Ai sim? E as andorinhas? Porque não comias tu andorinhas?» «Porque era pecado. As andorinhas são aves sagradas. Os pardais uns profanas.» «E tu um alma de cântaro, um selvagem, um predador sem escrúpulos» «E tu um velho sentimentalão.» «Acabou a Conversa. Concordes ou não, vou libertar o pássaro.»
E dirigi-me ao quarto de banho. Mas o barulho desaparecera. Passei um toco de vassoura pela grelha, em jeito de quem toca xilofone. Nada. «Deve ter morrido.» Fiquei capaz de morrer também.
De noite tive pesadelos.
A janela do meu quarto dá para a eira, o palheiro, o canastro, as árvores da horta. É para mim uma bênção acordar com o sol na vidraça e a algazarra dos pardais lá fora. Fico bem disposto para o resto do dia.
Pois bem. Sonhei que os pardais, zangados por eu lhes não ter salvo o companheiro, se tinham ido embora.
Acordei com as pálpebras molhadas. Devo ter chorado.
Eis senão quando, ao entrar no quarto de banho, oiço de novo o rufio das asas. «Aleluia». Corri por uma chave de fendas. Mas a grelha não estava presa por parafusos, como eu julgara. Eram pregos. Rebentei com eles e abri uma brecha. «Agora é contigo. Salta quando quiseres.»
Saltou imediatamente, meio aturdido, a dar com a cabeça pelas paredes. «Calma, rapaz. Há muito que eu deixei de comer pardais.» «Bem me fio eu...» «E se eu te der uma prova de amizade e recta intenção?» «Venha ela.»
Fui buscar arroz e migalhas.
«Ah! Já sei. O que tu queres é engordar-me primeiro e comeres-me depois. Truque velho...» «Não sejas parvo. O que eu quero é matar-te a fome. Há três dias sem comer, nem forças tens para voar.» «Parece-te. Abre a janela e verás se eu voo ou não.» «Desculpa, mas primeiro tens de matar o bicho. Ninguém entra em minha casa que não tome um quodore. Portanto.»
Depus o prato com as migalhas e o arroz no chão e retirei-me.
Passados momentos entreabri uma frincha da porta. O lafrau debicava sem cerimónias. «Ah! Assim, sim.»
Entrementes rompia a «aurora de róseos dedos» tão querida de Homero. Dei tempo a que o hóspede se banqueteasse e regressei. «Mais uns grãozinhos?» «Obrigado. Estou composto.» «Nesse caso podes ir.»
Abri-lhe a janela. Saltou de jacto, num chilreio de alegria: «Adeus amigo. Eu te perdoo pelos antepassados que me devoraste. Goza o resto dos teus dias de consciência tranquila.»
Imediatamente uma revoada de familiares, amigos e conhecidos lhe veio ao encontro: «Viva! Viva o felizardo que deu um pontapé na morte. Viva o nosso herói!»
Passa do meio-dia.
A festa dos pardais continua. São às centenas, na eira, no palheiro, no canastro, na horta.
Gosto de os ouvir. Felizes, gárrulos, alegres como crianças.
PROLEGÓMENOS – Crónicas de Barroso (p. 96 e ss.)

Manuel I de Portugal

ManuelI-P.jpgNasceu em 1469 - Rei Manuel I de Portugal (m. 1521).

Cadernos de Lanzarote (Diário de 1993)

30 de Maio
Feira do Livro. O mesmo assédio, a mesma amizade.

domingo, 29 de maio de 2011

Imagem do dia

Amundsen-Scott marsstation ray h edit.jpg
Aurora austral vista da Antártica.

RELATIVIDADE

     O que hoje tenho
é nada para mim.
Mas ontem, sim:
era Desejo.

     O que possuo agora
é zero, é saciedade.
Mas amanhã terá valor:
será saudade.

     O Presente é anódino e banal:
os anseios infinitos
não podem encontrar nele
satisfação integral.

     Nunca me sinto feliz
saciando os apetites,
pois o Presente cerceia
os ideais sem limites.

     Só no Passado e Futuro
viveria plenamente,
mas um foi, o outro será
para mim Tempo Presente!...

ESTRELAS CADENTES

Pisco-de-peito-ruivo (Erithacus rubecula)

Pisco-de-peito-ruivo

24 - José Rodrigues Miguéis / José Saramago

Lisboa, 7 de Junho de 1960

Meu querido Amigo,
As paredes da sua casa, aí, devem tê-las ouvido boas a meu respeito! E com carradas da razão. Que silêncio é este? que se passa nos Estúdios COR? que é feito do Saramago, que perdeu o pio? E vai-se procurar os motivos e que se encontra? Nada, ou antes, mil e uma pequenininhas coisas, todas igualmente significantes, mas que juntas fazem uma rede capaz de amansar Hérculcs –  o dos doze trabalhos.
Se realmente vem em meados deste mês (e oxalá venha, que já tarda) esta carta vai encontrá-lo em preparativos de partida. Não importa. Não vou deixar escapar esta oportunidade de vestir a pele de crítico, a mais sovada e dura pele da Criação.
Que é, cá no meu fraco entender, a Escola do Paraíso? Um prodigioso inventário, já o disse. Todos vão procurar «o» romance no seu livro – e não «o» vão encontrar. (Como «o» não encontram na Recherche du Temps Perdu.) E esse será o seu grande «crime». Porque nada mais atrapalha as pessoas de índole classificadora (e sabemos bem quanto os lusos são dessas tais) que não saberem onde meter a ficha a que sempre reduzem as obras de arte. Por mim, confesso que até um terço do livro me senti dérouté: a todo o momento me parecia ter um fio condutor na manhã, e logo, ele se partia, substituído imediatamente por outro que também não levava longe. E a minha franca admiração por si perguntava, desolada: «Aonde quer chegar este homem? isto é partida que se faça ao leitor de boa fé (ou má) que compre o 'romance'?» Até que percebi, ou melhor, até que encontrei a «minha» explicação: a Escola é uma exploração da memória, levada telescopicamente ao infinito, desdobrando-se e repartindo-se em todas direcções, passando e repassando infatigável, até restituir em cor e sabor, em som, facto e olfacto (todos os cinco sentidos) uma época, um estilo de vida, um conjunto social que não se extinguiram de todo, apesar dos cinquenta anos decorridos, de duas guerras, vinte revoluções e trinta-anos-de-cultura.
Quando acertei a minha rota pela sua agulha (ou o que eu suponho ter sido a «sua» agulha), o constrangimento e o embaraço sumiram-se, e eu desci consigo à investigação minuciosa e apaixonada do tempo da «sua» infância. E embora uma adolescência nos separe (eu tenho 37 anos), descobri na minha memória inúmeros ecos da sua. Eu conheci algumas pessoas «assim», houve ruas, jardins e quintais como os seus na minha infância. Em cada página me acontecia um sobressalto de ressurreição, e momentos houve em que o autor do livro (não sorria, por favor!) era eu e ninguém mais... Cheguei ao fim como quem termina uma viagem que não devia acabar, porque as terras da memória estão sempre por descobrir, porque o «inventário» nunca está terminado. E caso curioso: não obstante tratar-se de um livro grande, ficou-me um gosto de frustração, como se me sentisse roubado de uma última palavra que não chegou a ser dita. Mas como dizê-la? Encontrar essa palavra (sinto que me estou a deixar arrastar para uma filosofância pretensiosa) era encontrar a chave que permitisse ao homem confundir passado e presente, amalgamá-los, tomá-los um todo – e eu não sei como o homem seria então, embora sinta que estaria perto, muito perto, dessa coisa a que se costuma dar o nome de felicidade... Quem sabe se a felicidade não seria exactamente esse pôr o homem a viver, no seu dia de hoje, a sua vida toda, integrar a memória total na parcela de homem que em cada dia somos? Ou talvez não fosse felicidade, talvez fosse um inferno – a irremediável saudade...
(Chi! Aonde eu vim parar, manes da crítica! Com um pouco mais imaginava-me a discretear numa qualquer das nossas profundas páginas de «artes e letras», mestre e pontífice, mentor e orientador... Calma, amigo Saramago! Volte à sua chinela, fale do que a sua mão de artífice conhece!)
Seria agora a altura do estilo, da linguagem. Mas, que se pode dizer ainda do seu estilo que não esteja dito já? Somente que me pareceu mais vivo e mais alerta que nunca, lira de mil cordas, que vai do riso à lágrima, da ternura à ironia, com o ar (aparente) de quem respira sem esforço, de árvore que cresce «ali» porque «ali» está, confiante nas raízes que a sustenta de terra e no sol que a sustenta de luz.
Aqui tem o que penso do seu livro, que tive a honra de ler, em primeiríssima mão. É franco, é sincero quanto aqui está, e nem outra coisa saberia escrever. Como disse numa carta anterior, aceite a minha opinião pelo que vale – a de um simples leitor, talvez apenas um pouco mais experiente que o comum. E disse.
Desçamos agora das alturas e resumamos as questões práticas:
1.ª – A Escola ainda não entrou na tipografia. O Correia (como já tive ocasião de dizer) tem andado desvairado de trabalho, não lhe foi possível tratar dos problemas «técnicos» do livro. Em meados deste mês, contudo, estará mais folgado, então irão ao mesmo tempo Escola e Passageiro (que é nosso, e bem nosso). Setembro e Novembro parece-me boa altura para lançar os dois livros.
2.ª – As 1001 Noites têm uma urgência danada. De tal modo que se o meu Amigo não lhe puder pegar agora, terei eu de fazer a tradução, o que não convinha nada, até porque este volume já trará duas histórias traduzidas por mim. Creia que é com alarme que lhe falo nisto.
Ansioso por o ver cá, abraça-o em nome pessoal e colectivo o seu

José Saramago

P.S. Releio o que escrevi e vejo que não disse metade do que teria para dizer. Em ocasiões destas é que tenho pena de não dispor de uma ou duas colunas de jornal... Paciência!

Cadernos de Lanzarote (Diário de 1993)

29 de Maio
De automóvel a Lisboa. Depois do almoço, Feira do Livro. Recebido como o filho pródigo pelo pessoal da Caminho (Zeferino, Vítor Branco, Esmeralda, Rita, Paula). Mais de uma hora a autografar ininterruptamente, apenas levantando a cabeça para ver a cara do leitor e perguntar-lhe o nome.

conta-corrente – nova série I (1989)

29 - Maio (segunda). Quando o Gilo vai ao Algarve passar fins de semana numa casa que a Helena lá tem, telefona a dizer que chegou e depois, que regressou. Ontem esperávamos o telefonema do regresso. Era já noite e, não havendo notícias, telefonou a Regina. Responde a Helena. Tinham tido um desastre perto de Setúbal. Viemos logo para Lisboa. Foi um desastre espectacular em que por espantoso acaso a morte não compareceu. Chovia forte, Gilo em velocidade desliza contra a separadora das duas pistas, é arremessado contra a do lado oposto, resvala por uma ravina, o carro rola sobre si e ficou em sucata. Gilo ficou com fractura da clavícula, vértebras amassadas, corte na cabeça. Helena com contusões e hematomas em todo o corpo. Gilo de cama um mês. E eu, pelo pânico do que devia ter acontecido, fico convulsionado, mas a Regina irrita-se porque nada de muito grave acontecera. Simplesmente eu sinto que podia ter acontecido. Assim a vida se nos equilibra num susto constante que é decerto a sua verdade de ser. Até se consumar no desequilíbrio definitivo que é a verdade da morte.

sábado, 28 de maio de 2011

Flor silvestre

1922 - Nascimento de José Craveirinha (Faleceu a 5 de Fevereiro de 2003)


A 28 de Maio de 1922, nasce o poeta moçambicano José Craveirinha. Foi-lhe atribuído, em 1991, o Prémio Camões. Da sua obra destacam-se Xigubo (1964), Cântico a um Dio de Catrane (1966), Karingana Ua Karingana [Era uma vez] (1974), Cela 1 (1980), Maria (1988), e Haminas (1997).



GRITO NEGRO

Eu sou carvão!
E tu arrancas-me brutalmente do chão
e fazes-me tua mina, patrão.
Eu sou carvão!
E tu acendes-me, patrão,
para te servir eternamente como força motriz
mas eternamente não, patrão.
Eu sou carvão
e tenho que arder sim;
queimar tudo com a força da minha combustão.
Eu sou carvão;
tenho que arder na exploração
arder até às cinzas da maldição
arder vivo como alcatrão, meu irmão,
até não ser mais a tua mina, patrão.
Eu sou carvão.
Tenho que arder
Queimar tudo com o fogo da minha combustão.
Sim!
Eu sou o teu carvão, patrão.

conta-corrente – nova série I (1989)

28 - Maio (domingo). E eu disse-lhe:
– Só há uma dor parecida com essa, que é a dor de como.
E realmente. Ela esperava, e com razão, o prémio da APE. Foi para outro. E então sofreu duramente. Houve mesmo a lágrima desopilante e sobretudo a dúvida sobre a qualidade do seu livro. E o subsequente confronto com o livro premiado. E a imprevista impressão de que de facto era melhor. E a repassagem do seu e a conclusão de que não era. Eu também já por lã passei. Tento esclarecer-me sobre essa aniquilação de nós e não é fácil saber. Há a humilhação, o impossível entendimento das coisas, da nossa qualidade e dos outros, da obtusa incapacidade de entender porque é que nos não reconhecem o mérito que supomos e a conclusão de que foi estúpido o nosso esforço e assim. O Namora dizia à Titilde que quando passava uma semana sem vir nos jornais, ficava doente. Mas como suportar uma vida inteira sem o reconhecimento de que a nossa aposta era de ganhar e não se ganhou? E o que penso com o destino do meu Pour Toujours em França. Ainda ontem o Expresso trazia um longo artigo da Teresa Coelho sobre a massa enorme dos livros portugueses aí publicados. Muitos tinham tido o aplauso da crítica. Do meu, nem palavra. Concluir aos 73 anos que todo o esforço foi um falhanço é humilhante. Tive uma noite difícil.
*
Não gosto da escrita pedestre, de pata sólida, que marcha com estabilidade por uma estrada plana e sem possíveis imprevistos. Gosto da escrita instável, que avança em equilíbrio difícil dobre o arame, sempre em risco de se estatelar e que no momento em que vai desequilibrar-se lá recebe um toque de um complemento, de um adjuvante imprevisível que a põe outra vez na vertical e assim vai andando num equilíbrio milagroso até que chega enfim ao seu destino do ponto final. Escrita comercial ou militar. Escrita de aventureiro fora-da-lei. O primeiro sabe para onde vai. O segundo abre caminho para onde calhou abrir e depois só lhe resta ir guinando à esquerda e à direita, ao acaso dos acertos ocasionais. Porque me lembrou isto? Sei lá. Mas não sabê-lo é uma forma de não ter pata de boi. Ou assim.
*
Não, não é preciso falares. Tudo é vão e excessivo. E teríamos de falar por sobre o que se não diz porque isso é que é. Não, não precisas de falar. Basta que passes e eu te veja, basta o teu balancear aéreo, o teu mover-te frágil delicado. Só isso, o próprio movimento, o rendilhado da irrealidade com que passas devagar na minha imaginação.

Cadernos de Lanzarote (Diário de 1993)

28 de Maio
De automóvel para Badajoz. Feira do Livro, autógrafos. Conferência no auditório do ayuntamiento. Casa cheia. Uma má notícia que nos deixou preocupados: Julio Anguita teve um enfarte. É um sério golpe para a campanha de Izquierda Unida.

Ditadura militar: 28 de Maio

cesário verde
O golpe de estado decorrido a 28 de Maio de 1926 promoveu a instauração da ditadura militar em Portugal, a que a revolução de 25 de Abril de 1974 pôs fim.

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Imagem do dia

Emperor-Dragonfly-(5).jpg
Anax imperator.

conta-corrente – nova série I (1989)

27 - Maio (sábado). Ouço uma balada a todo o espaço da memória e ao fundo da rua vejo-te afastar-te no equilíbrio alado do teu andar. Vejo-te sempre de casaco de inverno, um casaco preto de tecido aveludado. Mas a emoção doce do lembrar não a posso dizer. Não é que haja aí uma impossibilidade de escrita, de transfusão do que sinto ao dizer esse sentir. É uma impossibilidade real, porque seria sempre outra coisa, mesmo que o conseguisse. Mas não é isso. E uma impossibilidade moral ou de equilíbrio sensível ou de senso, de pudor. Não se trata de ser piegas perante os outros, a quem posso não mostrar o que escrevi, mas perante o outro de mim que é adulto e é público, mesmo sem o ser, o outro vigiado por uma fiscalidade que não existe. É-se sensível até ao ridículo de nós na intimidade de nós, onde as normas do deve-ser não chegassem a chegar. Assim o intransmissível do mais oculto de nós tem que ver connosco, a pessoa normalizada, a que súbita e inconscientemente se investe de responsabilidade e é inexorável a infligir-nos o ridículo de sermos assim. É pois impossível vir até à superfície de nós, nem que seja no pensar-nos, ver-nos, antes mesmo de tentarmos a transfusão disso à escrita.
Ouço uma balada a todo o espaço da memória. É terna e dissolve-me todos os núcleos de actividade nessa ternura. E num movimento alado do teu equilíbrio ágil e difícil, afastas-te devagar para o fundo da rua. Não te vejo o rosto e vejo. Sério cerzido fino. Vejo mal a cabeleira pelos ombros. Só o movimento subtil do teu enleio no andar. E sei que tudo de ti se dissipará no ar ao dissipar-se também o último eco da balada.
conta-corrente – nova série I (1989)

O PARAÍSO PERDIDO

Quando eu era um devorador de bibliotecas, nem o Paradise Lost de Milton me escapou. E confesso que não fiquei muito entusiasmado com o poema do abstruso inglês. Nem admira. Era jovem de mais para me preocupar com a perda de qualquer paraíso, fosse a daquele donde os anjos rebeldes se precipitaram nas parafundas, fosse a daqueloutro donde Adão e Eva foram escorraçados para este vale de lágrimas.
Mas hoje, que estou velho, compreendo, final e dolorosamente, o mito dos paraísos perdidos. Compreendo, porque também perdi o meu. Paraíso da minha infância. Tempo de maravilhas. Era das descobertas. Das coisas vistas pela primeira vez, das palavras ouvidas pela vez primeira. Como eu recordo...
Teria eu quatro, cinco anos, palmo, palmo e meio, andava com as vacas num maninho sobranceiro ao rio Regavão. Nisto, chega-me aos ouvidos estrídula e polifónica orquestra de latidos, desde o fabordão, ão, ão, ão, dos mastins velhos, ao sustenido im, im, caim, dos cachorros meninos de coro e das cadelitas primas donas. Olho no sentido donde vinha o chinfrim e avisto, na linha do horizonte, numerosa matilha encarniçada atrás de coisa que eu, àquela distância, não descortinava o que fosse.
Ainda os cães latiam para além do rio, surde do bicheiro duma touça, mesmo à minha frente, aquilo que eu, na inocência dos verdes anos, julguei ser uma lebre lançada numa corrida de extrema velocidade e elegância no correr.
À noite, corri também com a notícia:
– Ó Pai, vi uma lebre!
– E era grande?
– Era! Com um rabo assim!
E estendi o braço a todo o comprimento, a exemplificar a posição e o tamanho do rabo da lebre. O meu Pai riu-se:
– Assim? – e estendia o braço dele.
– Comprido, peludo, bonito!
O Pai continuava a rir. Amuei:
– Não esteja a fazer pouco de mim...
– Rio-me porque o rabo das lebres é pequeno e arrebitado. Como o das carriças. Já viste uma carriça?
– Então não vi? Até sei o ninho duma, no muro da horta, entre as heras.
– Reparaste-lhe no rabo?
– Reparei.
– Pois o da lebre é desse tamanho, um pouco mais estreito, arrebitado para o lombo.
– Mas o da lebre que eu vi...
– Não sejas pateta. O que tu viste foi uma raposa.
Quedei sem fala, meio atónito, meio envergonhado. Uma raposa...
Ainda hoje guardo, intacta na minha retentiva, a luminosa imagem da primeira raposa da minha vida...
Muitas outras vi depois, umas reais, pelos caminhos, montes e vales deste nosso Barroso, outras metafóricas, emboscadas nas cabeças dos mestres, sempre prontas a abocanhar-me os coçados fundilhos que rompi pelos bancos escolares.
Mas com nenhuma delas me diverti tanto como com aquela que ontem me veio ao encontro.
Ontem, como toda a gente sabe, foi domingo, dia de sol e caça.
Secundum est us meus1, como diria Horácio, saí a passeio pelo caminho que de Peireses leva à Ponte Romana. Ao assomar ao Alto de Vale da Ponte, donde se avista a tal pequena maravilha arquitectónica, encontrei um podengo. Atrás do podengo vinha um meu vizinho e amigo de espingarda ao ombro. Que ia ver se matava uma lebre.
Estive para lhe pedir que deixasse a lebre em paz. Lembrando-me, porém, de que os viciados na caça, não compreendem certas idiossincrasias de certos sujeitos, despedi-me sem mais aquelas e comecei a descer para a ponte.
O eco dum tiro lá para as touças do outro lado do rio, subiu o vale. De resto, os campos pareciam desertos e silenciosos.
Espraiava eu a vista por eles quando, num poulório à minha esquerda e à distância duns vinte passos, descubro uma raposa aos grilos.
«Aos grilos não deve ser, porque não é tempo deles» – disse com os meus botões. «Talvez aos musaranhos. Ou às toupeiras. Isso mesmo. Às toupeiras, muito activas nesta época do ano».
Fosse do que fosse que a zorra andasse à cata, fazia-o com evidente prazer. Era uma raposeta nova, duns oito ou nove meses, com todo o encanto e inocência duma criança. Cirandava cá e lá, focinho rente à relva, fareja que fareja. De guinada, num airoso salto de quem mergulha, introduzia as patas dianteiras no lameiro e escavava, freneticamente. Se a manobra falhasse, recomeçava de novo. Se desse resultado, estendia-se ao comprido, a saborear o petisco entre as mãos.
Papo cheio, ou, pelo menos, composto, deitava-se, a fazer o quilo. De repente, erguia-se, dava um salto, uma cabriola, quase um passo de dança. Depois sentava-se, a palitar os dentes, a lamber o pêlo, a sacudir a samarra. Parecia uma adolescente enamorada do próprio corpo. Higiene feita, voltava ao folguedo.
Era deveras enternecedor vê-la assim descuidada, de alma e coração entregue ao prazer da vida, indiferente aos caçadores, aos cães, à minha presença. E eu especado a olhar para ela. E ela quase ao alcance da minha mão.
Ocasionalmente, ergueu os olhos, viu-me e disparou como uma seta, rectilínea, elegante, espanador do rabo na horizontal – exactamente como eu a vi, pela primeira vez, há uns bons setenta anos.
Maravilhas da nossa terra...
____________________
1 Tradução literal: «segundo é costume meu.»

Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS – Crónicas de Barroso (p. 93 e ss.)

Cadernos de Lanzarote (Diário de 1993)

27 de Maio
Terminou a «Semana» «Os Modos e os Fins» foi o tema , e terminou com um cheirinho de santidade no ar. Assustado com o que ali estava a acontecer, decidi descartar-me para o lado da ironia, falando do escândalo de ver-me «beatificado» contra vontade, que a isso me pareciam determinados Fernando Morán, que não moderou o debate, antes ajudou à missa, Luciana Stegagno Picchio e Eduardo Lourenço, magníficos de lucidez, sensibilidade e brio, cada um no seu estilo próprio, Luciana como uma flecha apontada em linha recta ao alvo, numa trajectória tensíssima, Eduardo, como sempre, gozando com as suas próprias hesitações e volteios, e subitamente, reunindo num feixe só as diversas linhas de rumo do discurso, e aí temos o pensamento ganhando uma intensidade estremecedora, quase insuportável para espíritos paisanos. Devo a todos quantos participaram na «Semana», a todos quantos trabalharam na organização, uma das alegrias mais autênticas da minha vida. Que ela me tenha sido oferecida por Espanha, só vem confirmar o meu direito à ibericidade.

quinta-feira, 26 de maio de 2011

Capela do Socorro - Vila do Conde

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Vergílio Ferreira: conta-corrente – nova série I (1989)

26 - Maio (sexta). Contei há dias que me escreveu uma rapariga do Porto. Chama-se Magda Laires. É aluna de Português e escolheu para um trabalho o meu livro Até ao Fim. Enviou-me uma foto de Coimbra na perspectiva clássica da estrada de Lisboa. E foi por trás que escreveu. Dizia-me então que os temas por ela escolhidos e que desejava desenvolver eram os da «eternidade, plenitude e absoluto». E dizia-me que tinha 16 anos. Fiquei gago. E respondi-lhe com razoável conversa. Escreve-me ela de novo mais desenvolvidamente num tom e numa escrita estranhíssima para a sua idade. Imediatamente a Regina, na sua desconfiança visceral, adiantou que era uma mistificação. Telefono à Mariberta, que está de cama com uma perna ao peito, ou seja, dependurada de um guindaste, e ela imediatamente pede à rapariga que apareça para a conversar. E ontem telefona-me a dizer que a conversou. É tudo autêntico, a miúda é excepcional, muito fina, de notas altas e com uma paixão pelos meus livros. Fiquei extasiado. E apreensivo. E pensei: vais ser infeliz.

Cadernos de Lanzarote (Diário de 1993)

26 de Maio
Enchente para a mesa-redonda de hoje: «Reivindicación deI compromiso: derechos y deberes deI escritor», sinal, talvez, de que está chegando ao fim aquela recidivante opinião, nestes últimos tempos soberana, de que os escritores só têm de estar comprometidos com a sua obra, ideia, aliás, ainda ardorosamente defendida por uma boa porção dos jovens escritores que em Fevereiro se reuniram em Mollina com uns quantos veteranos de vistas mais ou menos antiquadas nessa matéria e de que aqui resolvo deixar constância: Jorge Amado, Augusto Roa Bastos, Ana María Matute, Abel Posse, Lasse Söderberg, Tariq Ali, Wole Soyinka, Mario Benedetti, Juan Goytisolo, Edwar al-Kharrat, Juan José Arreola e quem isto está escrevendo. Sem perceberem a contradição em que caíam, esses mesmos jovens escritores achavam que a literatura é capaz de mudar o mundo, ideia essa em que não abundavam, ou frontalmente negavam, na sua grande maioria, os velhos, por sua vez divididos entre um tão radical cepticismo e a afirmação ética de um compromisso simultaneamente intelectual e cívico. Estas inquietações tornaram a vir à tona da «Semana». Moderou o debate RaúI deI Pozo e participaram Felipe Mellizo, José Luis Sampedro e Raúl Guerra Garrido. Não creio ser exagerado qualificando de entusiasta a reacção do público que enchia a sala.

Voz Interior

Livre, poeta, livre!
A noite é o teu Jardim das Oliveiras:
Ninguém te vê, nem ouve, nem pressente.
Dormem os inimigos
E os amigos.
Corre, e canta a correr, água corrente!

Purifica o teu espírito mortal
Numa decantação de melodias.
Estrema o oiro do bem das areias do mal,
O oiro que te vem de fundas galerias...

E quando a luz do sol chegar de novo,
Entrega ao desespero do teu povo
O poema de amor que lhe fizeste:
Meia dúzia de versos, que serão
Uma espécie de pão
Celeste.

quarta-feira, 25 de maio de 2011

Imploração

Um poema, Senhor!
Um nenúfar aberto neste lodo!
Ou então desça todo
O teu silêncio
Sobre o charco tranquilo!
– Um silêncio tão largo e tão pesado,
Que nenhum condenado
Possa ouvi-lo.

Alguns versos de limpa transparência
À tona da maciça podridão!
Branca e alta emoção
De purezas eternas reflectidas!
Ou então
Que o teu silêncio inteiro
Aquiete de todo o coração
Dos poetas – os sapos do atoleiro.

PENAS DO PURGATÓRIO (1954) 

“Tablóides”

25 de Maio de 1976
• A peregrina teoria (?) da esterilidade literária ou artística, como resultado ou concomitante das autênticas revoluções, poderá satisfazer os que têm as gavetas vazias (ou cheias de nuvens!), mas é gritantemente desmentida pela Revolução Francesa, mãe de todas elas, e pela Revolução de 1917, que desencadeou uma floração literária da mais fabulosa quantidade e qualidade. Até que soou a hora das restrições que sabemos!

25 de maio de 1420

O Infante D. Henrique é designado governador da Ordem de Cristo.

Cadernos de Lanzarote (Diário de 1993)

25 de Maio
Almoço com Gabriel García Márquez, que nos mandou recado, apesar de estar meio incógnito em Madrid. Quase três horas à mesa, uma conversa que parecia não querer acabar. Falou-se de tudo: das eleições espanholas, da situação social e política portuguesa, do estado do mundo, de livros e de editores, de Paz e Vargas Llosa, etc. Mercedes e Pilar estiveram de acordo em pertencer ao Departamento dos Rancores, deixando aos respectivos maridos o papel simpático e superior de quem está «acima disso». García Márquez contou um episódio divertido relacionado com a passagem a filme do seu conto «La Santa». Como se sabe, no fim da história o pai da menina morta diz-lhe que se levante e ande, e ela nem anda nem se levanta. Mas a García Márquez, que andava às voltas com o guião, não o satisfazia esse final, até que veio a encontrar a solução: no filme a menina ressuscitaria mesmo. Telefonou então ao realizador (salvo erro, Ruy Guerra) para informá-lo do que tinha decidido, e encontrou-se com um silêncio reticente, logo substituído por uma oposição firme. Que não, que não podia ser, uma coisa era fazer voar uma mulher embrulhada em adejantes lençóis, outra ressuscitar um corpo há tempos falecido, mesmo havendo já indícios milagreiros, como não cheirar mal e não ter peso. Resposta de García Márquez: «Pois é, vocês, estalinistas, não acreditam na realidade.» Outro silêncio, porém diferente, do outro lado da linha. Enfim, a voz ouviu-se: «De acordo.» E a menina ressuscitou.
Segundo dia da «Semana». Tema: «EI escritor como lector del tiempo y medidor de la Historia.» Moderou Césur Antonio Molina e participaram Angel Crespo, Carlos Reis (que hoje mesmo chegou de Portugal) e Juan Rivera. A este não o conhecia. Menos público, interesse igual. Eduardo Lourenço surpreende-se com o conhecimento que estes espanhóis mostram ter dos meus livros. Quase lhe digo que é uma boa compensação para a relativa indiferença da crítica e da ensaística portuguesa, que, ressalvadas as excepções conhecidas, não tem conseguido acertar os seus passos de dança com a minha música. Para muita gente maior e menor, a minha existência no quadro da literatura portuguesa actual continua a ser uma coisa incompreensível e custosa de roer, de modo que andam a comportar-se como se ainda alimentassem a esperança de que, por artes prestidigitativas, eu venha a desaparecer um dia destes, desfeito em pó, fumo ou nevoeiro, levando comigo os livros que escrevi e deixando tudo como estava antes.

terça-feira, 24 de maio de 2011

Rosas

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24 de Maio de 1897

Nascimento de Ferreira de Castro, escritor português (m. 1974).

Princípio

Não tenho deuses. Vivo
Desamparado.
Sonhei deuses outrora,
Mas acordei.
Agora
Os acúleos são versos,
E tacteiam apenas
A ilusão de um suporte.
Mas a inércia da morte,
O descanso da vide na ramada
A contar primaveras uma a uma,
Também me não diz nada.
A paz possível é não ter nenhuma.

PENAS DO PURGATÓRIO (1954)

O MELRO À JANELA

Setembro chegou ao fim. Eu gosto de Setembro. Da doçura da sua luz, do seu cheiro a mosto. Do seu cheiro a mosto a perfumar o ar, da doçura da sua luz reflectida nas montanhas. Montanhas recortadas no azul do céu de Setembro por uma linha tão límpida e segura como um traço de Leonardo da Vinci. Límpidas silhuetas do Gerês, da Cabreira, das Alturas, do Larouco. Ia a dizer: da Mourela. Mas já não digo. Foi invadida por uns monstros de fibrocimento ou lá o diabo que é. Lá o diabo que é, não. Coisas do diabo é que devem ser. Como se o divino artista fosse inesperadamente atacado por um espirro, a pena se lhe escapasse e fizesse aquele sarrabisco na limpidez do desenho.
De todas as serras de Barroso, a de luz mais doce e diáfana, é o Gerês.
Ontem, de viagem para aqui, desde o Penedo que vinha à procura dum recanto onde pudesse parar o carro e pascer os olhos no Gerês. Encontrei-o por alturas da Cabreira. Um recanto à primeira vista encantador. Árvores, mesas e bancos de granito, um fio de água a cantarolar numa bica. Mas ao aproximar-me da berma, recuei, horrorizado. Uma nuvem compacta de varejas, ou o diabo por elas, de súbito irritadas com a minha presença, levantara voo duma enorme e imunda lixeira e avançava para mim de trombeta ao ataque, prestes a devorar-me. Fugi espavorido a unhas de cavalo, que é como quem diz, com todos os cavalos do motor à brida larga.
Enquanto assim vinha, a cortar as curvas por dentro, avistei ao longe, ainda nos confins do horizonte, um rotundo cogumelo de fumo a crescer nos ares. Lembrei-me do adágio: «Em Setembro secam as fontes e ardem os montes.»
Afinal, não era incêndio nenhum. Era a chaminé do Caldeirão de Pera Botelho, instalado mesmo à beira da estrada, a vomitar na atmosfera rolos compactos de negros gases tóxicos, resíduo de óleos queimados, quiçá produtos de alcatrão, altamente silicóticos e cancerígenos.
Quem seria o criminoso que licenciou, se é que está licenciada, uma monstruosidade destas?
À falta de máscara antigás, acelerei de novo. E só me detive à vista da minha aldeia, em terrenos familiares. Parei de novo o carro, saí fora, fiz peito:
– Agora posso respirar à vontade, longe de gases tóxicos, longe de lixeiras fedorentas, longe da maldita poluição...
Como a gente se engana... Ainda mal tinha aventurado meia dúzia de passos, por um carreirito entre giestas, esbarrei no cadáver dum colchão esventrado, molas ferrugentas à mostra, um líquido purulento a escorrer das costuras... Ia a fugir do colchão, bati com acanela no esqueleto dum frigorífico... Ia a fugir do frigorífico, embati de peito na carcaça duma furgoneta de caixa fechada... Ia a fugir da furgoneta, enterrei-me num monturo de lixo: restos de trapos, de calçado, de trastes, de plásticos, de cacos, de porcaria...
– Meu Deus! – exclamei – Em que inferno estes selvagens estão a transformar o paraíso da minha infância...
Aturdido e nauseado, refugiei-me em casa. Abri a janela e aí fiquei, triste e meditabundo. Até que o sol se foi e a lua veio. Então fechei a janela e fui para a cama.
Pôs-se a lua, nasceu o sol, e eu a dormir. Acordei com umas pancadas esquisitas. A primeira impressão foi a de que alguém me batia à porta. Mas breve me apercebi de que aquilo não eram pancadas de quem bate à porta. Era uma espécie de morse, uma mensagem, uma confidência, uma saudação.
Entreabri a portada da janela. Quedei de boca aberta. Um melro a bater na vidraça...
– Que estará ele a fazer? – perguntei de mim para comigo – A exercitar o bico? Aos beijos na própria imagem? A querer transmitir-me um segredo: Uma declaração de amor? Ou simplesmente a chamar-me preguiçoso?
Com medo de que ele se assustasse e se fosse embora, afastei-me. Mas continuei, manhã fora, a ouvir aquela música ritmada: tau-tau; tau-tau-tau; tau.
Um melro a bater à janela... Que maravilhosa terra a nossa!
Amaldiçoados sejam aqueles que lhe colocam torres de fibrocimento no cimo das montanhas. Amaldiçoados sejam aqueles que lhe colocam chaminés poluentes à berma das estradas.
Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS – Crónicas de Barroso (p. 90 e ss.)

Cadernos de Lanzarote (Diário de 1993)

24 de Maio
Segunda-feira, começou a «Semana». O tema de hoje, directamente de Ricardo Reis, foi «Es sabia quien se contenta con el espectáculo del mundo?». Moderou Basilio Losada, meu constante amigo e tradutor, e fizeram comunicações Miguel García Posada, Javier Alfaya e Julio Manuel de la Rosa. Público muito numeroso e interessado. A conclusão só podia ser uma: não pode ser sábio quem com o espectáculo do mundo se contente. Excelentes as participações de todos. Ajudei à festa como podia e saí satisfeito. Esta gente gosta de mim.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Eventos recentes


Pôr-do-sol

Sunset 2007-1.jpg
Pôr-do-sol em Porto CovoPortugal.

Sacadura Cabral: 23 de Maio

Sacadura CabralSacadura Cabral, autor da travessia aérea do Atlântico Sul, nasceu a 23 de Maio de 1881 no distrito da Guarda.

Vergílio Ferreira - 1989

23 - Maio (terça). Ontem o Europeu trazia uma entrevista com o António Vitorino de Almeida, músico ambulante e polimorfo, figura pública de entreténs musicais, muito dado ao progresso, que dizia não haver marcha-atrás nas arrecuas dos países comunas e que pelo contrário essa aparente inversão de marcha era sinal de que o sistema se aprofundava e não de que se afundava. É um dizer bonito e exemplar, não é verdade? Em Évora ainda na Travessa do Sabugueiro, quando era ainda tempo de haver criadas e de se poder tê-las, tínhamos lá em casa uma rapariga importada de Melo a quem lá chamavam Emília Vedora. Transplantada para a cidade ou por hábitos já antigos, meteu-se com más companhias e um dia a Regina reparou que a sua zona maternal estava a tornar-se muito visível. E levou-a a um médico amigo:
Rapariga disse ele tu estás grávida.
Ela riu-se imenso com a pilhéria do médico agora grávida, o senhor doutor tem cada uma.
Não estás? Então espera.
E apertou-lhe uma mama que espirrou leite. Ela riu-se outra vez, o senhor doutor tem cada ideia.
Creio que ao parir o filho ainda negou que estivesse grávida. Tal é o processo ainda em uso entre os comunas e os seus parentes mais chegados. Poderemos condená-los por isso? Há aí alguém que se atreva a contradizer a Emília Vedara?
*
Deve ser coisa normal. Mas mesmo o muito normal tem sempre um lado estranho que o não é ou não parece. No fundo é a visceral ambição de se ser proprietário, é assim. De vez em quando há um tipo que se atira a escrever-nos. Leu um livro (ou viu um quadro ou ouviu uma música, ou) e obviamente vem-lhe a ideia de nos invadir os nossos domínios e fazer aí a sua morada. No fundo é o desejo de tomar real a irrealidade que o abalou, apropriar-se dela, ser o seu dono como os revolucionários das classes desfavorecidas. E a gente, um pouco por gratidão para quem nos reconheceu e um pouco por ideal igualitário, deixa-o entrar. Mas uma vez entrado, não mais quer ir-se embora. Está ali muito bem, instala-se no que lavrámos e cavámos como se lhe impusesse a sua reforma agrária. Se nos escreve, fica muito contente quando lhe respondemos. Mas aí, ele escreve outra vez, alargando, se possível, o paleio. E a gente diz-lhe ainda coisas por espírito de compreensão. Mas chegado aí, o invasor avança mais nos passos da conversa e parceirismo e exige que a nossa cordialidade seja conforme. A admiração ou lá o que era minguou na razão inversa do porreirismo que buscou. Porque já não há motivo para persistir. Até que, como no romantismo apaixonado, o amante perde interesse e é muito possível que se lhe cuspa em cima. Mas porque não, se o irreal foi real e o real é para isso que existe? Toda a paixão acaba normalmente num par de cornas. Toda a admiração também. É dos livros de psicologia humana que (interrompido).
*
Foi humilhado desde a infância, lutou a vida inteira e já no fim dela venceu. Mas todos aqueles que desejava humilhar por sua vez já tinham morrido.
conta-corrente – nova série I (1989)