segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

31 de Dezembro de 1977

«Vejo então que você admira Samuel Beckett!» «Adoro-o! E mais do que isso: invejo-o!» «Como assim?» «Porque ele se me afigura ser o único escritor capaz de vir a escrever a obra de ficção, teatro ou outro género, sem acção, sem plot, sem personagens, sem finalidade, e – milagre supremo – sem fazer uso de uma só palavra! A pura literatura, vamos!» 

sábado, 29 de dezembro de 2012

Último Natal


Menino Jesus, que nasces
Quando eu morro,
E trazes a paz
Que não levo,
O poema que te devo
Desde que te aninhei
No entendimento,
E nunca te paguei
A contento
Da devoção,
Mal entoado,
Aqui te fica mais uma vez
Aos pés,
Como um tição
Apagado,
Sem calor que os aqueça.
Com ele me desobrigo e desengano:
És divino, e eu sou humano,
Não há poesia em mim que te mereça.

Diário XVI

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Freixo de Numão, 27 de Dezembro de 1980

Meia-noite. Um largo, um pelourinho, a igreja matriz e duas janelas solarengas a olhar o luar regelado com olhos ensonados. O meu álbum da pátria está cheia de instantâneos assim furtivos. 

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Natal


Natal fora da casa de meu Pai,
Longe da manjedoira onde nasci.
Neve branca também, mas que não cai
Na telha vã da infância que perdi.

Filosofias sobre a eternidade;
Lareiras de salão, civilizadas;
E eu a tremer de frio e de saudade
Por memórias em mim quase apagadas...

Diário VI

domingo, 23 de dezembro de 2012

Natal


Velho Menino-Deus que me vens ver
Quando o ano passou e as dores passaram:
Sim, pedi-te o brinquedo, e queria-o ter,
Mas quando as minhas dores o desejaram...

Agora, outras quimeras me tentaram
Em reinos onde tu não tens poder...
Outras mãos mentirosas me acenaram
A chamar, a mostrar e a prometer...

Vem, apesar de tudo, se queres vir.
Vem com neve nos ombros, a sorrir
A quem nunca doiraste a solidão...

Mas o brinquedo... quebra-o no caminho.
O que eu chorei por ele! Era de arminho
E batia-lhe dentro um coração...

Diário II

Natal

Outro natal,
Outra comprida noite
De consoada
Fria,
Vazia,
Bonita só de ser imaginada.
Que fique dela, ao menos,
Mais um poema breve
Recitado
Pela neve
A cair, ao de leve,
No telhado.

TORGA, Miguel, Antologia Poética


Miguel Torga (São Martinho de Anta, Vila Real, 12/8/1907 – Coimbra, 17/1/1995)
Pseudónimo de Adolfo Correia Rocha.
Um dos mais importantes escritores portugueses do século XX, médico.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Tablóides…

E o «aventureirismo» (que palavrão, em vez de aventurismo!) é o vocábulo escolhido dos que são incapazes de qualquer aventura digna de atenção. 

domingo, 16 de dezembro de 2012

Tablóides…

A expansão da consciência por meio de drogas, uma das scies de que se nutre a mente juvenil destes dias e sob a qual se oculta a tendência autodestrutiva inerente à mesma, é o exercício típico dos que não têm consciência e procuram substituí-la por falsas e enganadoras imagens. 

sábado, 15 de dezembro de 2012

Tablóides…

O antielitismo é o recurso da horda dos que, incapazes de se distinguir por qualquer criação meritória, se encarniçam contra os que têm algo de importante a fazer ou a produzir. 

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Tablóides…

«Tem havido ultimamente menos funerais importantes, não acha?» «Bom, é que já nos vão faltando os grandes homens.»    

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Tablóides…

Os erros (irreparáveis?) do passado podem talvez explicar, mas não podem legitimar, os erros e desvarios do presente. Que eles não nos sirvam, pois, de pretexto ou escusa! 

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Tablóides…

Estes povos irmãos, ou pelo menos primos co-irmãos que somos – Galegos, Portugueses, Asturianos, Leoneses, velhos e novos Castelhanos (Cântabros), Andaluzes, Navarros, Aragoneses, Catalães, e até Bascos (os mais «puros» herdeiros da antiguidade, e únicos fiéis à língua original); todos circum-mediterrâneos, neolatinos ou Celtiberos –, conhecemos em tempos remotos, durante séculos, certa unidade na relativa liberdade e variedade, quase tendo chegado a realizar o milagre do idioma comum: primeiro, sob o Império (o «jugo»!) Romano, depois o visigótico, centrado em Toledo, e, por fim, sob o tolerante domínio maometano, em boa medida responsável da fragmentação regional. Aprendemos talvez assim a inestimável lição democratizante do que é viver de costas para, ou ignorando, o Poder Central, supostamente ilimitado, mas debilitado pelas distâncias e pela sua origem alógena. Só a Reconquista chamada «neogótica» ou «cristã», feudalizante e, portanto, divisionária, viria agravar, cultivar ou inventar os nacionalismos regionais: mas ainda aqui, quase sempre sob a «monarquia mitigada». Lembre-se que, ainda então o rei de Leão, em Toledo, era o Emperador..., grata memória dum tempo findo!
Daí, porventura, sobre ignotos alicerces ancestrais, pré-históricos, o sentimento anarquizante, enraizado, latente ou endémico, de que têm dado bastas provas as «nações» ibéricas. E não voltaremos nós algum dia a conhecer essa quase-unidade na fraternidade e na diversidade, sob a forma de federação ou confederação? Será necessário lembrar que a instituição imperial romana, a que a Igreja aspirou identificar-se, ressurgiu tentativamente com os Francos, Carlos V, o Santo Império vienense, Napoleão, Hitler (ai de nós!), e, porventura, sob a ideologia pan-soviética? Isso, embora estejamos assistindo hoje ao ressurgir das aspirações autonomistas regionais – Bretanha, Escócia, Gales, Irlanda, os Flamengos, os povos da Jugoslávia?
Tal seria, com pormenores comprovativos, o remate da série de artigos «Da Agonia dos Contrastes» que não levei ao fim devido ao escrúpulo em manifestar a esperança de que esse novo «Império libertário» viesse algum dia restituir-nos a criatividade colectiva, peninsular, que nós, Portugueses, perdemos numa solidão geo-histórica de novecentos anos. E para esse futuro poder, então parcelarmente exercido pelos próprios naturais, que os nossos corações se voltam numa prece de esperança. 

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Tablóides…

Imagina tu que um amigo da mocidade, hoje médico distinto, me escrevia há longos anos uma carta que abria assim: «Meu Caro Data Vermibus José!» Desde então só uso «querido», como os Espanhóis.
(CA(ro)DA(ta)VER(mibus) = CADÁVER, como é suposto.)      

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Tablóides…

Interrogado sobre o que pensava da América (EUA), ele respondeu: «A América é como a Mulher: para bem a amar é preciso saber sofrê-la.» 

domingo, 9 de dezembro de 2012

Tablóides…

Creio que foi pela minha mão, em 1930, que a primeira imagem da Senhora de Fátima deu entrada em Portugal. Ao regressar da Bélgica, e do meu primeiro ano como bolseiro da Junta de Educação Nacional, detive-me em Paris de visita (demorada) aos nossos amigos expatriados (Proença, Sérgio, Cortesão e tantos outros). Foi então que o escultor João da Silva, destemido antifascista e livre-pensador, além de cunhado de António Sérgio, me pediu que trouxesse para aqui um medalhão de gesso do tamanho de uma roda de carroça com a imagem da milagrosa, que de cá lhe fora encomendada. Aceitei gostosamente o encargo do amigo, do artista e do correligionário. Ao chegar a Irun, os carabineiros puseram-me o problema da entrada em Espanha de uma obra de arte estrangeira, e exigiram-me o pagamento já não sei de que taxas aduaneiras. Protestei, naturalmente, e eles chamaram o capitão do posto para arbitrar o caso. Como ele tomasse o partido dos subordinados – obra de arte, havia que esportelar! – eu argumentei no meu melhor castelhano que aquela Benta Imagem de Senhora de Fátima (ou não sabia ele do Milagre?) era um artigo religioso da minha fé e meu uso pessoal, e que, todas as noites, eu não podia adormecer sem lhe ter rezado fervorosamente e de joelhos. «Ah!», disse então o militar, «se é um objecto pessoal de fé religiosa, então não está sujeito a imposto aduaneiro! Pode passar!» Fez-me uma continência respeitosa, imitado pelos subordinados, e eu, tendo correspondido, agarrei na gigantesca roda de gesso, e fui tomar lugar na carruagem. 

sábado, 8 de dezembro de 2012

Tablóides…

À força de pensar no «estilo», na écriture, na frase, na palavra, no «texto» enfim, não acabaremos nós pondo o «significante» acima do «significado», quero eu dizer eliminando este, caindo assim no puro psitacismo, no babillage infantil, pré-intelectivo? Ou não será tudo isso, apenas, mais uma moda, um sarampo literário que nos está comichando? 

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Tablóides…

A liberdade, do ponto de vista pessoal ou individual, consiste sobretudo em uma pessoa não dar pela existência do regime, sistema, partido ou governo a que está sujeito. Inclusivamente, no direito de os mandar à fava. É claro, sob a condição de ele, cidadão, não cometer violências, e respeitar os direitos dos outros como os seus próprios! Em resumo: Que o Governo ou o Soberano me deixem viver em paz, e se tramem! 

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Tablóides…

Encontro na rua o G., sempre queixoso dos seus múltiplos sofrimentos, mas sempre bem-humorado: «Como vão esses achaques?» «Ora», torna-me ele, «á nem sei se sofro de lumbago ou de l’umbigo!» 

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Tablóides…

Contava-se outrora que Rafael Bordalo Pinheiro, seriamente doente, se viu condenado pelo seu médico assistente a um regime rigoroso. Já o Esculápio ia a sair: «Ó doutor!», diz-lhe Bordalo, e o clínico voltou atrás: «Então o senhor tira-me a bebida e o cigarro, proíbe-me as comidas de que eu gosto, priva-me do amor – e só me deixa ficar a bronquite? Porque é que não ma tira também?» A um conhecido meu, em estado comatoso, proibiu o médico todos os abusos. Diz-lhe o doente: «Não, doutor, lá do vinho, do cigarro e do café não me livra o senhor, nem a mão de Deus Padre Todo-Poderoso! Os seus remédios não me curam. Então para que agravar a doença com tantas privações?»
Continuou a beber, a fumar, e a tomar café. Seis meses depois estava curado. «Parece coisa de milagre!», diz o médico assombrado. E o doente: «Não, doutor! O milagre foi eu não ter seguido à risca os seus conselhos!» 

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Coimbra, 4 de Dezembro de 1980

A História é uma paixão dos homens e uma ironia dos deuses. Sendo vivida por nós, parece feita por eles. Quanto mais nos obstinamos em tomá-la o espelho dos nossos triunfos, mais não sei que ocultos desígnios capricham em reduzi-la a uma aventura absurda. Porque, ao fim e ao cabo, sempre que nela floresce a esperança, frutifica a desilusão. Arena inglória onde a vida e a morte se confrontam a toda a hora, o sangue que a mancha nem sequer tem sentido. Inocente ou culpado, mitiga apenas a sede insaciável e vã da fatalidade. 

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Coimbra, 3 de Dezembro de 1980

– A conversa foi longa e enrodilhada. Um dizia, o outro respondia, e o rio de palavras ia correndo sem chegar a nenhuma foz. Até que de repente surgiu na escuridão do diálogo a luz de uma síntese que satisfez os dois:
– O homem, quando toca uma mulher, sente-se pecador; a mulher, quando é tocada, sente-se salva. 

domingo, 2 de dezembro de 2012

É PROIBIDO APONTAR


Domingo de manhã… À mesa do café quase deserto, o sujeito – lunetas de prudente funcionário da Fazenda – conversa com a menina, sete anos pálidos e tímidos. Tirante o caminho monótono da escola particular para ambos os sexos onde definha, aí num triste primeiro andar ao Bairro Camões, a menina goza apenas, vê-se à primeira vista, do privilégio de um passeio hebdomadário à Baixa. Observo-os do meu recanto pouco confortável (estas cadeiras de pau!), e posso imaginar o interior duma existência modesta, que se aguenta à custa de alfinetes em todas as costuras.
Conversam. E nisto a menina aponta para fora, para a estátua do Libertador, para o sol distante, as pombas da praça, talvez para uma janela onde qualquer coisa lhe atraiu a atenção: e a mão lívida, burocrática, pergaminácea do cidadão-papá estende-se num jeito de polvo a abaixar severamente o dedinho indiscreto. É proibido apontar!
O funcionário olha em redor, através das lunetas desconfiadas de azul, não tenha alguém reparado no gesto da filha (ou no dele?).
Era eu pequeno, para reprimirem em mim uma espontânea e justiceira tendência acusadora, o desejo de inquirir sem reservas, apontando, ensinaram-me que em certa igreja, ao erguer o dedo para um santo em seu nicho, ficara um homem com a mão sacrílega cortada resvés. Apontar é pecado, é tabu!
Até que ponto terá esta proibição geral destruído em mim as curiosidades naturais, o desejo de saber de fonte directa, e de acusar sem rebuço, forçando-me a uma atitude hipócrita de indiferença? Os meus dedos ficaram para sempre anquilosados, perderam a agilidade necessária para trespassar indiscretamente as pessoas e os factos que a minha consciência interroga ou condena. E no entanto, o homem que aponta assume a responsabilidade do seu gesto: porque há sempre na sombra da noite que nos envolve um cutelo pronto a cortar, como ao outro no templo, a mão que se ergue a inquirir, a acusar, a denunciar.
É de crer que a madre Eva tenha tentado Adão apontando-lhe candidamente os proibidos pomos da árvore da Sabedoria. Apontar um deus é destruí-lo. Os Hebreus não podem sequer erguer os olhos para o santo-dos-santos, não podem apontá-lo nem a olho. Apontar é um gesto revolucionário. Foi também apontando que Judas Iscariotes mostrou o Cristo, na noite mais que todas amarga, para o denunciar. No entanto, esse gesto, que valeu a morte e, na boa vontade de alguns simples, a ressurreição dum santo homem transbordante de imagens parabólicas e herméticas, foi o início de uma revolução nas ideias morais e religiosas, e recaiu sobre o próprio Judas, que se enforcou. E nós temos de aceitar esta conclusão cruel: o homem que anuncia a Verdade, melhor e mais concisamente do que o fizera o Baptista, e a aponta com o seu dedo adunco e sujo de pobre sem eira nem beira, sequioso de alguns dinheiros; o homem que propõe ao mundo, com o espectáculo de uma vulgar traição, o seu Deus mais humano e popular – paga com língua de palmo, numa figueira, a coragem de ter paraninfado a nascença da divindade! Judas apontou e pagou caro o seu gesto criador. O mundo continua povoado de símbolos e de contradições.
Os papás costumam punir os meninos que, à mesa, quando se pergunta: «Quem comeu a compota que estava na despensa?» – respondem vigorosamente, virando o dedinho rosado e severo sobre o culpado: «Foi o Nené!»
Como é sabido, só nos grandes apertos, ou sonhando em voz alta, os culpados dizem suas culpas; ou quando lhes convém, por exemplo para salvar a alma pela absolvição. De modo que, com os dedinhos contraídos e as orelhas ainda rubras da memória de algum remoto puxão, os meninos feitos homens, mesmo sendo altas coisas neste mundo, nunca mais se atrevem a dizer «Foi o Nené!», quando, nas assembleias, consistórios, conselhos, tribunais, comandos ou parlamentos, alguém se ergue indignado a indagar quem foi que comeu a compota que estava guardada na despensa do cofre ou do orçamento.
De resto, o silêncio, se nem sempre é de oiro, é pelo menos de papel-moeda ou títulos cotados. E quem o guarda não corre o perigo de ficar sem dedo – ou sem anéis, que importam mais.
 (Seara Nova, 1928) 

sábado, 1 de dezembro de 2012

Tablóides…

Chegava a casa pontualmente todos os dias, às sete, para jantar, conforme a promessa da esposa. Mas esta fazia-o esperar sempre quinze a vinte minutos. De que se há-de ele lembrar? Aproveitou a demora para escrever um livro, que publicou com esta dedicatória: «A minha querida mulher, sem cuja impontualidade eu não poderia ter escrito esta obra.»
(Vi-o outro dia na Feira da Ladra. O livro! Vendido a peso como papel de embrulho!)