Tenho discutido o
meu tanto com o meu antigo aluno Pedro Viegas, hoje professor universitário,
sobre o seu Kant e a arte. E a coisa
começou com o facto de eu julgar ser meu o conceito de «sentimento estético»
que ele me disse ser já kantiano. Li há muitos anos a Crítica
do juízo («Julgamento») e não me lembro de encontrar tal identidade.
Refolheei o livro à pressa e permaneci na minha convicção. Gostaria um dia de
dissertar sobre o problema, até para preencher o meu desemprego (e desistência)
literário. Estou saturado da literatura e a filosofia volta a interessar-me
vivamente. Dou aqui um resumo do que desejaria expor. Mas a exposição de
«ideias» também não me entusiasma. A menos que elas venham embebidas de emoção.
Kant deu-nos nas três Críticas uma
formalização das suas matérias, ou seja a estrutura apriorística delas. Onde
isso é mais evidente é, como se pressupõe, na análise dos juízos mentais com a
fundamentação no pressuposto espaço / / tempo e a determinante última dos
juízos sintéticos a priori. Não é
possível ou imaginável que qualquer ser pensante, exista ele onde existir,
possa realizar-se como pensamento sem a necessidade que obriga o nosso próprio
pensar. A mesma formalização encontramos na sua Ética (razão prática) para lá
de qualquer realidade empírica da sua moral. Quando Kant resvala para uma zona
empírica, diz disparates ou injustificabilidades. O mesmo quanto ao Juízo
(Julgamento), que ele entende situar-se entre a razão pura e a prática, quando
a par (abaixo) da formalização apriorística, desce ao empirismo e diz tolices
como a de valorizar o desenho contra a simples «agradabilidade» da cor. O que
Kant sempre procurou foi a formalização do apriorismo ou limite máximo superior
em que tudo se resolve. E aí o absoluto do gosto (ou se quisermos, de
sentimento estético, que não é a expressão por ele usada assim mesmo, porque
fala em sentimento de gosto como se admite seja o mesmo, já que de estética se
trata), daí a universalidade desse juízo do gosto, uma vez que é impossível a
cada um de nós imaginarmo-nos na pessoa dos que têm um gosto diferente, embora
o conceba, e isto porque um gosto, na adesão da sensibilidade tem de ser
concebido como universal porque não pode ser outra coisa. Como posso eu não sentir que uma mulher (ou obra de
arte) é bela se eu a sinto assim? Como sentir então que outros a não sintam
como eu, se eu não posso sair do que sinto? Kant distingue um juízo de gosto ou
agradabilidade (que admite seja concebido como relativo) de um juízo estético
(que se exige seja universal). Mas não se vê porque se aceite seja relativo um
juízo sobre um motivo de agradabilidade e se exija (admitindo que outros discordem do nosso julgar) seja
necessário e universal um juízo de gosto estético. Um gosto é universal e
absoluto porque é o meu e eu não
posso sair de mim. Nem tem sentido que eu ache bela uma obra, se eu não admitir
isso como absoluto e universal. Mas posso saber
e verificar que outros não sintam
como eu. Nem para esses tais as coisas se passam da mesma maneira. Ora bem, o
meu «sentimento estético» é anterior
a tudo isso. Se por hipótese admitíssemos que jamais tinha sido realizada uma
obra de arte, nem por isso o sentimento estético deixaria de existir. Diremos
então que quando acaba o meu «sentimento estético» na sua indeterminação é que começa toda a teoria kantiana. Aliás, o
sentimento estético não é um privilégio do homem porque por exemplo «o gato que
brinca na rua» do Pessoa já o conhece na vertente do «jogo» que é para Schiller o
fundamento da arte. Kant reflecte sobre a arte, eu sinto-a fundamentada, nesse
«sentimento estético». Um Heidegger
está assim mais próximo de mim – ou seja, eu dele – do que Kant. Heidegger
pressupõe o mistério donde a obra vem e que nos revela. Assim os dois são
interdependentes entre si. Porque o mistério fundamenta a arte, mas sem ela não
o saberíamos, ou seja não saberíamos o que é a arte. De facto sem a obra eu não
apreenderia o mistério. Mas ele pode existir e pressentir-se sem a obra. E é o
que acontece a toda a gente em mil situações em que esse mistério se anuncia: o
lume, o mar, o céu nocturno, o erguer da lua, etc. Mas é o animal que nos prova
a apetência à obra de arte como no gato que brinca [1]. Há
portanto em nós esse sentimento estético, que é o apelo à obra, e há a obra que
é a sua concretização. Kant disserta sobre o que a obra lhe propõe. Eu penso no
que a antecede. Este sentimento estético, aliás, tem que ver para mim com a
revelação da verdade, ou seja a base fundamental da nossa relação com o Mundo,
que é sempre uma relação «afectiva». A alêtheia de Heidegger
(dos gregos) é no fundo um pouco isso, (mas haveria que distinguir e não tenho
tempo nem disposição) porque é a aparição
da oculta verdade que se opera na nossa inteira disponibilidade ou seja a nossa
liberdade. A verdade aparece, desvenda-se ao nosso sentir originário e livre,
na dimensão portanto do «sentimento estético». Donde vem essa disponibilidade?
Que é que a determina ou fundamenta? Justamente o que tenho designado por
«equilíbrio interno», gerado (e mudado muitas vezes) por mil factores que vão
desde o sangue que nos deram aos encontros de pessoas, livros, etc., aos
acidentes casuais, etc. Esse equilíbrio interno identifica-se com a pessoa que
somos, com o nosso ser, ou seja com o incognoscível e indeterminável da nossa
liberdade – que se identifica com esse o nosso ser.
E eis por agora.
Mas tudo isto teria de desdobrar-se em texto muito mais longo.
*
Lúcio vai festejar o fim do curso com os seus colegas. E
trouxe-nos várias fitas soltas com as saudações dos amigos como nós em Coimbra
– mas com as fitas na pasta… E dessas fitas reservou uma para a Gi e o Cô. A Gi
ainda não escreveu a sua mensagem. Eu escrevi: «Lúcio, tiraste enfim o curso da
escola, vais tirar agora o curso da vida. Vê se não chumbas. O Cô». Mas fiquei
mudo de choro na alma.
[1] Ver outros motivos da
radicação da arte no animal em Qu’est-ce que la
Philosophie?, p. 174, de Gilles Deleuze e Felix Guattari.
Sem comentários:
Enviar um comentário