sexta-feira, 31 de maio de 2013

Luanda, 31 de Maio de 1973

É pena. Falhámos por um triz. Bastava que tudo quanto aqui fizemos fosse por outra intenção. Que cada um dos que vieram mar fora trouxesse a convicção de que ser angolano, moçambicano, guinéu ou timorense eram maneiras heterónimas de ser português. Mas nenhuma escola da pátria lho ensinou a sério, nem algumas exemplaridades paradigmáticas foram suficientes para lho incutir.

quinta-feira, 30 de maio de 2013

Nova Lisboa, 30 de Maio de 1973

O pé escreve as unidades; o automóvel adita as parcelas; o avião mostra a soma. Das três maneiras me tenho servido para levar desta terra uma imagem condigna. Da terra, repito. A dos homens não requereu tanto esforço. Igual por toda a parte, ao primeiro relance fica entendida. Dois lados de uma medalha: no verso, a fisionomia ávida e leviana do branco, que não conseguiu traduzir cinco séculos de presença numa missão histórica; no reverso, a do negro, humilhado na sua inocência tribal ou degradado na sua destribalização. Os musseques de Luanda são os bairros de lata de Lisboa. Em ambos se processa a mesma dissolução humana.
Teimo, pois, na prospecção da natureza, o único mistério que resta em Angola. Mas com pouco sucesso, reconheço, mesmo depois de acordar na memória adormecida a experiência brasileira. As terras de Santa Cruz, por onde andei na meninice, não pareciam estar sempre a arder. Havia fontes, rios e ribeiros por toda a parte, e viam-se impressões digitais a cada passo. E eu sou um homem de impressões digitais, das mãos e dos pés. O sulco do arado é tão impressivo para mim como o traço da caneta. Leio tanto numa lavrada alentejana como num livro. E que posso eu ler nestas extensões incultas, selvagens, ainda na pureza original dos primeiros dias da criação? Apenas as potencialidades genesíacas de uma grande terra de promissão. A antecipação imaginada de um país imenso segregado pelos seus naturais, campos arados, aldeias, vilas e cidades com nomes de génese natural, emergentes da realidade, e não de tabuleta, colados a ela, como os de agora. Nova Lisboa, porquê? Carmona, a que propósito? Sim, um próspero país futuro, construído com amor e suor do Zaire ao Cunene, cada habitante a semear e a colher os frutos agridoces da vida por conta própria e não por conta alheia. Um país a caminhar unitariamente, e não uma colónia salteadamente a tropeçar.

30 – Maio (quarta). [1990]

Chegámos hoje de manhã de uma ida a Évora. A grande razão da ida era uma visita a Olivença, há muitas anos engatilhada na alma – a ida. Antes de a morte me pôr o pé em cima, queria eu pô-lo na terra que o castelhano nos rapinou. E a razão do constante adiamento é que a viagem é bastante longa, pois que a ponte de ligação imediata às terras do lado de lá foi dinamitada aquando do rapinanço e nunca mais reconstruída para arrefecer as tentações. Falei no caso ao Alberto Silva, centro de convergência amiga do nosso grupo de Évora, e ele agarrou logo a mãos ambas o nosso intento para nos ver lá e um pouco talvez recuperar o tempo perdido, agora que a Josete morreu. Se a gente se atrasava a andar com o projecto para a frente, ele aí estava a perguntar-nos quando é que. E de semana em semana de adiamento, a coisa foi de vez e aí fomos nós ontem disparados a patriotismo. Mas antes de sermos patriotas, há que registar o terrível embate com a cidade de Évora a sua transferência para o nosso puro imaginário. Porque está irreconhecível. Intransitável, coalhada de carros e de gente, com regras inimagináveis para a deslocação dentro dela, Évora transbordou para uma cidade imensa fora das muralhas onde nunca morou, com bairros imensos de grandes prédios de habitação e de comércio ou mesmo indústria que agridem alegremente o tempo e o silêncio da cidade antiga. O quarto único da única pensão que o Alberto Silva nos conseguiu fica na Rua da Selaria, fechada ao trânsito do meio para a Sé, com a praga das discotecas estendida até lá perto e que nos rendeu uma quase insónia com os selvagens dos jovens que se abatem aos muitos milhares sobre as escolas que há hoje aí e dos quais um grupo deve ter sido destacado para nos atormentar o sono de velhos excedentários. E assim, antes de mais, reparei que tinha cortado com a Évora profanada, sevandijada, assolada de uma praga selvática e a tinha recolhido na sua imagem de há 30 anos para o que em mim perdura como memória e emoção. Mas eu não queria falar de Évora e foi ela que se me meteu na conversa. Portanto – Espanha. O Alberto Silva ficou surpreendido porque o projecto da ida lá era para hoje. Mas as minhas contas do cansaço e o mais com o regresso a Lisboa logo após o de Espanha levou-me a propor a expedição para logo depois de termos chegado. E assim se fez. Metemo-nos no carro dele, almoçámos em Elvas e chegados pouco depois a Badajoz, derivámos para o sul. E algum tempo depois pude ler à entrada da cidade o nome parecido de «Olivenza». Parámos o carro para tirar uma foto panorâmica da cidade e senti uma tentação de logo emendar o seu nome no seu erro de ortografia… A cidade é grande e toda branca de leite como as do Alentejo. Mas com grande surpresa nossa e desgosto meu, toda a cidade estava a dormir. E isto é dito em sentido quase literal, porque atravessávamos ruas e ruas quase sem vivalma. A memória alentejana das suas casas estava já bastante pervertida com o gradeamento andaluz e mouro das janelas, como o íamos verificando na cidade adormecida. Porque na realidade toda a cidade dormia. E isso não era já bem português, que mesmo no Alentejo tem-se sempre um olho aberto. Olivença praticava o que Unamuno chamava o ioga ibérico, ou seja batia a sua sorna após o almoço. Tirei as fotos clássicas da lembrança portuguesa e quando finalmente apanhei um adulto sentado numa praça, fui-me a ele. Falava português? Sim, e muita gente falava ainda. Aldrabice, pensei, não porque o verificasse mas porque o tom de voz do homem era o de quem farejou em nós o desejo de que fosse assim – e fora amável por desfastio. Adiantei a questão da passagem de Olivença para o lado de lã, ele disse que fora há muitos anos e derivou de uma troca com Campo Maior. Deve ser a galga adiantada às crianças nas escolas. Porque o que aconteceu, como se não conta às crianças do lado de cá, não fora bem uma questão de troca e destroca sobre compromisso (teria de ir reler para saber se foi assim). O que aconteceu foi que Godoy, amante da rainha – parecida com a do nosso João VI – fez mão baixa à cidade e seu termo após as guerras napoleónicas, faltou ao compromisso de devolver o roubo sob o pretexto de que aquilo era um valhacouto de ladrões e contrabandistas e havia o Guadiana a jeito para fazer fronteira. A Espanha vendeu Gibraltar e pretende recuperá-lo. Portugal foi rapinado em Olivença e ninguém ousa tocar no assunto. Mas o Guadiana. Lá o fomos ver com a sua ponte destruída, com sinais de que mais parecem uma dinamitação, para evitar tentações. Creio, todavia, que se pensa em reconstruí-la. Sinal triste de que o problema está morto. Do lado de lá do rio havia um grupo de portugueses a fazer sinais de mãos agitadas. Seria talvez, e apesar de tudo uma saudação à memória dos portugueses que se sonhavam existir ainda do outro lado, após quase duzentos anos de terem emigrado com a terra para Espanha e o desejo obstinadamente vivo de que regressem a casa…


quarta-feira, 29 de maio de 2013

Sá da Bandeira, 29 de Maio de 1973

       Visita a um sábio missionário estrangeiro que há décadas aqui se radicou e dá largas ao espírito a esta luz africana. Enquanto discorria sobre a matéria em que é mestre, exibia livros e recensões, ia-o observando. Espécie de Bernard Show da etnografia, nas barbas e no sarcasmo, cheio de si, consciente do que vale, havia nas suas palavras não sei que distância e que desdém. E doeu-me aquela arrogância, que a nossa pobreza cultural legitimava. A contas há tantos anos com tantas raças do planeta, e não conhecemos delas o mais essencial. Os seus enigmas e mistérios pouco ou nada nos preocupam. O esforço inicial de alguns pioneiros não foi continuado. Não temos uma ciência islâmica, judaica ou negra nas escolas, centros de estudo onde se apure um futuro ecuménico. São os franceses, os ingleses e os alemães que sabem de Maomé, de sionismo, de negritude. E vim para casa humilhado escrever esta página como quem, depois de apanhar uma merecida bofetada numa das faces, por sua própria mão esbofeteasse a outra.
Miguel Torga

Salários para que vos quero

Segundo o "Dinheiro Vivo", a 'troika' governante terá dado conta aos seus delegados locais de que "os salários ainda podem descer mais e que pode poupar-se mais no sector da Saúde".
A notícia não adianta pormenores, mas certo é que, quando a 'troika' fala em salários que ainda podem descer mais não se refere ao salário do dr. António Mexia (que, até onde se sabe, ainda não desceu coisa nenhuma), mas ao seu, leitor, "mon semblable, mon frère".
Não se conhece igualmente porquê nem para quê têm os salários que descer ainda mais, mas não é, obviamente, para estimular o consumo interno e o crescimento da economia. Em contrapartida, o pagador das promessas do Governo à 'troika' é fácil de antecipar. Ou me engano muito ou "a despesa" será reduzida no sítio do costume, que está à mão de semear e, mais manifestação menos manifestação, mais greve menos greve, é fácil, é barato e dá milhões: os vencimentos da função pública e as pensões dos reformados.
É também já possível ter uma ideia de quanto uns e outros irão "descer mais" e de quanto se irá "poupar mais" na Saúde: as PPP custaram 323,8 milhões ao Estado no primeiro trimestre deste ano, 28,8% acima do que custaram em igual período de 2011. E, parafraseando S. João Baptista, é preciso que nós diminuamos (Passos Coelho diz "empobreçamos") para que eles continuem a crescer.

JN, 29/05/2012 – M. A. Pina

29 de Maio [1966]

Para celebrar a 2.ª edição de A Cartilha do Marialva o homem da publicidade da Ulisseia dependurou na barraca da Feira do Livro uma bela foto do Cardoso Pires a fazer festinhas pensativas no dorso dum gato curvo e familiar. .. Nostalgia de não haver forma de um tigre caber na fotografia de um escritor português!
J. Gomes Ferreira

29 de Maio de 1978

«Oh, eu não tenho nada contra os Judeus!», diz este sujeito que lida muito com eles em negócios, e é (injustamente) acusado de anti-semitismo. «Excepto que eles se parecem tanto com os cavalos de corrida.» «Como assim?!» «Porque querem correr sempre à cabeça de tudo e todos. E o curioso é que quase sempre o conseguem!» 
J. R. Miguéis

terça-feira, 28 de maio de 2013

A GALANTA DO JANFERNANDES

No museu das minhas recordações de infância, há uma galeria infindável de quadros evocativos. Um dos mais coloridos é o que me recorda a «Feira do Prémio», outrora realizada em Montalegre a 28 de Junho. Não andarei longe da verdade se disser que era a feira mais concorrida do ano. Aí concorriam as aldeias com o seu «boi do povo» e os particulares com as suas vacas, almalhas e novilhos. Aí concorriam os velhos para ver o gado e os novos para ver as moças.
Um «1.º Prémio» num «boi do povo» embriagava de alegria e vinho uma aldeia. O mesmo galardão numa vaca, almalha ou novilho, ensandecia de vaidade uma família.
Em termos de fama e proveito, um título de «Vaquinha do Prémio» desses tempos, correspondia ao de «Miss Mundo» dos nossos dias.
Lavradores havia que passavam o ano a treinar uma vaca para o concurso de 28 de Junho. Um deles era o meu vizinho Janfernandes, homem de fartos haveres e muita prosápia. Um ano concorreu com a sua Galanta, que ele julgava imbatível e com alguma razão. À primeira vista, a vaca possuía todas as prendas exigidas por uma campeã. Juventude, boas medidas, formas harmoniosas, pelagem alaranjada em caracóis de muita graciosidade, um bonito colar de pêlos brancos à volta do barbo, outro das pálpebras, badana elegantemente caída em véu de odalisca desde o lábio inferior à fúrcula dos membros dianteiros, ventre enxuto, cornos em lira, alvos nas bases e morenos nas pontas, olhos de Helena de Tróia, da qual Homero afirma que tinha «olhos de boi.»
O Janfernandes ia absolutamente seguro de que o júri cairia de joelhos ante a beleza da sua Galanta. Afinal a vaca nem sequer foi classificada.
O Janfernandes focou inconsolável.
– Ó rapazes? – pedia ele aos vizinhos. – Sede francos comigo. Vedes algum defeito na minha Galanta?
– Foste roubado! – exclamavam todos. .
Todos menos o velho Aleixo que se mantinha calado. O Janfernandes interpelou-o:
– Vai muito calado, ti Aleixo. Não concorda?
– Com quê?
– Com os outros. Nota algum defeito na minha Galanta?
– Olha-lhe para a croca do rabo.
– Que tem a croca do rabo?
– Andas cego.
– Desculpe, mas por enquanto ainda vejo bem, graças a Deus.
– Pois não parece. Repara nas outras e na tua.
As vacas regressavam da feira em grande quantidade. O Janfernandes pôs-se a olhar para elas. Realmente, em todas o fio do lombo ia da cernelha à implantação da cauda numa horizontal perfeita. Ao passo que na sua Galanta, ao chegar ao cóccix, elevava-se abruptamente numa pequena bossa de camelo. «Ah! Então é isso…» – disse para consigo. E não disse mais nada.
No dia seguinte levou a vaca ao veterinário. Este, ouvido o caso, gracejou:
– Ó Janfernandes? Eu, em veterinária, sou apenas clínico geral. Ora um caso destes exige, pelo menos, um cirurgião plástico.
– Conhece algum, doutor?
– Não conheço nem creio que o haja nas setenta vezes sete milhas em redor, Lisboa inclusa.
– Desculpe o atrevimento. Mas eu vinha convencido de que uma pancada na bossa…
O veterinário riu-se:
– Para isso não precisas da minha ajuda. Não tens lá um mascoto?
O Janfernandes regressou a casa e, dito e feito. Agarrou num malho-rodeiro, subiu três degraus das escadas e disse ao criado:
– Puxa a vaca para aqui.
O rapaz colheu a vaca por um corno e trouxe-a para junto das escadas. O Janfernandes quadrou-se com ela e, a mãos ambas, com quanta força tinha, desferiu-lhe um golpe tremendo na croca do rabo. A vaca foi-se abaixo das patas de trás e assim esteve, por instantes, fincada nas da frente. Depois afundou-se de vez no estrado do pátio.
– Está morta – disse o rapaz.
– Se está morta, enterra-se.
– Não será melhor sangrá-la e comê-la?
– Também não dizes mal.
Antes de chamar os vizinhos, o Janfernandes combinou com o criado dizer que a Galanta partira uma perna. Mas a história acabou por cair nas bocas do mundo. O velho Aleixo comentou:
– Tenho visto matar muita vaca com uma pancada na testa. Agora no rabo, é a primeira.

Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS II – Crónicas de Barroso (p. 59 e ss.)

Sá da Bandeira, 28 de Maio de 1973

Monumentos. O orgulho branco não pode deixar de os erguer por toda a parte, os poetas de coroa de louros e lira na mão, os guerreiros de espada à cinta ou em riste, os governantes petrificados num gesto. E ei-los soberbos nos pedestais, épicos, heroicos ou solenes, relanceados de soslaio por olhos mornos, analfabetos e humilhados, que neles fixam apenas as pregas da gargantilha, a catana agressiva ou a mão imperiosa. Cantores, conquistadores, administradores. Bronzes de eternidade vã, destinados mais cedo ou mais tarde a uma nova encarnação. Paro a contemplá-los, e não consigo evitar que a imaginação os não derreta e os molde num futuro próximo por conta doutras glórias. Por conta dos muitos Gungunhanas que esperam também a sua consagração.

A Grécia aqui tão perto

As chocantes declarações da directora-geral do FMI ao "Guardian" revelam bem que género de gente preside hoje aos nossos destinos e a quem governos como o português ou o grego subservientemente se vergam. Por momentos, Lagarde deixou cair o idioleto técnico com que ela, Durão Barroso e a "fürehrin" Merkel, mais os seus feitores locais, justificam o empobrecimento forçado dos povos e mostrou o rosto selvagem do neoliberalismo dominante, assente no direito do mais forte à liberdade.
Perguntada se não lhe custava impor ao povo grego, sobretudo aos mais pobres, medidas de austeridade que cortam em serviços fundamentais como a saúde, a assistência social ou o apoio a idosos, a directora-geral não podia ser mais clara (nem mais cínica): "Penso mais nas crianças que andam na escola, numa pequena aldeia do Níger, que apenas têm duas horas de aulas por dia e partilham uma cadeira por três...".
E que tem Lagarde a dizer àqueles que, na Grécia, todos os dias lutam hoje pela sobrevivência, sem emprego e sem serviços públicos? Que se ajudem a si próprios "pagando os seus impostos". Mas as crianças, senhora? "Bem, os pais são responsáveis, não? Por isso os pais que paguem os seus impostos".
Maria Antonieta não o teria dito melhor. Só que os "sans cullotes" de hoje persistem em crer que ainda vivem em democracia (se calhar até em democracia económica).
JN, 28/05/2012 – M. A. Pina

segunda-feira, 27 de maio de 2013

29 de maio, Dia de África

COMPANHEIROS

quero
escrever-me de homens
quero
calçar-me de terra
quero ser
a estrada marinha
que prossegue depois do último caminho

e quando ficar sem mim
não terei escrito
senão por vós
irmãos de um sonho
por vós
que não sereis derrotados

deixo
a paciência dos rios
a idade dos livros

mas não lego
mapa nem bússola
porque andei sempre
sobre meus pés
e doeu-me
às vezes
viver
hei-de inventar
um verso que vos faça justiça

por ora
basta-me o arco-íris

em que vos sonho
basta-te saber que morreis demasiado
por viverdes de menos
mas que permaneceis sem preço

companheiros

MIA COUTO

No livro "Raiz de Orvalho e outros poemas"

Coimbra, 27 de Maio de 1977.

              ALVORADA 

Foi tudo simples: aconteceu.
O dia amanheceu,
Acordei,
E reparei
No milagre concreto de viver.
E cantei
Como um galo feliz.
O que esse canto diz
É que não sei.

Miguel Torga

Coimbra, 27 de Maio de 1976

       Encontro com Günter Grass. Duas naturezas afins, uma com saúde e outra com vontade. Sem nos podermos compreender nas respectivas línguas maternas, conseguimos entender-nos não sei por que milagre de simpatia anímica. Embora nada o fizesse prever, sintonizámo-nos à primeira vista. De modo tão evidente que, agora, ao registar o facto, só me vem à ideia a imagem de dois ursos procedentes de pólos opostos que um feliz acaso tivesse cruzado no mesmo paralelo e logo, por instinto, se reconhecessem.
Miguel Torga

Sá da Bandeira, 27 de Maio de 1973

       Depois do aéreo deslumbramento do maciço da Chela e do abissal fascínio da Tundavala, a rasa emoção do cemitério da missão católica da Huíla. Aqui jaz… Aqui jaz… Aqui jaz… E são nomes de todas as nacionalidades, portugueses, belgas, franceses, alemães, inscritos lado a lado em humildes lousas iguais, seguidos de uma inscrição trágica: falecido com 24 anos, com 45, com 51, com 32 … Nomes de homens que vinham ao encontro da morte certa e prematura por conta de Deus e do semelhante. Por conta da fé, da esperança e da caridade. Há outras epopeias a admirar também no planalto. A dos colonos madeirenses, por exemplo, que desembarcaram nas areias de Moçâmedes, subiram a serra em carros de bois, desbravaram, semearam e sucumbiram, e de que restam apenas os descendentes pobres, os chicoronhos, resíduos humanos sem ombros sequer para suportar o mito dos pais. Mas o que se faz impelido pelas necessidades do corpo há-de ficar sempre aquém do que se faz obrigado pelas exigências da alma. Muito embora a transcendência se possa atingir de várias maneiras, a dádiva abnegada da vida é de longe a mais absoluta. Quase apostava que aquele campo santo será no futuro da pátria angolana um panteão nacional. Ou a ressurreição de Cristo e a fraternidade humana deixarão de ter sentido nestas paragens.
Miguel Torga

27 – Maio (domingo). [1990]

        Acabou ontem ou anteontem mais um congresso do PCP. Aliás este é o tempo dos congressos como das cerejas. Mas o PCP é o que mais espevita a curiosidade para sabermos como é que ele se desenrascou do codilho de Leste. Ora. Desenrascou-se muito bem. Cunhal garantiu que o material teórico e prático era bom e estava para durar. E os desvarios dos do sol da Terra, que vem do Oriente como está programado, os tresvariados que os digerissem. Por cá, tudo bem e é o que importa. As pessoas de alma cândida imaginavam que os fiéis da religião comuna iriam querer pedir contas, esclarecimentos, discussão. Mas as poucas que ousaram discutir foram vaiadas e cuspidas. Agora, o que se estranha é que isto se estranhe. Mas jamais os fiéis de uma crença desejaram que ela se discutisse. O que se exige é que ela se cumpra e que alguém tome sobre si a responsabilidade de o garantir. E para isso lá estava o Cunhal. A discussão «colectiva» é coisa que ninguém quer e é assim estúpido e ofensivo acusar-se Cunhal de a impedir. A discussão não se quer para a religião continuar. Uma crença não se elucida, uma crença afirma-se. Cunhal sabe-o muito bem e por isso chamou a si os temores dos fiéis. Quem vai à bruxa não é para discutir com ela, mas para se investir da paz que virá dela e para isso é que lhe paga. Cunhal era a bruxa. E quem pôs em dúvida o seu poder e saber só não foi queimado porque há agora uma vigilância muito apertada contra os pirómanos.
V. Ferreira

domingo, 26 de maio de 2013

Moçâmedes, 26 de Maio de 1973

      O deserto ainda, mas agora palmilhado, rodado, sobrevoado. Areia, areia, areia, e milagres geométricos do vento, milagres pictóricos da luz, milagres musicais do silêncio. Um mundo seco, estéril, asséptico, esquecido dos homens que o semeavam, das raízes que o sugavam, da água que o refrescava. Um mundo onde nenhum poema de esperança teria sentido e nenhum poema de desesperança pode ser ouvido. A majestade da velha deusa Terra numa altivez olímpica, sem um resquício de amor maternal a traí-la numa lágrima, num sorriso, num gesto. A indiferença surda e muda, apenas ondulada aqui e além numa espécie de feminilidade perversa.
Miguel Torga

26 de Maio [1966]

Um encargo difícil que aceitei por tarefa quase imposta: a publicação dos versos de Irene Lisboa acompanhados do respectivo estudo necessário.
Em boa realidade é mais que tempo de vencer a fase do lugar-comum que em geral se segue à morte de todos os escritores. A fatal repetição das eternas cantigas. Neste caso, a solidão, a secura de estilo invertebrado, etc. Felizmente serei o primeiro ou um dos primeiros, a desbravar o caminho – o que me levará a encontrar com felicidade algumas verdades óbvias iniciais.

Assim, depois de uma leitura rápida, já dividi o corpus literário de Irene em três fases: a diarística, a dos Relatórios e a novelística propriamente dita. 

José Gomes Ferreira

26 – Maio (sábado). [1990]

E hoje, quando ia buscar os jornais, dei comigo a pensar de novo que há imenso tempo não vejo a farrapeirinha. Terá morrido? Era uma velha de espinha em arco e que arrastava atrás de si um comboio de mercadorias. Um dia contei o lixo do comboio. Eram uns doze ou quinze caixotes de cartão, cheios do mais incrível material. Papéis, tijolos, bocados de cimento, cacos de louçaria, e assim. E de vez em quando deslocava-se para algum sítio talvez mais estratégico e rosnando pragas ao seu imaginário, ia e vinha, acarretando os caixotes de dois a dois, até os colocar no sítio comercial. Depois sentava-se rodeada da sua mercadoria e ali ficava à espera decerto de um enviado de Deus, rogando sempre pragas, invectivando a altos brados pessoas que eu não via e ela devia ver. E quando à hora do almoço eu ia para a cantina, velha e traquitana tinham já desaparecido, decerto porque o negócio tinha sido encerrado com o Encoberto. Mas agora desapareceu de vez. Imagino-a no paraíso a continuar talvez o seu negócio, arrastando atrás de si inumeráveis caixotes com a lixeira celestial – asas de anjinho já fora de uso, sandálias rotas de santos atiradas fora, auréolas já tomadas de ferrugem, cacos de alaúdes, liras sem cordas. E no meio disto tudo, rogando sempre pragas ao Padre Eterno…
Vergílio Ferreira

sábado, 25 de maio de 2013

Moçâmedes, 25 de Maio de 1973 - Miguel Torga

       Moçâmedes, 25 de Maio de 1973 – O deserto abordado. A terra a transformar-se progressivamente em negativo. O reino mineral degradado, e o vegetal e o animal ainda a teimarem, a reduzirem as exigências, espalmados numa folha coriácea, aguçados num pico, endurecidos num casco. Espectros de erosão, monstruosidades fisiológicas, miragens alucinantes. Rochas que parecem fantasmas, plantas que parecem bichos, bichos que parecem plantas, carcaças, rastros, silêncio. Um silêncio de horizontes abertos, infinito, onde o sofrimento se cala, a agressividade se oculta, a voz não tem eco. Meia dúzia de horas de deslumbramento consentido e terror recalcado, o instinto a sentir-se em pânico diante de uma realidade que contactava pela primeira vez, sem reflexos para semelhante imensidão, para semelhante esterilidade, para semelhante absurdo, e a razão humilhada por lhe não poder acudir com nenhuma das mezinhas habituais. Por não ser capaz de instituir uma lei, uma regra, uma medida, num mundo raso, desmedido, sem horas, sem dias, sem estações, sempre igual no espaço e no tempo, imagem física da eternidade morta. 

É a igualdade, estúpidos!

O presidente de uma câmara que tinha (e provavelmente continua a ter) dívidas de milhões à Águas de Portugal foi premiado, mal o actual Governo tomou posse e começou o bodo aos "boys", com o Conselho de Administração da Águas de Portugal e nunca mais se soube dele, nem se terá conseguido, agora como credor, ser tão eficaz como fora como devedor.
Voltou agora às primeiras páginas e, após quase um ano de discreto e laborioso esforço, o rato pariu uma montanha: o preço da água vai, aleluia!, ser finalmente igual para todos os portugueses, vivam eles em palacetes da Avenida do Brasil, no Porto, ou da Lapa, em Lisboa, ou vivam em qualquer casal perdido do Nordeste Transmontano e da Beira Interior. Por fim uma medida revolucionariamente igualitária: toda a gente irá pagar entre 2,5 e três euros por m3 de água. Afinal, diz o novo administrador, "as pessoas podem gastar o que quiserem no telemóvel, e gastam muito mais que isso"...
Assim se fará (já não era sem tempo) justiça aos portugueses da Avenida do Brasil e da Lapa, que já pagam há anos isso, e se acabará com os privilegiados de algumas pequenas terras do interior, que – pois a igualdade tem um preço – verão a conta da água aumentar 200 ou 300%.
Se a água quando nasce é para todos, também o preço dela deve ser. E quem não puder pagá-la que fale menos ao telemóvel.
JN, 25/05/2012 – M. A. Pina

25 – Maio (sexta). [1990] - Vergílio Ferreira

Recebi hoje os dois primeiros exemplares do meu romance. Um é para levar amanhã a uns amigos que nos vão alimentar ao almoço. E o outro é para mim. E para primeira surpresa das que lá procurava, encontrei uma gralha que eu próprio cometi ao copiar o original. É na página 274. Onde está «a lei passava por mim» deveria estar «a lei pensava por mim». Isto é óbvio no contexto. Pois não senhor. Passei por lá não sei quantas vezes e só vi o invisível. Bom. E o resto? Que estranha a sensação de ler um nosso livro impresso. Não, não tem nada que ver com a questão do estar em público e esperar-se que arraste na esteira os seus admiradores como uma actriz. Não é um fenómeno externo, é um problema de essência. Subitamente o livro autonomiza-se pela investidura tipográfica e foi de lá para cá. O que está bem ou mal perturba-me, mas como alguém que eu ensaiei para o palco e em que não posso ter mão. Um livro impresso é tocado de uma qualidade sagrada pela sua ascensão a ser vivo. E tanto ele me escapa e amedronta com a sua autonomia, que o folheei brevemente e o arrumei na estante como quem fecha um tigre na jaula. Requiescat. (Só eu próprio não descanso e ando inquieto na pressa e pressão de arrancar com o meu ensaio. E todavia aflige-me uma certa preguiça interior, que me solicita a comodidade de ideias já tidas e de escrita já calhada numa certa rede de multiplicação celular. Ou uma certa nota de ser na selva do dicionário. Ou uma certa maneira de ser na maneira certa e não valer pois a pena de tentar a possível errada.) 

sexta-feira, 24 de maio de 2013

FESTIVAL INTERNACIONAL GUITARRA - SANTO TIRSO

Johannes Möller
[24 maio 2013 21:30:00]
Centro Cultural, Vila das Aves
Johannes Möller, Clássica, Suécia


David Russell

[25 maio 2013 21:30:00]
Auditório Eng. Eurico de Melo - Santo Tirso
David Russell, Clássica, Escócia

Invictus

poem by William Ernest Henley with text
Invictus

Desta noite que me cobre
Negra como um poço de borda a borda
Eu Agradeço a quaisquer deuses que hajam
Por minha alma inconquistável

Na cruel garra da circunstância
Eu não recuei nem gritei
Sob os golpes da sorte
Minha cabeça está ensanguentada mas não curvada

Além deste lugar de fúria e lágrimas
Surge apenas o horror da sombra
E ainda com a ameaça dos anos
Encontra, e há de encontrar-me, sem temor

Não importa quão estreito o portão
Quão carregado de punições o pergaminho
Eu sou o mestre me meu destino
Eu sou o capitão de minha alma.

Miguel Torga: 24 de Maio de 1973

       Lobito, 24 de Maio de 1973 – Quatro instantâneos: a aridez dos montes circundantes, Camões entronizado num pedestal, o forte de Catumbela e o empório comercial da Cassequel. A terra, outrora coberta de vegetação, esterilizada pela incompetência sanitária que incendiou o mato para debelar a doença do sono; o épico a enfunar o peito heróico diante do analfabetismo indígena; a força de ocupação fortificada e celebrada; e a exploração colonial com as letras todas. Quatro imagens avulsas da nossa boa consciência civilizadora. 

Ide trabalhar, malandros

O Governo soube através do INE que anda por aí um milhão de madraços sem trabalhar e decidiu dar-lhes que fazer. A boa nova foi levada à AR pelo secretário de Estado da Administração Interna, que anunciou que o seu ministério e os da Economia e Agricultura estão a ultimar um protocolo que visa pôr os desempregados a aproveitar a sua "oportunidade de mudar de vida" iniciando uma promissora carreira no sector da prevenção de fogos florestais. Assim ocuparão os tempos livres em vez de (a ociosidade é mãe de todos os vícios) os ocuparem a pensar.
O programa (que abrange ainda os beneficiários de RSI) prevê que os desempregados se encarreguem da vigilância e limpeza das florestas que os seus proprietários, Estado e privados, não limparam e de... funções de ordenamento do território e gestão do combustível existente.
O subsídio de desemprego é, para o Governo, uma esmola que dá aos desempregados e não uma prestação a que estes têm direito por terem, ao longo da vida profissional, confiado todos os meses ao Estado uma parte do salário para esse e outros fins.
A coisa será, até ver, numa "base voluntária". E, posto que na lista dos ministérios falta o das Finanças, não custa a crer que também numa "base gratuita". Já que os desempregados (como os reformados, que provavelmente se seguirão) recebem esmola do Estado, que se mostrem agradecidos.
JN, 24/05/2012 – M. A. Pina

Vergílio Ferreira: 24 – Maio (quinta). [1990]

Hoje prometeram-me os primeiros exemplares do meu novo romance Em Nome da Terra. E todo eu estremeço na expectativa. Porquê? Não sei. É talvez a de ter nas mãos a prova provada de que o romance existe enfim como livro. É o que vem em tudo isso, desde a beleza do «objecto» a uma certa sacralização que investe uma obra de arte. É enfim uma coisa curiosa e pequena e que não sei se afecta igualmente os meus líteras confrades. Digo o que é? Digo. É ler o texto nas páginas pares. No original, no dactilografado, nas provas tipográficas lê-se sempre apenas a página ímpar, ou melhor, talvez o verso dessa página, já que o reverso, que será a página par, fica sempre em branco. E então dá-se o caso curioso de haver uma deslocação de todo o texto que pertence a essa página e ser outro à vista e à significação que a acompanha. Isto é talvez especioso mas é verdade. Um texto tem para o nosso hábito uma determinada situação. E mudá-lo é mudar-lhe insinuadamente o sentido. Bom. Vou ter hoje os primeiros exemplares do livro. E vou ler o texto que pertence às páginas pares. E será esse por força um outro texto. E será esse por força o mesmo.

quinta-feira, 23 de maio de 2013

Santo António do Zaire, 23 de Maio de 1973



A pura glória tem
A humilde singeleza do teu nome. 
E cresce eternamente,
Como um caule imortal,
No fuste do padrão
Que a tua inquietação
Ergueu
Nestes confins do munjo onde chegou.
Limpo brasão de quem só descobriu
E nada conquistou.

Miguel Torga: 23 de Maio de 1973


Santo António do Zaire, 23 de Maio de 1973 – A obstinação de visitar o sítio que o meu comprovinciano Diogo Cão pisou pela primeira vez ia-me custando a vida. A raiva do Zaire parecia querer vingar-se em mim da violação de quinhentos. Depois de deambular pelas suas muílas – uma extensa Veneza selvagem de grandes canais sonolentos a reflectir uma anfíbia arquitectura vegetal –, entrei confiado naquela torrencial magnitude. E foi a profanação. O vento soprou, as ondas ergueram-se, a alma fluvial bramiu, e daí a nada a casca de noz em que eu navegava, a dançar na crista da fúria, transformou-se na morada do próprio terror. Milhas e milhas assim, em que o precário motor do caíque era o único deus a que a fé se apegava. Mas, felizmente, tudo acabou em bem, apenas no desconforto de uma molha da cabeça aos pés e na emoção gatafunhada de um poema.

Constâncio não antecipa

A Reuters difundiu ontem a alvoroçada notícia de que um vice-presidente do Banco Central Europeu, Vítor Constâncio, "não antecipa a saída da Grécia da Zona Euro". Justificadamente, a coisa afigurou-se à Reuters importante: tratava-se de declarações de um vice-presidente do BCE durante uma conferência em Hong Kong do Instituto de Regulação e Risco; e, sendo suposto que o BCE acompanha de perto a situação grega e dispõe, sobre ela, de informação que escapa à maioria dos analistas, a declaração de um seu vice-presidente seria certamente relevante e a ter em conta.
Não terá reparado a Reuters que Vítor Constâncio fez igualmente a relevante declaração de que a Grécia vai "enfrentar uma situação difícil" (coisa que ainda ninguém antes antecipara). Se tivesse reparado, decerto se teria informado melhor sobre o ex-governador do Banco de Portugal e a sua capacidade para antecipar seja o que for. Descobriria então, talvez com surpresa, que Vítor Constâncio só antecipa acontecimentos depois de eles terem acontecido e que, nas suas funções de regulador no Banco de Portugal, conseguiu a proeza de antecipar o que estava a passar-se no BCP, BPP e BPN apenas quando o escândalo apareceu escarrapachado nos jornais.
Assim, por vias travessas, a não-notícia da Reuters acaba sendo notícia. A de que o mais provável é que a Grécia saia mesmo da Zona Euro.
JN, 23/05/2012 – M. A. Pina

23 de Maio [1966]

O Redol não compreendeu ainda que, depois do Barranco de Cegos, terá de esperar muitos anos antes que nos habituemos a necessidade de lhe exigirmos outro romance. 

23 – Maio (quarta). [1990]

Ontem fui à inauguração da nova sede da Sociedade Portuguesa de Autores. Tinham insistido comigo, fui. A consagração do edifício não meteu cardeal a benzer as paredes com o hissope, mas meteu o presidente da República, que é no caso um cardeal laico. E esta foi a grande razão de eu lá ir. Chumbada imensa. Trago as pernas em saldo e aquilo implicável no fazer de estátua muitas horas, que foi suplício em que me não treinei no salazarismo. Primeiro houve que esperar a chegada do presidente e aguentar em cumprimentos circunstanciais a conhecidos e desconhecidos com apertos de mão e aperta-azeite. Depois foi a deslocação de toda a massa para a sala, atrás do presidente, que fora abrindo o seu sulco de bacalhoadas e abraços (eu tive um). Depois foi a sessão. Eu não queria ausentar-me antes do discurso presidencial, confiado em que tínhamos feito um curso de retórica com a rolha fascista. Qual quê. Havia cadeiras para senhoras e outras notabilidades, eu e o resto da plebe estivemos de plantão cá para o fundo. E aí aguentei a pé toda a viagem da oratória que lá da mesa nos infligiam. Houve um discurso curioso – naquilo que entendi – do jovem autor de letras João de Melo. Leio às vezes textos dele no «JL». Tem caco. Já o romance premiado é uma boa penitência feita das sobras (ainda!) do neo-realismo. E de vez em quando, na leitura, tinha de me sentar porque era penitência a mais. E ainda não concluí assim a tarefa. Lembro-me de que uma vez que me sentei a descansar, foi quando um filho (?), a propósito de o pai se queixar de tantos filhos, lhe disse assim com toda a educação:  
– Não fodesse tanto.
Isto, além do mais é insensato. Porque se o pai tinha, suponhamos, 10 filhos, só precisava de fornicar 10 vezes, ou menos, se houvesse gémeos. O que para uma vida é quase abstinência.
E quando regressava a casa havia como de costume um pedinte no metro. São normalmente cegos que lamuriam a sua desgraça por boca própria ou de intérprete ajudante, mas que nas paragens se mudam de carruagem com uma incrível rapidez para irem continuando a comover profissionalmente as almas mais sensíveis. Mas desta vez era um jovem, que trabalhava por conta própria, sem sócio na comoção profissional. E não era cego. O que lhe caracterizava as possibilidades de comover era um corpo desenculatrado nos movimentos, com as pernas, os braços, tronco e cabeça trabalhando cada um para seu lado. E feito o número do desengonço, não dizia nada e apenas estendia a mão. Eu conheço de já ter visto outros jovens com os movimentos desencontrados talvez de moléstias infantis, talvez de doença de Parkinson. Mas não sei porquê, nestes tempos de vigarice desenfreada e cheia de génio inventivo, admiti que aquele jovem talvez vivesse de nos aldrabar. Tive problemas de consciência à ideia de ser esmoler. E guardei as coroas. Mas de todo o modo, fosse ou não o jovem um hábil imitador da desgraça alheia, cobrou o seu «cachet» da exibição e alastrou de bem-estar a consciência das almas pias. E todos ficaram contentes. E todos ganharam o seu direito a um recanto no paraíso.

quarta-feira, 22 de maio de 2013

GAIVOTAS E COTOVIAS


Hoje de manhã, saía eu da piscina a caminho do autocarro, vem de lá uma gaivota em voo rasante e acerta-me com um ovo mole na testa. Mesmo em cheio, zás!, entre os olhos. Deixou-me num Cristo, a grande vaca.
Antigamente as gaivotas não se afastavam muito do mar. Hoje em dia invadem a cidade. Já me explicaram o fenómeno. Vêm ao cheiro de cevadoiro gratuito. Andam aí pelas praças e jardins umas velhas solitárias a entreter os ócios e a solidão atirando comida aos pombos. As gaivotas depressa descobriram o maná. E agora não querem outra vida. Vão lá para o mar, que foi para isso que Deus as criou. Agora na cidade, a bombardearem o incauto cidadão à saída das piscinas? É preciso descaramento!
Praga maior do que a das gaivotas, só a dos pombos. São aos milhares e emporcalham tudo. Não há monumento que resista a tanto dejecto. Embirro com os pombos. Metem-se-nos nas pernas, sempre arrufados, gosmentos, a arrastar a asa à fêmea: gu, gu, gu. Uns tinhosos. Estou mesmo agora a ouvi-los nas cornijas dos prédios do outro lado da rua: corru-gu-cu, corru-gu-cu, corru-gu-cu. Não se calam um momento. Que saudades me fazem das rolas da minha terra.
O arrulho das rolas da minha terra tem outra música, outra suavidade, outra poesia. Um cristão ouve uma rola a carpir amores empoleirada numa bétula e sente-se transportado das amarguras deste vale de lágrimas às alegrias do sétimo céu. Porque será que no Porto se não ouvem as rolas? Nem as rolas nem muitas outras aves da minha terra e da minha predilecção: o cuco, o mocho, a poupa, a andorinha, o gaio, a parpalhás, o estorninho, o peto-real, a cotovia.
De todas as aves canoras da minha terra, daquela de que eu mais gosto é da cotovia. É um prazer antigo, vindo lá dos confins da minha longínqua infância. Dos tempos em que meu pai me obrigava a ir tornar a água ao lameira e eu lhe dizia que tinha medo.
– Eu tiro-to – respondia ele.
E ameaçava-me com dois pontapés nos fundilhos para eu ir mais leve. E eu lá ia, rua abaixo, calhelha fora, a rapar a chinela e a maldizer a porca da vida. Chegava a uma chã de mato maninho interposta entre as terras de cultivo e os lameiros do vale, ouvia as cotovias, esquecia o medo e as ameaças e por ali ficava horas esquecidas a olhar para elas. Elevavam-se na vertical, asas numa roda-viva, suspensas do firmamento por um fio melódico, chirriuchiu, riu, chiuchiu, até ficarem reduzidas a um pontinho minúsculo na abóbada celeste. De repente partia-se-lhes a corda e caiam, também na vertical, asa morta em para-quedas, a esconder-se entre as carquejas. Mas logo outra se elevava, e, atrás desta uma segunda, depois uma terceira, uma quarta, dúzias delas. E todo o vale se transformava numa caixinha de música deliciosa, angelical, apaziguadora. Eu delirava com aquilo.
Se um dia entrar em depressão, não me levem ao psiquiatra. Levem-me para os montes da minha terra, ao cair da tarde, e deixem-me lá a ouvir as cotovias. Eu lhes garanto que, ao pôr-do-sol, estarei curado.
Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS II – Crónicas de Barroso (p. 57 e s.)

Santo António do Zaire, 22 de Maio de 1973

Santo António do Zaire, 22 de Maio de 1973 – Petróleo! Escrevo a palavra, creio que pela primeira vez, e quase que me admiro de a não ver alastrar no papel numa grande nódoa negra e gordurosa. Há conotações assim. Apesar de aberto e leve, o som tem no meu espírito um eco denso e pesado. Contemporâneo do advento triunfal na cena do mundo desse pus untuoso e fétido, extraído de abcessos recônditos da terra, nunca consegui acomodá-lo harmoniosamente nos sentidos e no entendimento. Sei que, onde ele aflora, nasce o oiro. Mas nem assim o amo. Ao ver do céu, há pouco, o primeiro poço a arder, perguntei a mim mesmo dentro do avião, apesar de o saber alimentado a gasolina, se aquela chama seria um lume de esperança ou um sinal de maldição. E pouco depois, junto de uma torre de perfuração, enquanto recebia explicações dos entendidos e pisava a massa betuminosa que saía das profundidades, ia pensando na lição que ali estávamos a dar ao indígena. Em vez de emprestarmos consciência racional à sua riqueza anímica, de lhe abrirmos o entendimento para as virtualidades da natureza que ama mas desaproveita, ensinamos-lhe a técnica de a destruir, de a violentar, de a esventrar e de a poluir finalmente com as fezes da sua própria alma queimada.

O ataque suicida

Do mesmo modo que, para um político, designadamente um governante, o melhor modo de manter a sua imagem a recato é não ter no passado, e se possível no presente, nada que o envergonhe (ou, não sendo ele de se envergonhar, que envergonhe os seus eleitores), está visto que o problema da independência dos jornalistas é terem vida privada.
Um jornalista com vida privada está sempre exposto a que um político, designadamente um governante, o ameace de a revelar publicamente. Eu, por exemplo, deixaria de escrever a maior parte destas crónicas se um governante me ameaçasse que, caso continuasse a fazê-lo, revelaria publicamente que ando com buracos nas meias, coisa que hoje já todo o Governo deve saber pois falei disso ao telemóvel com a minha empregada e o SIS está, como se sabe, na dependência directa do primeiro-ministro.
A jornalista do "Público" que agora se queixa de ter sido ameaçada pelo ministro Miguel Relvas com revelações sobre a sua vida privada no caso de persistir em investigar as suas relações com um certo (ou incerto) espião não se teria visto em tais apuros se não se desse ao luxo de, além de vida profissional, ter vida pessoal.
A modesta proposta que apresento à Comissão da Carteira Profissional é que seja vedado aos jornalistas, de modo a blindar a sua independência de ataques suicidas como o do "Público", ter vida privada.
JN, 22/05/2012 – M. A. Pina

terça-feira, 21 de maio de 2013

S. Martinho de Anta, 21 de Maio de 1977

S. Martinho de Anta, 21 de Maio de 1977 – Um filme que, por obra e graça, fiz passar de inventário biográfico a documentário cenográfico. Depois de muito batalhar, lá consegui que a objectiva, que porfiava em ter-me ao seu alcance, mudasse de direcção. E foram montes, abismos, horizontes, mamoas, alinhamentos, altares pagãos, inscrições, cavadores e sementeiras que ela acabou por registar na película, sem que ninguém suspeitasse de que aquelas imagens é que eram a minha verdadeira imagem. Cingidos a uma aparência que parece bastar-se, poucos dos muitos que julgam conhecer-me são capazes de compreender que só através da perene evidência destas realidades primordiais e ancestrais, com que, desde o nascimento, vivo identificado, o meu rosto tem expressiva configuração. Que é numa vessada que eu mourejo, numa encomendação das almas que canto, e nos socalcos de cada encosta que ganham sentido as rugas que me pautam a testa.

Cela, 21 de Maio de 1973

Cela, 21 de Maio de 1973 – Mais trezentos quilómetros de desilusão paisagística e humana. O embondeiro é, na verdade, o aborto da flora, a vergonha do reino vegetal. Com semelhante trambolho atravancado nos olhos não há beleza panorâmica possível. Só quem o tiver totemicamente tatuado na alma, mesmo como maldição, o pode amar. E o pior é que, quando ele falta, o quadro angolano fica vazio. Olho à roda. E a grandeza natural que me envolve – espraiada, preguiçosa, com um monte aquém e outro além a bocejar sem pedir licença – parece saudosa daquela elefantíase arbórea.
Quanto à desilusão humana, o embondeiro que a motiva é outro. Tem pernas e braços, naturalmente. Não há dúvida: o português foi incapaz de repetir nestas paragens africanas o milagre brasileiro. Lá, enraizou-se; aqui, não. Certamente porque lá o senhor e o escravo eram ambos emigrados e colonizadores. Estrangeiros os dois, tinham a mesma necessidade de sobrevivência e de entendimento. Apenas conjugados podiam triunfar. E reconstruíram juntos na terra alheia, com o mesmo suor, numa simbiose original, as pátrias nativas, até no paladar. Aqui, o branco foi e continua a ser intruso. Não houve comunhão de corpos e almas. Visito uma roça modelar. E desanimo. Um abismo intransponível, espacial e temporal, separa a casa grande da sanzala. O indígena não faz parte da família. Ficou longe dos afectos, dos sentimentos, da fraternidade e, até, da sensualidade. Do amor, numa palavra. Isolado na sua aldeia, segregado, é uma máquina útil que no fim do trabalho recolhe à arrecadação.

Perguntar ofende

Eu também recebo "clippings". No passado sábado, por exemplo, recebi dois "clippings" da TVI24, ambos com testemunhos abonatórios do omniministro Miguel Relvas que, depois da limpeza ideológica da Antena 1 na pessoa do jornalista Pedro Rosa Mendes, em que apenas apareceu envolvido de cernelha, parece agora ter-se decidido por pegar o bicho de caras.
Os jornalistas têm a ingénua convicção de que perguntar não ofende. Mas perguntar a um ministro coisas sobre as quais ele prefere não falar (por exemplo, sobre contradições em que terá entrado numa audição parlamentar), ofende e muito. Nada mais natural, pois, que o ministro ameace o(a) jornalista com um "blackout" do Governo e revelações, decerto picantes, sobre a sua (do ou da jornalista) vida privada.
Não havia assim necessidade de o deputado Matos Correia, do PSD, vir abonar que "[conhece] bem Miguel Relvas e [tem] a certeza de que ele não fez as ameaças de que é acusado; não há, por isso, motivo para que o primeiro-ministro lhe retire confiança política"; nem de o líder do PSD/Porto se mostrar convencido de que "ninguém vai imaginar que existiram pressões sobre os jornalistas" já que estes não são "susceptíveis de sofrer esse tipo de pressões, porque têm um código de ética que não lhes permite".
Testemunhas de defesa tão desastradas podem até levar a crer que o ministro fez alguma coisa repreensível.
JN, 21/05/2012 – M. A. Pina

21 de Maio [1966]

Sessão de autógrafos na feira do Livro para lançamento do novo romance do Redol: O Muro Branco.
Lá fomos fazer companhia ao romancista: eu, o Abelaira, o Carlos e o João José. Mas mal tivemos tempo de o abraçar. Os leitores chegaram com os livros e mestre Redol iniciou a faina terrível de grafar dedicatórias a desconhecidos.
Contemplei-os do meu vagar… Homens e, sobretudo, mulheres de destinos parados que pareciam cumprir o rito de buscar em redor qualquer coisa de misterioso, oculto num acto banal, para lhes atestar a existência.

21 de Maio de 1978


O chefe supremo desta caranguejola será um árabe de elite chamado ALGAZARRA.
Este sujeito, sabendo a pátria a braços com uma terrível crise de finanças e, sobretudo, de juízo, a entreter-nos com futilidades de linguística e quejandas! Que diria a isso o nosso erudito M. Rodrigues Lapa?

segunda-feira, 20 de maio de 2013

Vila Real, 20 de Maio de 1977

A província. O protoplasma da pátria. A substância onde se processa o metabolismo que lhe garante o equilíbrio homeostático. A arca das suas virtudes, a que nenhum mofo consegue esmaecer a pulcritude. A constância dos actos no tempo. Lá longe, na capital, é o efémero, o jogo permanente da novidade, o artifício em constante mutação, o inédito a cada hora, a mistificação diariamente assumida como um valor; nela, o duradoiro, a sinceridade rotineira, a petrificação dos gestos, a continuidade sem sobressaltos. As modas chegam, mas atrasadas, criam raízes, envelhecem sem dar por isso e perpetuam-se. Tornam-se arqueológicas e funcionais como os monumentos. Os hábitos fiéis às necessidades. A alma dos seres aliada à alma das coisas, e ambas na flagrante autenticidade do que não sabe nem pode mentir.

Luanda, 20 de Maio de 1973


A alma do negro será realmente um enigma, como me garantiu hoje um padre comilão num almoço de baptizado, ou será romba a compreensão do branco? Enquanto a família que me alberga e uma caterva de convidados se dirigiam à igreja, a meter a cabeça de dois neófitos na pia de água benta, fiquei de plantão à casa e aos acepipes na companhia de duas nativas, uma adulta, que vinha ajudar na cozinha, e outra adolescente, que tomava conta da filha mais nova dos patrões. Às tantas, a pequerrucha, num capricho, pegou numa régua e agrediu a guardiã, que, naturalmente, a desarmou.
– Pretas! Pretas! – gritou a fedelha em fúria.
– Bem sei que sou preta… – murmurou a mais idosa.
«Bem sei que sou preta» é exactamente o oposto de «bem sei que sou branca». E há quinhentos anos que as duas etnias se excluem mutuamente nos termos estritos deste dilema bárbaro.

20 de Maio de 1978

Como é sabido, foram os mestres do «bestiológico» que decretaram que a mulher encarregada de funções embaixatoriais passasse a chamar-se embaixadora, reservando-se o título de embaixatriz para as meramente esposas dos embaixadores. Com o nosso hábito da macaqueação, adoptámos logo a «novidade». Gostaria eu que eles nos explicassem porque é que não sujeitaram à mesma regra genial uma Catarina da Rússia, uma Maria José da Áustria, uma Teodora bizantina, ou qualquer das muitas imperatrizes por direito próprio ou assumido, passando a chamar-lhes imperadoras! Quanto à Josefina e à Maria Luísa de Napoleão, à Eugénia de Napoleão III ou à Carlota de Maximiliano do México, as só esposas, essas continuariam a rimar honestamente com as meretrizes. E por falarmos nisso. Não poderiam inverter a regra, chamando meretor ao profissional do meretrício masculino, que existe?... Ou não lhes parece lógico? Corno actriz, actor? Em francês diz-se Madame le Professeur, Madame le Docteur... Mas as peculiaridades linguísticas não são matéria de discussão!

20 – Maio (domingo). [1990]

Anteontem telefonou-me um moço do liceu a pedir-me num encontro com mais dois colegas para lhes falar de Aparição. Isto porque umas três ou quatro turmas tinham ido em camionetas a Évora onde se passava o romance que tinham dado nas aulas. Disse-lhe que não podia nem devia. O não poder vinha da escassez de tempo e saúde. E o não dever vinha de me não querer sobrepor à professora, até porque o autor de um romance não é a pessoa mais indicada para falar dele e diz por isso muitas vezes tolices. Um autor sabe quando muito o que quis dizer mas não o que disse. Mas o que o moço queria saber era se talou tal personagem tinham existido. Visitaram os sítios de que falo no livro? Todos. E tinham conversado com o Charrua e o Madeira Piçarra, que fora meu aluno e dirigia um jornal de Évora. Lá lhe disse que a Cristina existiu e existe ainda felizmente. Tem já 40 anos e um filho de 17 ou 18. Existiu o Alfredo, o dr. Moura, a Sofia, o Manuel Pateta – uns vivos, outros já mortos. Ora bem. Que é que o moço queria saber, com isto? Porque é que seduz conhecer uma realidade que a ficção utilizou? É uma questão de sempre e dela devo já ter falado. E o que devo ter dito é simples. O que se procura nesta curiosidade é ver na realidade o que é do domínio e sedução do imaginário. O que se pretende é integrar um no outro. O que se pretende é meter o imaginário no real e ver neste a transfiguração daquele. O que se pretende é o impossível. Mas para o homem só o impossível é que é bastante. Muita gente foi já a Évora por causa do livro. E de um sei eu – porque o escreveu – que se pôs a olhar o real por mim descrito, para o confrontar depois e de seguida com o que eu desse real escrevi. Naturalmente, o resultado deve ter sido decepcionante. Foi pena que o moço – mas isso não lho disse – não questionasse sobre o livro o senhor comuna presidente da Câmara. Que é que o tipo lhe iria dizer? Talvez apenas que eu era um inimigo das classes trabalhadoras e não tinha proposto no livro a grande conveniência justiceira da futura reforma agrária.
*
Fomos almoçar a casa dos Bragas no Penedo, almoço de anos da Helena Sá. Duas filhas do Mário Braga, genros e netos. E nós. Comeu-se, falatou-se, ajeitando à circunstância a alegria que foi possível. E a certa altura reparei numa gravura a cores da Luísa Bastos. Tenho dela também uma gravura linda que representa uma criança num vestuário vaporoso com umas calças apertadas nos tornozelos.
– Da Luísa Bastos? – disse eu à Helena, lendo o nome na gravura. – A propósito: que é feito desta rapariga que já não vejo há imenso tempo?
– Mas há imenso tempo que já morreu.
Olhei de novo a gravura, transfigurada agora pela morte E olhei de novo aqui em casa a minha gravura e achei-lhe uma beleza nova e terrível à memória para nunca mais de quem a criou. E logo que chegamos a casa, instalo-me no meu canto do escritório, que é onde habita a minha parte consuetudinária de ser vivente. Releio o Kant da Critica do Juízo porque não é fácil entender bem as suas razões de o intercalar entre as outras duas críticas. Mas estava nisto quando a Regina me chamou aos gritos. Estava nauseada, no limite do vómito, cheia de repugnância no seu ser moral. Aqui no quintal pela Primavera sobretudo, o chão aparece aqui e além revolvido, com a areia em montículos à superfície. São as toupeiras, essa praga subterrânea como as revoluções esquerdinas. E em vistas disso a Regina trouxe de Melo um aparelho de lata que lhes trama os seus desígnios de sapa. É um tubo que se ajusta ao buraco da sua galeria e que lhes permite a entrada mas não a saída. O grave problema depois é matar o bicho que está vivo na prisão. O método prático, usado na minha aldeia para as ninhadas de gatos recém-nascidos e que perturbam pela abundância o equilíbrio ecológico, é dar-lhes banhos de imersão. A Regina tentou o método com a toupeira viva na sua prisão de lata, mas o balde em que a mergulhava não tinha fundura bastante para ela se decidir ao suicídio. E então erguia o gargalo na sua teimosia em continuar a estar viva para nos lavrar o quintal. E assim não houve outro remédio senão abrir-lhe a célula prisional e dar-lhe logo uma sacholada. Mas não se deu por convencida logo à primeira e houve que repetir. Quando fui ver o que havia, a Regina estava com eructações dos seus remorsos de assassina e o bichinho estava estendido e convencido. Não o examinei de perto. Pareceu-me um rato, sobretudo pelo negro da pele e pelo rabo comprido. Já não via toupeiras creio que desde a infância na aldeia. E confrontada esta com as que tinha na memória, não estava parecida.

domingo, 19 de maio de 2013

Luanda, 19 de Maio de 1973


Escrevo diante da mesma paisagem feia para que abri os olhos de manhãzinha e que parece abafar como eu. Paisagem seca, pulverulenta, ardida, de vegetação precária e rasteira, que algumas cabras famélicas depenam e algumas presenças arbóreas tentam em vão erguer: embondeiros disformes, edemaciados, monstruosos; mangueiras sombrias, espessas, maciças; mamoeiros esgrouviados, sintéticos, de testículos ao pescoço. Numa aplicação esforçada, tento compreender este chão em si mesmo, especificamente, mas os sentidos refilam, inseguros fora dos seus padrões habituais – transmontanos, alentejanos ou beirões. E, por mais que não queira, sinto-me nele intruso, rejeitado, excluído, com a impressão incómoda de que, se morresse aqui, seria mais facilmente comido por dois abutres que me espreitam da ponta de um galho seco do que pela terra da sepultura.
Em mangas de camisa, fui há pouco visitar a cidade. E o largo passeio pela urbe apressada, enfática, leviana, apertada num cinturão de muceques, agoirento anel de Saturno, não me desanuviou a alma. Pelo contrário. Quando regressei a casa, trazia duas metrópoles nos olhos doridos: uma, arrogante, retórica, de papelão, a negar o preto; outra, calada, tentacular, eczematosa, a negar o branco. Uma que parece um delírio febril de sitiados; outra um acampamento sorna de sitiantes.

19 – Maio (sábado). [1990]

E agora? Eu não sei como é que os escribas meus irmãos se aguentam com o vazio que nos torna ocos no ser-se humano quando acabam um livro. É terrível. Não estou ainda propriamente esvaziado do romance que escrevi pela razão de me preencher a expectativa do que vão dizer-me. Porque o livro sai esta semana e há que digerir os comentários dos críticos e leitores comuns. Mas é isso subsidiário como a arrumado do que resta de um banquete no lixo e louça para lavar. O que me aflige é pois o que se vai seguir. Mais romance não, porque estou farto de literatura e as contas do irmão corpo estão a saldar. Mas ser vago e aleatório como as moscas também não. A França está a descobrir que eu existo e isso também me pareceu o lado mais oculto da vaidade e comprazimento. Ainda há dias, não o disse ainda?, um crítico declarava que Aparição era um très grand roman. Descontada a amabilidade e mesmo possíveis relações de compromisso com a editora, fica ainda substância alimentícia para o meu contentamento. Mas e agora? Pois bem, agora volto à filosofia. Não à sua secura deontológica mas a uma mistura com o ingrediente emotivo que já entrou ao serviço em Invocação e mesmo em Carta ao Futuro. E para dizer o quê? Para dizer tudo. Espalhei pelos meus livros muita matéria aproveitável que posso meter ao serviço. Estou a reler o Kant e o Heidegger e vou regressar a Hegel e Croce, outros luminares. Mas há o receio de que se me preguem ao miolo e se intrometam onde não quero que sejam chamados. Sentimento estético, verdade, equilíbrio interno, sagrado, História e o mais da minha tralha especulativa são uma promessa de me desenrascar. Terei assim a possibilidade de dizer coisas com molho sensível para juntar a ideia à emoção. Talvez vá começar a aventura com uma meditação sobre o FIM, que é a morte mais viável para depois glosar no resto. O fim arrasta consigo uma conotação que pode modular o que se seguir. Vou ver se me dou o sinal de partida como no atletismo. E se rebentar antes da meta, paciência. De bons propósitos está o inferno cheio. Mas a terra e o paraíso também. Quero lá saber. Quero é não cair no desemprego que só dá trabalhos às instituições de beneficência. O resto que se lixe. Não quero esmolas, quero viver do meu trabalho. E morrer, se for caso disso, de ferramenta nas mãos. O resto que se coza.
*
O sol que escorre da janela e se derrama não chão e aí brilha na intimidade fechada do escritório. Um pássaro que canta no incerto e irreal. Uma flor. Um cão que ladra no inimaginável. O rumor de um carro que passa na estrada. Tudo isto e o mais são o real imediato para uma atenção imediata. Mas de tudo isso transborda um mistério oculto para quem entende e interroga. Como é que só na arte esse mistério se diz existir? A arte não o inventa, mas apenas o sabe revelar. Porque ele está em todo o real, na sua parte oculta que espera uma atenção desprevenida para vir até ela. Todo o real o mais sabido e exposto e imediato e pobre estende atrás de si um prolongamento de sombra e invisível até à sua dissolução no infinito inatingível. O mistério não começa na arte mas na nossa profundeza de o enfrentar. Ele não começa na arte porque nela só começa a sua revelação para quem o não souber ver. Olha. Escuta. E a vida se te desdobrará na infinitude que é sua. E tu a viverás sem a desperdiçares no incomensurável da sua grandeza. E terás vivido sem nada deixares atrás quando ouvires o sinal de que é a hora.

sábado, 18 de maio de 2013

PRIMEIRO DE MAIO

Farta-se um homem de sonhar e, vai-se a ver, nicles. Vem isto a propósito do 1.º de Maio, o qual, como toda a gente sabe e a folhinha o indica, neste ano caiu a um domingo. Passei a semana a sonhar com um dia de sol. Pode-se lá imaginar um 1.º de Maio sem sol? Posso lá imaginar um 1.º de Maio fora da aldeia? Vim por aí acima a correr, todo alvorotado. Deitei-me cedo, decidido a madrugar e ir por esses campos fora ao encontro do Maio Moço. Passei a noite a sonhar com um sol claro, uma aragem branda, uma aleluia de pássaros, uma embriaguez de perfumes. Cheguei ao requinte de colher flores e toucar-me com elas. E até que nem ficava mal uma capela de boninas sobre cabelos grisalhos. Já vi figurações dessas a representar Baco ou Noé. Em sonhos tudo nos é permitido.
Acordo e que vejo eu? Um céu borrascoso, um frio de pôr um urso polar a bater o dente, os pássaros caladinhos, as flores de corola encolhida, os campos desertos. Uma desolação.
Colo o nariz à vidraça. Hirta sobre um tronco do castanheiro, a poupa parece rezar o terço. Lá para o fundo do vale, o cuco ensaia uma ária, mas cala-se. Deve ter-lhe entrado água para a gaita. Na horta, preso por uma travadoira ao tronco da macieira, cauda imóvel, orelha murcha, beiça descaída, o burro medita, indiferente à chuva que lhe fustiga o canastro. Entreabro a janela e grito-lhe:
– Eh, parceiro?
O tipo estremece e abre os olhos. Afinal estava a passar pelas brasas.
– Que me dizes a esta invernia? – insisto.
Lança-me um olhar desdenhoso de sábio da Grécia e volta a fechar os olhos.
– És burro e basta! – volto a gritar-lhe.
Entreabre a beiça e faz:
– Brrr!
Não compreendo a réplica, mas coisa boa não deve ser.
Rua abaixo, tão ensimesmado como o burro da horta, aproxima-se um vizinho de galochas, samarra, barrete de orelhado, guarda-chuva aberto na mão esquerda e sachola na direita. Saúdo:
– Eh, Pitrascas? Que me dizes tu a este estuporado 1.º de Maio?
– Estuporado?
– Feio…
– Para mim está bonito.
– Bonito?!
– Então não está? Depois de seis meses de seca estreme, com tudo a morrer de sede, esta chuvinha é oiro!
– É oiro, é oiro. É o que vós sabeis dizer: é oiro…
Fecho-lhe a janela na cara e volto para a cama a resmungar: Que miséria de vida! Antigamente, só as raparigas é que me não compreendiam. Agora, já nem burros nem homens me compreendem. Vai-te Diabo para Gralhas![1]
Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS II – Crónicas de Barroso (p. 55 e s.)


[1] Segundo entendo, esta expressão, outrora muito usada em Barroso, deve estar relacionada com o hábito de, quando alguém entrava em casa dum vizinho, dizer:
– Deus seja aqui.
Ao que o dono da casa, ou alguém por ele, respondia:
– E o Diabo em casa do padre.
Ora como, a partir de 1922, passou a haver um seminário em Gralhas, as pessoas, em vez de mandarem o Diabo para casa do padre, passaram a mandá-lo para Gralhas.