sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

Tratado das paixões da alma

António Lobo AntunesAntónio Lobo Antunes - 21.01.2016 às 8h00

Pode crer, ficaria bem, talvez, por exemplo, o médico gostasse, talvez a senhora, dona Fernanda, se sentisse menos só em casa, iluminada pelas pétalas fosforescentes, se sentisse mais nova, se sentisse mais bonita, talvez que na pastelaria do quarteirão a seguir, onde bebe o seu chazinho à tarde no meio de solitários macambúzios, um sujeito bem apessoado, ou pelo menos razoavelmente apessoado, a mirasse rente ao cálice com um líquido branco num interesse discreto

Ilustração: Susa Monteiro

E agora, dona Fernanda? O seu marido morreu, o seu cão morreu, o seu filho vive na Suíça e não atende o telefone, a sua amiga Prazeres cortou relações consigo, convencida que a senhora andava a catrapiscar-lhe o marido, o médico não pára de avisá-la
- Atenção às gorduras
a desenhar círculos à volta dos resultados das análises, tirando os óculos no fim para suspirar melhor, a bater com a ponta da esferográfica num dos números
- Ai dona Fernanda, dona Fernanda
competente, amável, preocupado, por acaso viúvo também visto que duas alianças juntinhas num dedo e a roupa descuidada, às vezes com nódoas que nenhuma esposa consentiria, sem mencionar a falta de graxa nos sapatos, a senhora com vontade de responder-lhe
- Ai senhor doutor, senhor doutor
ao olhar-lhe as biqueiras, um homem não muito velho, nem sequer feio por acaso, que, a avaliar pelas pestanas, deve ter sido um bebé lindo antes de se transformar num adulto assim assim, um aperto de mão à entrada, um aperto de mão à saída acompanhado pelas palavras
- Ali ao balcão marque para outubro
já quando a senhora, dona Fernanda, a agarrar no puxador lembra-lhe as gorduras
- Cuidado com isso
a senhora a pensar que se fosse a médica e ele o doente lhe receitava uma bisnaga de graxa e um pano para avivar o brilho ao cabedal, uma das empregadas do balcão, a folhear outubro na agenda
-Tenho dia onze e dia vinte e sete, dona Fernanda
com anéis exuberantes, desses que se compram no metro a sujeitos acocorados num banquinho diante de um pano sujo, cheio de preciosidades de pataco, a senhora, dona Fernanda, a contemplar o que ela usava no indicador direito, um girassol de plástico enorme tapando-lhe o dedo todo
- Dia onze está certo
enquanto se imaginava com um anel idêntico
- Como é que me ficaria?
e ficaria bem, pode crer, ficaria bem, talvez, por exemplo, o médico gostasse, talvez a senhora, dona Fernanda, se sentisse menos só em casa, iluminada pelas pétalas fosforescentes, se sentisse mais nova, se sentisse mais bonita, talvez que na pastelaria do quarteirão a seguir, onde bebe o seu chazinho à tarde no meio de solitários macambúzios, um sujeito bem apessoado, ou pelo menos razoavelmente apessoado, a mirasse rente ao cálice com um líquido branco num interesse discreto, a perguntar ao empregado o seu nome, talvez que o sujeito a ganhar coragem para vir ter consigo
- Dá-me licença?
e a senhora lhe aceitasse a companhia recuando uma das três cadeiras que sobravam na sua mesa, dona Fernanda, talvez aceitasse também um novo encontro para o dia seguinte, talvez, mesmo, o deixasse pagar-lhe o chá dado que apesar de barato todos os cêntimos contam e a pensão do seu marido acanhada, uma sopinha e uma maçã ao jantar e pronto, um arrozito com um terço de uma lata de atum ao almoço e entre o almoço e o jantar o luxo do chazinho, a senhora para a empregada das consultas, depois dela lhe entregar o cartão de utente com o dia onze de outubro escrito debaixo do dia vinte e seis de março de hoje
- Desculpe o atrevimento mas importa-se de me dizer onde comprou o anel do girassol?
confirmando que a um marroquino do metro a quem tinham acabado os girassóis mas não os alfinetes doirados com uma pantera pronta a saltar, ideal para a gola do casaco na qual se espetava com um alfinete, experimentou ao espelho e sentiu-se melhor com aquilo, alegrava-lhe a roupa, alegrava-lhe as feições, o sujeito do cálice, respeitoso
- Não me leve a mal dizer isto mas de pantera parece uma actriz
e a senhora, dona Fernanda, não lhe levou a mal, a senhora, dona Fernanda, contente, a senhora, dona Fernanda, quase a sorrir, a senhora, dona Fernanda, a sorrir, a senhora, dona Fernanda
- Muito obrigada
a inchar na blusa, o sujeito, lisonjeiro
- Olhe que estou a ser completamente sincero
passando o indicador, ao de leve, no bicho, por si, dona Fernanda, até podia ter carregado um bocadinho, o sujeito funcionário público
- Sou funcionário público
num ministério ou assim, pareceu-lhe que um ministério, o sujeito contínuo num ministério, tão educado
- Vemo-nos amanhã?
a pagar-lhe de novo o chá, a senhora, dona Fernanda, coquete
- Quem sabe?
mas a dizer que sim com a cabeça, isto é a cabeça, independente de si, autónoma
- Sim
a sua boca, independente de si, autónoma
- Claro que sim
e a senhora, dona Fernanda, feliz que tudo nela lhe escapasse, a aquecer a sopinha no fogão apercebendo-se que cantarolava, apercebendo-se que as duas assoalhadas mais bonitas, apercebendo-se que o sofá aguentava apesar do marido da dona Prazeres, que cortou relações consigo por supor, injustamente, que a senhora, dona Fernanda, o catrapiscava, a garantir que era difícil abraçá-la numa coisa com uma das pernas meio solta, não cessando de avisar
- Vou cair.

sábado, 16 de janeiro de 2016

Derrota ideológica e vitória política

Opinião

Muitas vezes pergunto se a maioria daquilo que hoje passa por ser um radicalismo da esquerda (e que a direita saliva ao ouvir) não é pouco mais do que moderadamente social-democrata ou democrata-cristão.

Uma coisa a esquerda deve compreender com toda a clareza: a direita venceu a batalha ideológica nos últimos anos. Mais: essa vitória tem profundas repercussões nos anos futuros e molda a opinião pública. É uma vitória muito perigosa e pegajosa, porque se coloca no terreno daquilo que os sociólogos chamam “background assumptions”, molda o nosso pensamento sem trazer assinatura, parece a “realidade” quando é uma construção ideológica. No entanto, convém não confundir duas coisas distintas, a ideologia e política. E a direita perdeu a batalha política, o que ajuda a ocultar a sua vitória ideológica. O problema é que a solidez da vitória ideológica é maior do que a solidez da vitória política.
Para começar, obrigou-me a contragosto a ter que retomar uma linguagem esquerda-direita, que de há muito penso estar ultrapassada e ter mais equívocos do que vantagens. Sim, já sei, conheço a frase de Alain sobre que quem pensa que não é de esquerda nem de direita é de direita, mas hoje a frase oculta mais do que revela.
Considero este retorno a um quadro de dualidades, que só pode ser usado numa perspectiva histórica ou sentimental, um dos estragos mais recentes sobre possibilidade de se sair de uma política do passado. Pode servir para dar identidade, mas explica cada vez menos o que se passa. Um exemplo, é a crítica ao consumismo oriunda da esquerda que preparou o terreno e encaixou perfeitamente na crítica da direita ao “viver acima das suas posses”, em ambos os casos centrando-se na culpabilização dos consumos típicos da classe média. Mais do que de esquerda e direita, estas posições são socialmente reaccionárias.
Num país em que a construção de uma classe média é recente e traz consigo uma nova liberdade face à pobreza e à memória recente da pobreza, isso significa pôr em causa muitos aspectos do mecanismo de elevador social e abre caminho, por exemplo, à negação de que a educação possa ser um elemento fundamental dessa ascensão social. Alguns autores usam a crítica à ideologia republicana da “escola” para pôr em causa aquilo a que chamam o “mito” da educação.
A verdade é que em termos ideológicos, e também em termos políticos, passámos do cinema para a lanterna mágica. Andámos para trás, e isso acontece mais vezes do que aquilo que se deseja. Com a experiência de um Tea Party à portuguesa, ficamos “liberais” à americana. Por isso, lá tive, a contragosto e moendo-me todo, que voltar a falar a linguagem paupérrima da dualidade esquerda-direita.
Este retorno ao dualismo esquerda-direita foi uma vitória do PP de Monteiro-Portas e do Bloco de Esquerda. A sua vítima foi o centro político e o antigo PSD reformista. Ver o PSD de Passos e seus amigos a aceitar com toda a naturalidade serem classificados de direita, foi uma ruptura clara e explícita com o PSD de Sá Carneiro. Do outro lado, o PS evitou cuidadosamente auto nomear-se de esquerda, como se a palavra tivesse sarna, já para não dizer que os diminuía face aos seus novos amigos da banca e dos negócios nos últimos anos. A “terceira via” foi o caminho. Renderam-se todos aos “mercados” como Deus ex machina da política e isso desarmou-os ideologicamente.
Por isso, todo o espectro político está puxado à direita e, por reflexo, deixou apenas franjas na esquerda. As verdadeiras fracturas são hoje de outro tipo e não ganham nada em serem pensadas na dicotomia esquerda-direita. O caso mais flagrante é a questão da democracia e soberania, a perda de poderes do voto dos portugueses, cujo parlamento não tem capacidade orçamental, e a entrega à burocracia transnacional de Bruxelas dos principais instrumentos de governação de um país que era suposto ser independente, ou seja, é mais importante a posição face à “Europa”. E aqui a divisão esquerda-direita não é fácil de fazer.
Mais relevante para perceber o que se passou é ver como o programa social virou parte do centro e da direita para o radicalismo e puxou parte da esquerda para ocupar esse centro. Será que a esquerda não se interroga se muitas das medidas que hoje enuncia como sendo o supra-sumo da esquerda, como seja a reposição de salários e pensões, não são propriamente de esquerda, e só se tornaram de esquerda pela radicalização da direita? Muitas vezes pergunto se a maioria daquilo que hoje passa por ser um radicalismo da esquerda (e que a direita saliva ao ouvir) não é pouco mais do que moderadamente social-democrata ou democrata-cristão.
Ainda recentemente ouvi com atenção uma intervenção de Marisa Matias fazendo para mim uma classificação interior daquilo que era ideologicamente de esquerda e, com excepção da questão das privatizações versus nacionalizações, tudo era da mais pacífica doutrina social da igreja, podia ser dito pela Caritas, por um democrata cristão ou um social-democrata se ainda os houvesse. Até o Papa Francisco, nestes termos, estaria muito mais à esquerda.
O mal é da Marisa Matias? Não, é de nos termos deixado enredar numa confusão entre o interlocutor e o conteúdo da interlocução. Por isso, exames, pensões, reformas, feriados, tudo passou a ser não apenas de esquerda, mas do radicalismo de esquerda, apenas porque só partidos que se auto-classificam de esquerda o fazem. Aceitar que alguém diga isto sem um atestado de ignorância ou uma gargalhada mostra a nossa pauperização política e ideológica.
É por isso que um deputado do ex-PaF se dizia muito surpreendido por o Bloco de Esquerda defender o feriado do Corpo de Deus, sem perceber que o problema é ele ter colocado uma vulgata do “economês” acima de um dia em que se reza ao divino e em que a Igreja quer que as mundanais preocupações dêem lugar à fé. O que se passou é que a radicalização da direita deixou um terreno vazio ao centro que faz com que uma esquerda moderadíssima pareça o bolchevique com uma faca entre os dentes.
A aceitação de que a classificação política dos outros seja feita pela direita radical, coisa que a ala direita do PS interiorizou completamente, é um dos aspectos dessa vitória ideológica. A direita mais radical interiorizou em muitos portugueses um modo de pensar, uma maneira de defrontar os problemas, uma forma de questionar, uma interpretação da vida social, da economia, do estado, que é de facção, mas que muitos aceitam sem questionar.
O esplendor dessa vitória ideológica surge quando um qualquer jornalista puxa do coldre a pergunta “quanto custa?” e “quem paga?”, sempre que se fala de salários, pensões, reformas, diminuição dos horários de trabalhos, qualquer coisa que diga respeito ao mundo do trabalho e não faz o mesmo em todas as outras circunstâncias. Já viram um jornalista confrontar um gestor ou um empresário com a pergunta de “quem paga?” e “quanto custam’” os erros de gestão, a falta de competitividade das empresas devida à má qualidade dos seus empresários, a fuga ao fisco “legal”, etc?
Já viram um jornalista, com a mesma imediaticidade pavloviana do “quem paga?”, perguntar a um banqueiro se ele acha justo que os erros de gestão da banca tenham que ser pagos pelos contribuintes? Não, porque o jornalista já deu na sua cabeça a resposta ideológica, “é preciso salvar o sistema financeiro”.
Por que razão não há sanção moral pública com as muitas pessoas com riqueza acima de um milhão de euros que estão a fazer à pressa doações para escapar à eventualidade de o governo PS criar um imposto sucessório, ao mesmo tempo que não perdem oportunidade de penalizarem moralmente os mandriões dos trabalhadores dos transportes?
É isto a fractura entre a esquerda e direita? Não, é uma fractura que um homem ou mulher honesto, podem colocar noutras palavras como seja a decência. Se admitirmos que há “bom senso” no pensamento, então também podemos admitir que o “bom senso” da ética é a decência.
Recoloquemos aí muito daquilo que é hoje uma falsa fractura ideológica, não porque isso seja um limbo ideológico, mas porque essa recolocação ajuda a limpar o terreno. Depois podemos partir para as fracturas ideológicas do passado, que conhecemos como de esquerda e direita e analisá-las e teremos algumas surpresas pela inversão de alguns papéis. E depois podemos voltar ao limbo inicial para ver se ele subsiste para além de um sistema de valores e se o podemos arrumar de outro modo, limpando-o da superioridade moral que acarreta o uso de valores em política. Para combater a ideologia da direita radical precisamos de algum retorno à moralidade, como os espanhóis compreenderam com as suas “marchas pela dignidade”, e depois então vamos à política pura e dura para nos desentendermos, a boa coisa do debate em democracia e liberdade.