terça-feira, 30 de abril de 2013

S. Martinho de Anta, 30 de Abril de 1975.


ECO

Ouvi o aviso, voz adivinhada.
E sou agora um homem prevenido:
Valho por dois mortais angustiados.
Jogo um jogo perdido,
A ver a perdição nos próprios dados.

Miguel Torga

segunda-feira, 29 de abril de 2013

Coimbra, 29 de Abril de 1975


Meu dito, meu feito. Depois do amuo, a reacção raivosa dos vencidos. Vencidos menos pelo significado numérico dos votos do que pela maneira ressentida como vivem a sua condição minoritária. O que devia ser um íntimo contentamento colectivo – cada português a felicitar-se de pertencer a um agregado humano que depois de um cativeiro de meio século, acrescido de um inesperado surto de medo que parecia não ter fim, foi capaz de uma atitude cívica exemplar –, é motivo de desespero para todos os derrotados. Não sabemos perder nem ganhar. Se perdemos, odiamos o vencedor, e fazemos tudo para lhe tirar da cabeça a coroa de louros; se ganhamos, ninguém nos atura, porque falseamos a dimensão da vitória na expressão empolada do triunfalismo.
Miguel Torga

29 de Abril [1966]

Burburinho ao longe, no Rossio… Corri com o coração trémulo e esperançado em assistir talvez ao protesto público contra os assassinos de Humberto Delgado, por exemplo.
Mas qual! Enquanto um polícia risonho levava um pederasta de rua para a esquadra, a multidão atrás ria em chocarrice plena…
Protestava? Aplaudia?
Não sei… Desfazia o tempo em cisco de sermos portugueses sem presente.

29 de Abril de 1978

Fala o amoroso não correspondido: «És a voz de que eu sou o eco, o corpo de que eu sou a sombra, o dia e a luz de que eu sou a noite e a escuridão, a vista de que sou a cegueira! Pior, és o ar que respiro, e cujo sopro me matai»

29 – Abril (domingo). [1990]

       Hoje o Gilo faz 48 anos. Quase cinquentenário – digo-lhe –, já um período para haver História. E para comemorarmos o feliz evento, vamos inaugurar o almoço de Verão na Feira Popular. E enquanto esperamos pela hora, ouço em «disco compacto», que ele me ofereceu, trechos de Bach (Fantasia, Fuga, Corais). É uma música de órgão e assim mesmo logo ritual ou sagrada. Pergunto-me porque tanto me emociona e não sei bem. Música de largos espaços mas que não tem nada que ver com o carácter espacial da de um Wagner ou da Sinfonia do Novo Mundo de Dvorak. Porque o espaço destes é da superfície da Terra e o de Bach do Universo, de um espaço vazio e cósmico, do interior do que existe, do seu Ser. Música do infinito e do sem-tempo, de um mundo desabitado, confrontado com a divindade, como se antes mesmo da sua criação. O que em mim nela escuta é a pureza do meu silêncio interior, a suspensão do que em mim respira e sente, de uma graça que sobre mim descesse e me despegasse de tudo o que há de terreno, a eternidade do meu corpo, transfundido de tudo o que nele é perecível e prometido à morte. Porque é no meu corpo que a escuto, no transcendente da sua miséria e degradação. Música de Bach. Música das constelações, de astros mortos perdidos no impensável do infinito. Alegria calma de existir. Sagração de mim.
*
       Tudo tem um outro de si, que é o inominável e irredutível. Porque darmos um nome é trazê-lo à nossa posse, dominá-lo, criá-lo na ordem das coisas. Mas se o nomeamos e o materializamos em coisa, ele exige um outro além de si, ou seja do que já era um outro do outro. E isto indefinidamente, porque o limite de tudo é o seu mistério, o incognoscível da noite contra a qual a luz pode existir. E é porque o mistério é intangível, que só a arte o pode revelar. Ou seja a única face visível da sua invisibilidade.
VF

domingo, 28 de abril de 2013

Coimbra, 28 de Abril de 1977


PÁTRIA

Foste um mundo no mundo,
E és agora
O resto que de ti
Já não posso perder:
A terra, o mar e o céu
Que todo eu
Sei conhecer.

Foste um sonho redondo,
E és agora
Um palmo de amargura
Retornada.
Amargura que em mim
Também nunca tem fim,
Por ter sido comigo baptizada.

Foste um destino aberto,
E és agora
Um destino fechado.
Destino igual ao meu, amortalhado
Nesta luz de incerteza
E de certeza
Que vem do sol presente e do passado.

sábado, 27 de abril de 2013

Coimbra, 27 de Abril de 1977


A sedução do poder! O deleite com que o saboreiam muitos dos que ainda há pouco juravam abomina-lo! Sei que poucos escapam ao seu fascínio, e de que disfarces é capaz. No próprio acto criador se acoita. Mas referia-me ao poder concretamente exercido, a nível de mando. O comportamento desses estadistas de pronto a vestir! O que eles dizem e o que eles fazem! Parecem metidos numa outra pele. Novos penteados, novas gravatas, novos gestos, nova gravidade. São agora mais pernéficos, mais solenes. Adquiriram, sobretudo, uma versatilidade mental e moral inesperada. Como os oráculos, tudo o que lhes sai da boca tem dois sentidos. Falam sempre a cobrir a retirada. Às vezes apetece pôr-lhes um espelho diante dos olhos. Mas talvez fosse inútil. Cegos de felicidade, como poderiam compreender que são uns pobres bonifrates, ao mesmo tempo de boa fé e de má consciência?

Coimbra, 27 de Abril de 1974


Ocupação das instalações da Pide. Enquanto, juntamente com outros veteranos da oposição ao fascismo, presenciava a fúria de alguns exaltados que reclamavam a chacina dos agentes, acossados lá dentro, e lhes destruíam as viaturas, ia pensando no facto curioso de as vinganças raras vezes serem exercidas pelas efectivas vítimas da repressão. Há nelas um pudor que as não deixa macular o sofrimento. São os outros, os que não sofreram, que se excedem, como se estivessem de má consciência e quisessem alardear um desespero que jamais sentiram.

27 de Abril [1966]

Com a melancolia de quem gastou tanta vida com sombras, pus-me hoje a recordar as pessoas que, no escoar dos anos, têm passado pelo escritório onde trabalho no Tivoli. Lembrei-me sobretudo de duas. Primeiro, do António Botto que lá aparecia às vezes perto das onze horas da noite a desafiar-me para uma volta de conversa na Avenida. Aceitava, claro, e durante duas horas ouvia histórias de perfídia doce ao grande poeta que, como por acaso (tal qual nos versos), empregava expressões em que as palavras adquiriam significados imprevistos.
Assim numa dessas noites de vadiagem, referindo-se a certo realizador francês, explicou-me:
Tem um admirável estilo pederasta!
O outro visitante era o Manuel Ribeiro de Pavia.
Estou a ouvi-lo furioso contra um amigo comum:
Não é Poeta. É um mentiroso!

27 – Abril (sexta). [1990]

       Hoje vou ao médico para tirar a limpo a coisa suja de que falei há dias. Mas antes disso, aproveitando o «benefício da dúvida», fui ao correio e às livrarias. Hoje, aliás, foi dia de correios porque já de manhã fui ao de Alvalade mandar em provas o romance ao Joaquim Vital – que o leu dactilografado e gostou em força. Bicha à minha espera, como é óbvio, e exercício de perna e paciência como é óbvio também. E agora fui de novo para nova bicha que me esperava na avenida de Roma. E havia que deixar na Bertrand da dita as folhas do contrato da editora. A Barata tem uns banquinhos para uma leitura preliminar e repouso da cultura que é sempre pesada. Repousei. Mas mesmo assim cheguei com a carga das pernas que me vão dando negas indecentes. Ao que se chega. O meu raio de acção é o das galinhas, mas a capoeira fica-me cada vez mais longe do que isso. Cheguei estoirado. E talvez por isso, já mais chegado ao galinheiro, interceptou-me um indivíduo dos seus 40 anos, magro, muito vermelho (teria vindo a correr?) e uns olhos saídos de rã. E gentilmente perguntou-me:
       – O senhor não é fulano?
       – Sou – disse-lhe eu, cheio de vedetismo.
       – Eu nunca li nenhum livro seu, mas conheço-o dos jornais.
       E sem pensar, disse-lhe com humildade e sorriso de charme:
       – Então leia.
       Mas o que era em mim um pedido saiu-me em tom categórico de uma ordem. E o homem diz-me qualquer coisa que não entendi e retomou a embalagem que trazia. E eu fiquei fulo comigo por uma vez mais não ser capaz de obedecer às recomendações que me dou.
       Posto o que vou descansar no sofá do cansaço e da chatice da desobediência. . 
*
       Fui ao médico Valentim de Carvalho. Vim do médico Valentim de Carvalho. No intervalo não aconteceu nada de grave. E nesse caso, aguardo a próxima etapa. Assim me tem decorrido toda a vida – ir avançando sempre por etapas. Há os felizes que só têm uma e com muitos anos de intervalo.
*
       O Lúcio está a ler em dactilografado o meu Em Nome da Terra. Diz que está a gostar muito. Mas o que mais me agradou foi dizer-me que durante a leitura vai ficando com mais amor à vida.
*
       Os angolanos das várias ideologias (no fundo a da UNITA e a comunista do Governo, a do MPLA) estão reunidos em congresso com vistas à preparação de um entendimento para a paz. O resultado do que ao ouvido de ambos foi soprado pela América e União Soviética (quando voltará ela, a propósito, a chamar-se de novo Rússia?)
*
       E de notícias quentes é a acelerada reunião das duas Alemanhas, enquanto a União Europeia é um sinal de rápida convergência. Como as guerras em grande estão fora de uso, o espectro de uma Alemanha reunificada não prevê tiros de canhão mas de marcos pesados. Menos sangue, mas mais quê? Aliás, a Europa unida faz-me muita confusão entre a necessidade de se ratificar a redução fatal do espaço europeu e a necessidade de cada um ser quem é. A ver se me ponho a reflectir sobre o caso.
VF

sexta-feira, 26 de abril de 2013

"Viver sem dinheiro"

A ex-psicoterapeuta alemã Heidemarie Schwermer, hoje com 69 anos, tornou-se uma celebridade (um documentário sobre ela foi exibido nas TV de 30 países) por viver há 16 anos "sem dinheiro". Pouco depois dos 50, abandonou o emprego, doou o que tinha e passou a viver fazendo palestras e outros trabalhos apenas a troco de tecto e comida, instalando-se em casa de amigos ou de pessoas que vai conhecendo, que também lhe dão a roupa que veste e lhe pagam tudo o resto, do cabeleireiro aos transportes.
"Muitas pessoas têm problemas", explicou à BBC. "Eu escuto-as e ajudo-as a pensar sobre as suas vidas". Isto é, continua a fazer psicoterapia, só que, agora, é paga em géneros. Prescindiu do intermediário geral das trocas e redescobriu a troca directa. E, assim, terá encontrado – diz – a felicidade.
Claro que as coisas não são tão simples: "Testemunho milagres diariamente. Por exemplo, no início, encontrava comida. Pensava nas coisas e depois encontrava-as na rua ou as pessoas traziam-mas". A psicoterapeuta acredita "que estes milagres acontecem devido à força do pensamento".
O dinheiro não faz, já se sabia, a felicidade. No entanto, é com dinheiro que se compram muitas das coisas que fazem a felicidade. O segredo de Heidemarie é que consegue, pelos vistos, obtê-las com "a força do pensamento". Ou então com o dinheiro dos outros. O que, vendo bem, não é tão incomum quanto isso.
JN, 31/07/2012

26 de Abril de 1978

O culto da mesa posta e o da viajata parecem hoje encarnar a alma nacional, ou o que passa por tal. Ah meu Pedro- Infante!, bem dizias tu «É fartar vilanagem!». Pelo menos enquanto o Orçamento  esperança, doçura e vida nossa – puder continuar a gemer «Ó-iça-ó-orça»!...
O caso era grave, quase desesperado, mas ao cabo de semanas de cuidados estrénuos e competentes, os médicos puderam dar o doente como livre de perigo. Vendo-o pouco animado, disse-lhe um deles: «Homem, salvámos-lhe a vida! Que mais quer?» E ele, da cama, com o olhinho matreiro: «Por quanto mais tempo?…»

26 – Abril (quinta). [1990]

       E inútil disfarçar. É mesmo um pouco hipócrita. Porque é acabrunhante levar uma vida inteira a realizar uma obra e ficar de cara alegre quando lhe dizem, expressa ou omissamente, que é uma coisa menor. Sobretudo é difícil apanhar com isso pela cara e não entender porquê. Ou não conseguir entender porque é que nesse porquê há uma razão a funcionar. Ou porque é que se não consegue ver, no que os parceiros realizaram, a razão invertida da nossa sem-razão. Que coisa estranha o nosso equilíbrio interior, que é onde essas coisas se esclarecem. Porque ele altera-se com o tempo e sobretudo é praticamente opaco ao que não entra na sua óptica. Podem dizer-nos que tal ou tal valor é de entrar nela. Nós aceitamos, na superfície desse equilíbrio, que seja assim. Mas não no seu interior. Porque aí não temos possibilidade de interferir. Somos assim e só o tempo é possível fazer que sejamos assado. No desencontro portanto entre o que valorizo e desvalorizam os outros, só o tempo um dia – e decerto provisoriamente – poderá dizer quem tinha razão. Mas se a razão está do meu lado, é o equilíbrio interior dos outros que terá de modificar-se. E se está do seu lado, a minha condenação não terá apelo. É isto assim um problema sem solução. Nada pois a fazer. Ou há só que esperar as contas definitivas a saldar no infinito quando decerto todos teremos razão, que é quando as não teremos nenhum.
*
       Troveja forte e feio. E chove em tromba de água. E a Regina saiu mais a sua constipação a fazer compras.
VF

quinta-feira, 25 de abril de 2013

Coimbra, 25 de Abril de 1977


O que são as vidas! Chegado ao termo da minha, é que vejo como gastei os anos a correr atrás de foguetes doutra romaria. O que eu me desesperei por coisas perfeitamente vãs, a energia que gastei a cumprir deveres absurdos! Escrever era fundamentalmente o que me importava. E foi à escrita que dei menos horas e as mais cansadas. A maior parte do tempo perdi-o a ser médico, chefe de família, cidadão. Um médico apenas escrupuloso, um chefe de família apenas cumpridor, um cidadão apenas honrado. Em cursivo é que punha a paixão e a esperança. Mas roubei à caneta os melhores momentos, e fiz os versos quase às escondidas, como quem pratica vícios secretos. Em vez de me entregar de corpo e alma à vocação, servi-a como Deus é servido. E agora pego-lhe com um trapo quente. Nem posso voltar atrás, nem arrepiar caminho. É tarde demais para tudo. Até para morrer.
Miguel Torga

Coimbra, 25 de Abril de 1975


Eleições sérias, finalmente. E foi nestes cinquenta anos de exílio na pátria a maior consolação cívica que tive. Era comovedor ver a convicção, a compostura, o aprumo, a dignidade assumida pela multidão de eleitores a caminhar para as urnas, cada qual compenetrado de ser portador de uma riqueza preciosa e vulnerável: o seu voto, a sua opinião, a sua determinação. Parecia um povo transfigurado, ao mesmo tempo consciente da transcendência do acto que ia praticar e ciente da ambiguidade circunstancial que o permitia. O que faz o aceno da liberdade, e como é angustioso o risco de a perder! Assim os nossos corifeus saibam tirar do facto as devidas conclusões. Mas duvido. Nunca aqui os dirigentes respeitaram a vontade popular, mesmo quando aparentam promovê-la. No fundo, não querem governar uma sociedade de homens livres, mas uma sociedade de cúmplices que não desminta a degradação deles.
Miguel Torga

Coimbra, 25 de Abril de 1974

       Golpe militar. Assim eu acreditasse nos militares. Foram eles que, durante os últimos macerados cinquenta anos pátrios, nos prenderam, nos censuraram, nos apreenderam e asseguraram com as baionetas o poder à tirania. Quem poderá esquecê-lo? Mas pronto: de qualquer maneira, é um passo. Oxalá não seja duradoiramente de parada…
Miguel Torga

25 de Abril [1966]

Seria curioso comparar As Imagens Destruídas do Faure da Rosa com a Enseada Amena. Ambos analisam o mesmo problema tão candente nos nossos dias: as trocas das mulheres e dos maridos nos casais novos, a indecisão do amor, a fragilidade do mundo de vidro em que vivemos…
Diferenças? Esta: a Enseada Amena, com uma técnica de escrita original (presente-passado-futuro) foca, como já disse, o drama da fidelidade e passa-se entre a gente inconformista da esquerda.
As Imagens Destruídas, pelo contrário, dão-nos o drama da infidelidade – no lado de lá. No medíocre planeta dos técnicos mais ou menos corporativos.

25 de Abril de 1978

Onde há comes e bebes há sempre patriotismo para dar e vender. Vender sobretudo. É de pasmar como estes patriotas acodem pressurosos, empunhando o garfo dos combates gastronómicos, a embutir os pitéus e o briol de qualidade que o Estado lhes serve à discrição nos dias de festa nacional! Com que valor eles então dão às queixadas! E como eles, ainda ontem abjectos servidores do fascismo, se mostram hoje submissos aderentes e leais amigos do «socialismo democrático»  de que, aliás, dizem sempre horrores à boca pequena! (E mesmo do autoritário…)

Os filósofos (1952)


Localização: Private Collection
Autor: Dorothea Tanning

quarta-feira, 24 de abril de 2013

24 de Abril [1966]

Todo o dia a ler a Enseada Amena que o Abelaira, por surpresa delicada, dedicou ao Carlos e a mim.
Escrita dialéctica.
Tema geral: o drama da fidelidade, no amor e na política, vivido entre ruínas por sombras infixadas.
O melhor romance do Abelaira.

Coisas sólidas e verdadeiras

O leitor que, à semelhança do de O'Neill, me pede a crónica que já traz engatilhada perdoar-me-á que, por uma vez, me deite no divã: estou farto de política! Eu sei que tudo é política, que, como diz Szymborska, "mesmo caminhando contra o vento/ dás passos políticos/ sobre solo político". Mas estou farto de Passos Coelho, de Seguro, de Portas, de todos eles, da 'troika', do défice, da crise, de editoriais, de analistas!
Por isso, decidi hoje falar de algo realmente importante: nasceram três melros na trepadeira do muro do meu quintal. Já suspeitávamos que alguma coisa estivesse para acontecer pois os gatos ficavam horas na marquise olhando lá para fora, atentos à inusitada actividade junto do muro e fugindo em correria para o interior da casa sempre que o melro macho, sentindo as crias ameaçadas, descia sobre eles em voo picado.
Agora os nossos novos vizinhos já voam. Fico a vê-los ir e vir, procurando laboriosamente comida, os olhos negros e brilhantes pesquisando o vasto mundo do quintal ou, se calha de sentirem que os observamos, fitando-nos com curiosidade, a cabeça ligeiramente de lado, como se se perguntassem: "E estes, quem serão?"
Em breve nos abandonarão e procurarão outro território para a sua jovem e vibrante existência. E eu tenho uma certeza: não, nem tudo é política; a política é só uma ínfima parte, a menos sólida e menos veemente, daquilo a que chamamos impropriamente vida.
JN, 01/08/2012

24 – Abril (terça). [1990]

       Sandra. Para a hipótese de V. ter saltado do meu livro – e da vida onde a fui buscar – e continuar viva algures, deverá ter já setenta e muitos anos. Mando-lhe por isso um beijo de parabéns. Como estará e será hoje? Velhinha, não? Coalhada de rugas e cabelos brancos? Mais desembaraçada de língua, menos contida? Ou continua seca, reservada, severa? Ou gágá? Não a quero ver, a minha curiosidade não sobra da minha criação. Imagino que V., se leu o livro, deve ter sido bastante e já para fora. Ou terá ficado agradada da imagem que de si lhe dei. Mas não se iluda: a imagem não é de si mas de mim. E seja feliz com os seus filhos e netos. Ou terá ficado solteira? Se assim foi, lerá talvez o meu livro com uma atenção mais esclarecida. Porque estará mais desligada do real imediato e poderá aceder mais facilmente à eternidade que está nele. E aí encontrará a essência de si. Como o João disse da Mónica.
*
       Quantos te ouvem? Para quantos és audível? O que te ouviam melhor era o riso, mesmo quando mais discreto, quase só riso para ti. Porque o riso é a forma mais plausível de retirar peso ao que é pesado e a vida para tudo pesa tanto. Mas essa mesma possibilidade a vais perdendo. O real não abdica facilmente da sua carga e esvaziado um momento, logo tenta recuperá-la e carregar outra vez. Mas rir é passarmos para nós o peso que era do real e isso exige um esforço enorme ou uma destreza de um deus. Estás demasiado humanizado para esguer a vida a pulso.
       Quem te ouve? Para quantos és audível? Não o és para quase ninguém. O silêncio é o teu lugar. Fala nele para ti, desfaz-te no teu falar interminável e vão. E cumprirás o teu destino como a loucura cumpre o seu.
*
       Não é frequente que um homem de letras goste de música e o confesse ou menos deixe passar para o que escreve esse gostar. Romain Rolland, Thomas Mann e alguns outros são excepção. Ainda há pouco um sobrinho-enteado de Malraux nos revelou que o escritor sabia de música, casara com uma pianista, viúva do seu irmão Roland que os nazis mataram. Mas nos seus livros esse gosto não transparece. Teixeira de Pascoaes dizia que da música só gostava da harmonia das esferas e do fado do Hilário. Por mim, gosto muito de música instrumental e digo-o nos meus livros. Mas a voz humana só em coro ou em solos especiais de óperas ou oratórias – ou em baladas de Coimbra. No meu Cântico Final há uma personagem (Mário) que julga a música uma forma de arte menor ou feminina e que só a literatura ou as plásticas são arte maior ou masculina. Em todo o caso apaixona-se por uma bailarina cuja arte admira e há uma frase musical do começo do 2.º acto do Lago dos Cisnes que percorre o livro até ao fim. Bom. De todo o modo há o facto em si da sua opinião e da de outros escritores. Porquê essa ideia de que a música é uma forma de arte débil? Não sei. Mas postas de parte as marchas militares e de músicas afins pelo seu apelo à acção, ao voluntarismo, à robustez, a música genericamente apela para a passividade, o abandono, a desistência. Ver República de Platão. Não me desagrada esta hipótese para o meu caso. Porque a força maior da arte para mim vem de fornecer-nos o encantamento, a transcendência do real imediato, a transfiguração. Ora isso tem que ver com o apelo da música, o êxtase a que nos chama, a elevação sobre nós. Mas sobretudo a música é de sua essência uma arte de abstractização. Ora a literatura, ao menos na sua forma generalizada, é no real imediato que funda a sua razão de ser. Mesmo a poesia. O de la musique avant toute chose já tem que ver com um certo tipo de poesia, por exemplo a de Verlaine, que o disse. Mas não com os poetas grudados ao real ou pelo menos à discursividade que tem que ver com a lógica e não com o imaginário. Mas acabou-se. A música fala à parte débil de nós onde mora o encantamento e a ternura. É onde eu moro também. E onde me mora também. Em todo o caso – é curioso – não me sinto propriamente um banana. Tenho mesmo, ao que me dizem, a minha costela de obstinação de burro. Será que também isso é das partes moles do nosso ser? Sei lá. E já agora estou-me nas tintas para o saber.
       Mas a que propósito vinha tudo isto? Não sei. Talvez porque em Lisboa, sobretudo aqui em Fontanelas, passo os dias a ouvir música com ou sem acompanhamento de leitura ou escrita. É o que está mais conforme com um sofá e um fogão.
*
       E cheguei ao momento, como decerto todos os escritores quando é altura de chegarem, em que quase tudo o que se escreveu no meu tempo deixou de me interessar. Como isso é triste. Haver uma montanha de obras de arte à minha mão e nenhuma me dizer nada. Não é isso um problema de qualidade: é um problema de natureza. Nada do que ali está me diz o que me importa. O que me importa, e até por acaso não importa à grande maioria dos meus confrades em humanidade, é o que me fala à minha condição de homem numa forma original de o dizer, vindo essa singularidade de dentro para fora e não ao contrário. É triste, eu sei, ter ao lado um palácio ao meu dispor e preferir dormir no vão de uma porta como um cão. É triste, mas é assim. O que mais me importa somos nós e só onde nós estamos é que podemos estar. E quem discordar disso faça queixa à polícia que reconduz ao manicómio quem dele fugiu.
*
       Um livro aparecido aqui há anos, mas que ainda não li, demonstrava que Heidegger fora um nazi depois de dez meses do seu reitorado e jamais afirmou publicamente o seu horror ao holocausto hitleriano. E em face disto, o grande esforço dos intérpretes da sua filosofia é fazê-la coincidir com a doutrina e prática nazis. Como suponho já ter anotado, o que mais me espanta nisto é que ninguém ainda denunciou um só dos milhentos intelectuais (artistas e filósofos) que exaltaram Estaline e jamais o renegaram a não ser em termos doces de «erros», «desvios», «culto da personalidade» ou em casos raríssimos mesmo «crimes». Ora Estaline foi muito mais criminoso do que Hitler não só pela extensão enorme das suas vítimas e o arbítrio das suas decisões, mas ainda porque abusou da credulidade dos milhões dos seus adeptos. E não se diga que só agora os seus crimes foram conhecidos, porque o que apenas mudou foi serem os próprios soviéticos a denunciá-los e a ratificar a denúncia alheia. Khrustchev, aliás, já o fizera, como o fizera sobretudo Soljenitsine nessa coisa medonha que foi o terror estaliniano demonstrado no seu Gulag. Que é que o mundo comunista fez em face deste testemunho? Os soviéticos expulsaram o autor da denúncia e do lado de cá cobriu-se de lama o autor e quem o lesse. Assim o horror não estava do lado de Estaline mas de Soljenitsine – e à tentativa de publicar-se em português a sua obra, opuseram-se os tipógrafos por ordem do PCP. Soljentsine era o símbolo da traição, da calúnia, do abjeccionismo de um inimigo da classe operária e do progressismo. Acontece, porém, que certos intelectuais declaradamente nazis e racistas foram perfeitamente assimilados pelo progresso, como Céline. E um Nietzsche, racista e nazi avant la lettre, funcionou perfeitamente para a especulação progressista.
       Ora neste esforço desvairado de cobrir de lama Heidegger, ainda há dias li um artigo, a propósito de um livro de Steiner que (leio na edição inglesa) não deixa de condenar o comportamento do filósofo, artigo esse em que se pretende ver no conceita de Ser e na sua revelação, uma marca estigmatizante de nazismo. Tanto quanto sei – mesmo pela célebre entrevista postumamente publicada – Heidegger foi largamente condenável pelo que houve de dúbio ou equívoco ou pusilânime nas sua atitudes face ao nazismo e ao seu horror – embora, se o condenasse apenas depois do seu esmagamento, toda a gente dissesse com certeza que essa condenação era tardia e mesmo cobarde por se produzir só então.
       Mas, posto isto, porque diabo o seu conceito de Ser e o modo de se revelar hão-de ter que ver com o nazismo? Hegel, que esteve na base do prussianismo e ditaduras nazi-fascistas, longe de ser enlameado, foi valorizado pela razão primária de Marx pressupostamente o ter virado de pernas para o ar. A doutrinação hegeliana, no que respeita aos estados (e à guerra…) é imensamente mais grave do que a pobre doutrina do Ser e da sua revelação. Aliás, o Ser e a Ideia, como veremos, se tiver pachorra para isso, sendo muito diferentes, têm um parentesco de consanguinidade. Hegel situa-se num domínio lógico e Heidegger numa base que tem que ver com o inominável (e o grande erro de Heidegger, suponho eu, foi dar-lhe um nome). Mas nesse domínio lógico, Hegel é imbatível e Marx comete por isso um erro quase infantil. Creio ter já anotado não sei onde que em toda a doutrina há o que é o seu corpo e o que é a sua alma. O corpo é redutível a conceitos, jogos de raciocínio, etc. e a alma é o indizível de tudo isso. Hegel é imbatível porque para ele as coisas são conceitos, ou seja o que delas se pensa. Todo o real é pensamento porque fora disso não é nada. E a Ideia ou Espírito é aquilo que como pensamento vai alargando e iluminando os seus limites. Todas as doutrinas fazem parte da Ideia ou Absoluto, que teoricamente (para ele, nele próprio, parecer) há-de um dia absorver em si todo o pensar de modo a não haver possibilidade de outro pensamento para fora dele. Hegel evitou o risco de filósofos anteriores, de pôr de um lado o ser, do outro o pensar. Ora por um lado não se pensa no vazio (já Hume e a seguir Husserl) e por outro o ser que se não pense não existe. Ele é assim o que se chama um «idealista objectivo», que é uma designação insidiosa, ou seja um pensador para quem o pensamento não está em si mas no objecto. Que é que é um objecto sem que o pensemos? Que é que é o pensamento sem um objecto que ele pense? Marx entendeu que o hegelianismo estava de pernas para o ar porque, para o marxismo, primeiro está o objecto e depois o que dele se pensa como seu «reflexo» (Lenine). Ora tudo isto é uma questão do ovo e da galinha. Para Hegel não há nenhuma divisão com um monismo de ser / pensar ou se se quiser de um ser que pensa (através de um seu elemento privilegiado que é o homem). Eu não estou a defender Hegel, com o qual aliás tenho uma pequena / enorme discordância – com ele e com Heidegger – situada nessa coisa minúscula e imensa que é o «eu». Estou apenas a defendê-lo e a tentar aproximar a sua Ideia do Ser heideggeriano. Começa pelas diferenças, o Ser será sempre inapropriável, irredutível, irrevelável – e a Ideia tem teórica e logicamente, um termo da revelação. Por outro lado a Ideia ou Espírito em cada época não tem nada «escondido», é um absoluto para essa época, não releva de nenhum mistério, por mais que a realidade dele (do Espírito – que, aliás, de passagem se diga, é o que realmente define e realiza qualquer período da história do homem) por mais que a sua realidade, dizia, seja imensamente oculta como o futuro o demonstrará. Mas o Ser é o que em qualquer tempo ou situação ou verdade representa a outra face invisível de tudo isso, como na obra de arte espectacularmente se prova. De todo o modo, Ser e Espírito representam a totalidade do que é – num caso (no Espírito) em pensamento lógico; e no outro (no Ser) em inominável e para sempre misterioso.
       Mas sendo assim, o Espírito é o que há-de esclarecer-se e há-de portanto vir à superfície do saber; e o Ser é de sua condição jamais vir à superfície ou melhor, estabelecer-se aí, porque o invisível de tudo é que é a sua condição e o vir à superfície é o que acontece apenas em instantes de iluminação para logo de seguida se retirar para a zona do insondável ou incognoscível ou inominável. A obra de arte, que privilegia a sua revelação (a do Ser), pode nem sempre operá-la – e para a maioria das pessoas não se opera, porque um quadro é uma agradabilidade de cores e linhas, uma música, de sons, uma escultura ou um templo, de volumes, etc. Poderei avançar com algo que um dia pus em evidência e suponho poder irmanar-se ao que digo e que é a aparição? Porque um quadro, como sabemos, aparece, como o nosso «eu», uma flor, etc. – como a própria doutrina de Heidegger. É quando lhes vemos apenas o «corpo», o lado material e imediato, não a «alma», o que está por detrás disso e só em instantes de milagre se revela. Naturalmente o Ser heideggeriano é muito mais do que isso, porque é em termos filosóficos o fundamento de todo o pensar, o que acede à linguagem, o que, por mais que Heidegger o negue, invencivelmente aproximamos do conceito de Deus. Mas o que é fundamental no Ser é o que há nele de furtivo, de irrealizante, de fundo insondável para onde converge o que há em tudo de misterioso, inapreensível, inominável, o simplesmente il y a, o «há», o ser abertura, como julgo já ter dito. E justamente por isso o grave erro de Heidegger foi dar um nome ao que o não tem, manipular o seu conceito como se fosse conceptuável, querer à força manter-lhe o lado misterioso e tratá-lo como um qualquer elemento filosófico. Ora a filosofia de Heidegger (como já o indiciara Nietzsche) é marcada pela irredutibilidade a uma linguagem conceptual como qualquer outra. E há ainda – mas já estou farto de escrever – a sua obsessão de intrometer e esmoer infindavelmente a noção do Ser com que vamos topar sempre, fale do que falar (como o sexo em tudo quanto Freud escrevia).
       E agora, se me permitem, vou ler o jornal, onde com certeza se não fala de Hegel ou de Heidegger, mas dos nossos políticos e futebolistas – aliás, com grandes afinidades entre si.
VF

terça-feira, 23 de abril de 2013

23/24 de Abril de 1978

O menos que se pode dizer do Partido Comunista Espanhol é que ele desCARRILOU!

Coimbra, 23 de Abril de 1975

       Às vezes apetece desabafar, não ao ralo de um diário, mas publicamente, alto e bom som. Atirar aos quatro ventos meia dúzia de verdades de que ninguém suspeita, e são cilícios cravados no coração. Mas o pudor, em certos casos, pode mais que o desespero. E calo-me. Além de nada me garantir que o feitiço se não voltasse contra o feiticeiro. Não há que fiar nesse pacto formal de conivências que dá pelo nome de senso comum. Só pelo facto de o ser, o poeta é um escândalo universal. Tudo o que ele parece é o que ele não é. Simplesmente e coerentemente, os juízos que o condenam baseiam-se nessa aparência. E não há volta a dar-lhe. Em todas as circunstâncias a culpa é toda sua. A culpa, precisamente, de ser poeta.

Miguel Torga

23 – Abril (segunda). [1990]

       Estás sentada na tua cadeira e os pés estendidos para uma almofada sobre a mesa baixa. Eu sento-me em frente e entre nós arde o lume do fogão. Há claridade na sala pelo ar, vinda sobretudo da janela ao fundo. E há um silêncio em que se ouve quase o germinar da terra. E tudo isto tem um sentido que não sei mas adivinho no simples facto de haver paz e silêncio. E um fogão terno a adormentar-nos. Mas valerá a pena sabê-lo? Porque o melhor de tudo é o seu mistério e o encantamento de todo o seu possível inesgotável. De vez em quando ouve-se o vento passar. Vai para o longe do incognoscível. Depois, de novo o silêncio. E eu sinto, como não sei dizer, que essa leve voz do vento explicou todo o mistério que ficou.
*
       Saturado da literatura, escrevo, escrevo. É um acto necessário sem necessidade para esse acto. Toda a literatura me parece de súbito vã. Que quer dizer criar ainda a realidade que é sua? A realidade que é sua é apenas a música que em nós ressoa por fim. Porque não falar dela apenas? A voz do vento, o rumor do lume, o silêncio de uma sala iluminada de sol. Como é possível sobretudo achar qualquer interesse na feira imensa do modo de se ser humano? O ser humano é o ser, o seu insondável, a sua morte. Como é possível talhar nele uma «história», engrená-la em brinquedo como um mecano? A sua história não tem sentido para se lhe poder inventar um. Como é possível ser-se um começo de evolução mental, para se adoptar e exaltar a sua menoridade? A sua evolução di-la a sua velhice ou o que antes dela é o que pensa a vida como uma coisa muito séria.
       Saturado de literatura, abandonado de literatura, escrevo, escrevo. É a pressão enorme de criar, sem razão de haver barro para a criação…
*
       Que fazes tu na vida? Não sei. Cheguei ao limite em que o fim de vez em quando me queima de evidência. Mas persistes em viver nesse gosto de viver. Persisto, há uma ligação feroz ao que em breve não será meu. O quê? Tudo, não sei. As coisas, as pessoas. É como se a minha morte fosse uma condenação pessoal não determinada para os outros. Como se daqui a cem anos os que ficam estivessem ainda e só eu não. Estupidez, não é assim? Estupidez. Mas nunca se sente pelo que se pensa porque o pensar tem o seu destino próprio a que o sentir é alheio. Podes ter ao menos um pouco de vergonha de ser assim. Tenho.
*
       E insensivelmente tu voltas. Fluída, translúcida à opacidade da terra. Ou não voltas – apareces na eternidade do teu ser. Aí estás, imóvel, feita da legenda de todo o meu imaginário, incorruptível e para sempre. Vens na balada, nela te suspendes, transmigrada a uma música terna e difícil. Vens na balada, estás aí, grave, um vislumbre de sorriso e cansaço e pacificação. A balada passou. A tua imagem também.

segunda-feira, 22 de abril de 2013

22 de Abril [1966]

Martinho. Diatribe violenta do Alexandre Pinheiro Torres contra a poesia de Ramos Rosa que, segundo ele, deixou o «nível de comunicação» e se tornou ilegível.
Discordei com argumentos mansos. Eu, por mim, entendo-a e confesso até que me toca de certo encanto livre, embora considere que, na verdade, se dirige a um público cada vez mais restrito, e pelo caminho que menos desejo à poesia, o da adesão à misteriosa Maçonaria Aristocrática.

Vêm aí os turbomédicos

O alerta do Conselho Regional do Norte da Ordem dos Médicos de que irá aparecer por aí, num futuro próximo, aquilo que o presidente desse organismo chama de "médicos de segunda", com diplomas obtidos em escolas privadas ou por "equivalência" (à maneira da controversa licenciatura de Relvas), devia ser levado a sério pelo Ministério da Educação, que tanto fala em "rigor" e em "qualidade".
A posição da Ordem dos Médicos surge na sequência da notícia de que uma escola privada terá arranjado maneira de transformar os seus licenciados em Ciências Biomédicas em turbolicenciados em Medicina (com dois meros anos de formação especializada), entrando por "equivalência" no 4.º ano da universidade espanhola Alfonso X, El Sabio. Tudo, como habitualmente, "dentro da lei".
O "caso Relvas" é apenas expressão daquilo que poderíamos classificar de "caso português", o chico-espertismo. Este atingiu proporções inimagináveis com o negócio de diplomas em que se tornou algum ensino superior privado (uma escola já oferece mesmo "licenciaturas duplas" em quatro anos, ao bom estilo promocional do "pague uma e leve duas").
A não ser que o Ministério da Saúde faça como o da Justiça, que não aceita licenciados à bolonhesa em Direito nas magistraturas, o mais certo é que os turbomédicos acabem no SNS-D (D de "desconstruído") do dr. Paulo Macedo: ficarão em conta e, para quem é, bacalhau basta.
JN, 03/08/2012

22 – Abril (domingo). [1990]

       Ontem tive de novo um sintoma de coisa grave no recto. A Regina insistiu que era das hemorroidas – que palavra feia, a do sítio do sintoma e a do que a Regina propõe. Mas todas as palavras são feias para a desgraça e entre elas logo a da velhice. Tinha prometido uma visita à Gabriela Liansol, que mora no Banzão, e lá fui com a alma escura e o espírito entaramelado. Mas lá cumpri como pude. E à noite quando voltei a falar no meu alarme a Regina teimou que tinha sido no dia anterior. Fiquei gelado. Se mudássemos de assunto?
       Faz hoje oito dias que morreu a Greta Garbo. Foi um acontecimento mundial. Era a morte de um mito do cinema. E o mito nasceu da sua vida misteriosa e sobretudo de se ter afastado do cinema em plena glória. A renúncia assim para se afastar «em beleza» excitava imenso o nosso imaginário. Nunca se casara mas tivera vários amores. Quais? Sabia-se de um ou outro, a começar no John Gilbert, seu parceiro nos filmes. E com a notícia da sua morte, a TV exibiu um documentário da sua vida com trechos dos seus principais filmes. Extraordinária coisa. Porque os trechos dos filmes punham-nos diante do facto real que era o que ela fora como actriz. Os grandes «monstros» do passado nas artes de que não ficou o registo – grandes cantores, executantes, actores – passaram à posteridade sem a contraprova da sua actuação para nós vermos como foi. Mas agora o disco e o filme deixam-nos a prova real do que foram. E então quase sempre é a decepção sem remédio. Garbo foi uma grande actriz para o gosto do seu tempo. E o gosto do seu tempo tem que ver com a totalidade desse tempo e foi em função dele que se teve uma aferição. Mas esse tempo mudou e com ele o gosto que foi seu. E agora temos só a manifestação desse gosto numa fracção que lhe pertenceu. Assim a Garbo surgiu-nos separada do que a englobava e onde fora grandiosa. Mas agora havia só a sua actuação sem o contexto em que se inserira a sua grandiosidade. E o resultado – para mim ao menos – foi o quase ridículo das grandes paixões com o seu ritual de atitudes docemente ingénuas para um tempo que já se não reconhece nelas. Seria aqui que devia funcionar o que Malraux chamou a «metamorfose». Mas a metamorfose é difícil funcionar no que é demasiado nítido, real, definitivo. É o que separa de um modo geral o cinema das artes plásticas e mesmo da literatura. Porque nestas o que está nelas tem uma margem de inominável, de flutuação, de mistério em que a metamorfose pode actuar.
*
       O Luís Amaro, que é um bom mas escasso poeta da área do Saul Dias, é simultaneamente um feroz revisor de provas que só numa instantânea distracção deixa escapar uma gralha. E eu pedi por isso ao Adriano Lopes, da Bertrand, que lhe confiasse a tarefa policiária de rever o meu romance. Hoje precisei de lhe transmitir algumas alterações (minúsculas) em certos passos. E disse-me ele, agora que está rever as segundas provas e as vai levando portanto numa leitura corrente, que o meu livro é «muito bom», talvez o meu melhor romance de sempre. E eu fiquei com uma alegria na alma que me compensou do meu receio de ter alguma desgraça no recto. Mas o que é extraordinário é ser eu tão sensível à opinião dos outros, eu que contra muitas vezes a opinião desses outros, garanto a pés juntos que talou tal livro é uma merda. Os deuses dotaram-me já não digo de uma óptica segura para julgar a obra alheia mas de uma segura convicção do que penso sobre ela. E sobre a minha própria obra não tenho óptica nenhuma. De certos livros pensei que eram uma maravilha. E os outros depois disseram-me que era uma coisa medíocre. E ao contrário. Muitos anos passados sobre um meu livro, a minha opinião é mais segura porque ela se sedimentou. Mas mesmo então há às vezes divergência entre o que penso e o que pensam ao contrário. Simplesmente nessa altura podem correr-me à pedrada que não vou abaixo. Sei hoje o que valem os meus livros antigos. E não há saber algum diferente que torne diferente o meu saber. Mas um livro ainda quente do forno nunca sei se está bem cozinhado e lhe falta condimento ou mesmo substância. Porque então uma e outro estão ainda em mim e assim não sei se estão também na obra. E é assim.
VF

domingo, 21 de abril de 2013

Um beijo

COLUNISTAS
VALTER HUGO MÃE 
21/04/2013 - 00:00 [Público]
No momento em que me abraçou, o David Tibet beijou-me o rosto. Eu sei que não vos dirá muito que esse beijo tenha acontecido, mas ele tinha acabado de homenagear o John Balance, o Balance morreu para anjo, e eu já achava o David um homem dos céus há bem mais de vinte anos.
Quando somos abraçados por alguém que nos coloca em diálogo com os absolutos, isso do amor inteiro ou a morte, é sempre místico que nos encontremos. E os concertos do David Tibet são sempre feitos de uma espiritualidade essencial. Vou aos concertos dele como a homilias que efectivamente me importam.
Poucas figuras me influenciaram tanto quanto o David Tibet. Ele, com as suas angústias e aspirações, cheio de visões e necessidade de se transcender, incoerente, mudado, mudador, sempre intenso, comovido, arriscando muito. Eu não sei se o entendo, sei que cresci muito com a sua busca, ao ponto de a familiaridade da sua voz me parecer algo interior, como se fosse a minha própria voz, como se pertencesse ao meu imaginário mais pessoal, mais íntimo, quero dizer. Uma voz que apenas eu fosse capaz de escutar.
Pois, esse mestre abraçou-me e beijou-me o rosto, bem no fim do concerto, e o John Balance, que morreu, tinha encolhido o estômago a toda a gente. Porque o puseram numa tela grande e foi muito especial encará-lo e sentir muito a sua falta. Gostei de pensar que eu e o David abraçávamos o John pelo meio. E tive tanta pena de nunca havermos estado os três juntos. Teria sido lindo se tivesse acontecido.
Foi no Maria Matos, onde eu nunca havia entrado. O público era um grupo de ex-góticos, uns quarentões mal remendados, a parecerem finalmente curados das depressões, com certa nostalgia do tempo antes de serem barrigudos e carecas. Gostei de cada pessoa. Porque a especificidade da música do David Tibet faz-nos comungar de algo muito peculiar e reservado que cria a ilusão de um colectivo de gente imbuída de um mesmo espírito. Como se partilhássemos uma mesma visão, um mesmo privilégio. Estamos barrigudos e carecas e curámos há um bom tempo as depressões, mas temos a marca das coisas. Somos maduros e sabemos melhor o porquê das coisas. Ouvimos o David acerca do Balance e somos capazes de um amor mais genuíno e intenso por um e por outro.
Quando me beijou o rosto, sorri. Podia ter-lhe dito que de todas as vezes que nos vimos eu quis aceder a uma beleza assim. Mas não disse nada. Os criadores mais importantes para mim deixam-me mudo. Acho que sorri como os meninos quando merecem algo muito precioso do próprio pai.

21 de Abril [1966]

Vencidas as habituais dificuldades, levantadas pelo Regime que rege os nossos tristes Destinos, o concerto com obras do Graça promovido pela Associação da Faculdade de Direito de Lisboa, acabou por se realizar na Sala de Actos da Reitoria, cheia de gente nova, entusiástica e feliz de gostar.
Também me coube uma parte da apoteose, no final da execução da minha Balada para uma Heroína que o Graça musicou para o coro – aliás com grave beleza sinistra.
Ante a insistência dos aplausos não tive outro remédio senão erguer-me para recebê-los, embora com um sorriso de relutância por me sentir intruso na festa. Por fim gozei plenamente a felicidade passageira daquela gente a aplaudir o autor de Vou Morrer com a Saia Rota… enquanto cá por dentro, as dúvidas dos últimos tempos continuavam a roer-me o coração.
Mas quem as adivinhava nestes cabelos brancos?
Vá, aplaudam, aplaudam!... Rasto de som para coisa nenhuma…

sábado, 20 de abril de 2013

Lisboa, 20 de Abril de 1975

          Gigantesco comício a que presidi, Deus sabe com que vontade. Mas toda a certeza cívica tem de passar por um permanente activismo de prova, mesmo, ou até principalmente, quando um passado de resistência pareça desobrigar-nos. Em política, o sacramento da confirmação tem de se repetir a vida inteira.
Miguel Torga

20 – Abril (sexta). [1990]


       Reli Em Nome da Terra em segundas provas de um jacto (aliás, dois) aqui em Fontanelas. E pude aperceber-me melhor do que vale o livro. E apesar de um ou outro passo mais frouxo, creio que é bom. Pude mesmo entender razoavelmente o que eu nele «quis dizer». E o que quis dizer foi talvez que a significação de todo o contingente, e vão, e absurdo se resolve no «infinito». E que há a sacralização do corpo, desde a epígrafe tirada de S. Mateus. E que há na mulher amada uma eternidade que vai além da corrupção e é o absoluto do seu ser. Achei também que as várias componentes do livro se ajustam num todo. Sobretudo creio ter conseguido superar a lástima da degradação de um corpo numa significação metafísica e equilibrar o espectáculo repulsivo dessa degradação com a escrita discreta e mesmo algum humor que espero não tenha pisado o risco. Gostei do primeiro e último capítulos, da descrição da deusa Flora, da conversa com Cristo, do concerto de oboé, do encontro do narrador com uma criança no jardim, da figuração amorosa de Mónica, do almoço na esplanada com a música do cego, do banho no mar, de – não me lembro mais e não tenho pachorra de ir ver. De todo o modo o ajustamento de todos os elementos do livro nem sempre está bem esclarecido. De todo o modo creio que não é um livro falhado, e que a generalidade dos leitores vai gostar. Precisava bem disso para ser confirmado na minha esperança e fechar a minha aventura literária com chave ao menos «de prata». Estou saturado da literatura – precisava. Porque me seria extremamente penoso voltar a «escrever».
VF 

quinta-feira, 18 de abril de 2013

Viver na lua


Crónica
António Lobo Antunes

Como estou quase sempre sozinho arranjei o hábito de falar alto comigo mesmo. Por exemplo, de manhã, quando vou a sair para comprar o jornal, sinto que me falta qualquer coisa, pergunto
– Que é do relógio, estúpido?
que de facto não está no pulso e lá vou eu
– Hás-de ser sempre parvo
à mesa de cabeceira buscá-lo. Quem diz o relógio diz as chaves de casa ou a carteira, distraio-me, vivo na lua, perco os anos da minha afilhada, o dia em que a minha tia morreu, as coisas que é preciso comprar para comer. No supermercado previno-me constantemente
– Atenção Varela, atenção Varela
porque ou é o sal, ou é o pão, ou é a garrafa de rosé e voltar a fazer o caminho e a perder séculos na bicha da caixa, francamente, é um bocado aborrecido e as pernas já pesam. Pesam da idade e pesam dos diabetes, ao acordar ordeno-me logo
– Verifica os açúcares, Varela
faço o exame para controlar os comprimidos, enquanto faço o exame
– A consulta é quando?
confiro no papelinho, fixo a data, esqueço-a, escrevo-a no bloco da mesa da cozinha, em maiúsculas, para me lembrar
– Dia vinte e três às nove, cretino
volta e meia uma espiadela de confirmação
– Dia vinte e três às nove
e, de confirmação em confirmação, consigo estar na sala de espera do hospital como manda a sapatilha, de gravata porque um médico é um médico, já a minha mãe se arranjava para mostrar as varizes, eu, rapaz novo
– Vai toda triques para o doutor
como se fosse um baptizado ou assim, a minha mãe, a pregar o broche na lapela
– Um médico é um médico
e estes pormenores, parecendo que não, ficam, os meus pais, graças a Deus, ensinaram-me a educação e o respeito, sento-me diante da secretária a ajeitar a gravata, sem cruzar a perna, claro, e inclinado para a frente, não pergunto como está a tensão depois de me tirarem o aparelho do braço, espero que o médico informe
– Podia andar mais baixa mas vá lá
não estendo a mão para me despedir, espero que ma estendam e, se ma estenderem, aperto-a nem com muita força nem com pouca, com uma veniazita, verifico a nova data no papel antes de me despedir
– Até onze de junho, senhor doutor
pergunto da porta
– Quer que feche ou que deixe encostada?
e apanho o autocarro direito à farmácia, a recomendar-me
– A farmácia antes do ninho, Varela
a aviar a receita, coloco os medicamentos na prateleira da cozinha, depois de lhes escrever a maneira de tomar na embalagem porque vivo na lua, não me fio na memória, assim escrito não me engano, e sento-me meia hora no sofá com a televisão, todo catita ainda, antes de mudar de roupa para fazer o almoço, dado que um pingo deixa nódoa e as minhas mãos são dois cepos, a minha mãe
– As tuas mãos são dois cepos, não sei a quem sais assim que o teu pai tinha dedos de relojoeiro
embora fosse empregado de escritório como eu. Faleceram os dois há uma porção de anos, primeiro o meu pai, que tinha o coração fraco, depois ela de um problema nos rins de modo que tenho a casa toda para mim agora, três assoalhadas, marquise fechada, os móveis de sempre, uns retratos, o quadro com uma vista de praia, com duas senhoras estendidas na areia, debaixo de um guarda-sol, e no mar, de frente, um paquete ao longe, dos grandes, cheio de passageiros que não se vêm. O paquete é amarelo com uma listra azul e, na janela, os prédios fronteiros, umas árvores. É bonito. Sempre morei aqui e continuo a achar bonito. A seguir ao almoço a loiça para lavar, uma sestazita e, à tarde, a pastelaria com os jornais em cima da caixa grande dos gelados. Cumprimento uma pessoa ou duas, bebo um chá sem açúcar
– Não esqueças a pastilha, Varela
engulo a pastilha tirada de um coraçãozito de metal que pertenceu à minha mãe e me recorda sempre ela
– Mãezinha
pequena
(eu sou alto)
Simpática, remexida, com a mania das limpezas mas pronto, toda a gente tem as suas manias
– Vai lá fora e esfrega outra vez os sapatos no capacho
de forma que ainda hoje, vou sempre lá fora esfregar os sapatos no capacho, volto às sete, preparo o jantar e, depois de tudo arrumado, o corpo já não me puxa para sair outra vez. A televisão de novo, recordações de quando trabalhava, a lembrança da Mena com quem acabei por não casar, não por esta razão ou aquela, estava escrito, a minha mãe
– Está tudo escrito no livro da vida
e talvez tenha sido melhor assim, não sei, vivo na lua, sempre a dar preocupações às pessoas e, solteiro, não preocupo ninguém, às onze outra pastilha
– Não esqueças a outra pastilha, Varela
e cama, não a dos meus pais, a minha, a deles é deles e pronto, e fico, de candeeiro apagado, à espera do sono. Umas ocasiões vem depressa, outras ocasiões demora, sobretudo se pensar na Mena, tento não pensar na Mena, que habita sei lá onde, cheia de netos, pergunto-me se, cruzando-me com ela agora, a reconheceria, no caso de reconhecer cumprimentava
– Olá Mena
e andor, pode ser que me respondesse
– Olá Varela
pode ser que não, o tempo muda as pessoas, a pouco e pouco a Mena desvanece-se-me da ideia e, ao acordar, não penso nela. Quer dizer, acontece-me pensar mas é raro. Quer dizer, não é assim tão raro. Os olhos dela claros, o sorriso tímido. Estava escrito. A minha mãe, que sabe
– Está tudo escrito no livro da vida
e, no livro da minha vida, Deus riscou a Mena e eu aceito. Será que me sinto sozinho? Um dia destes vem o coração ou o rim e pronto. Confesso que me entristece, não bem tristeza mas como chamar-lhe, a Mena não vir a saber de nada, ninguém lhe contar
 – Lá se foi o Varela
mas, no fim de contas, que importância tem que o Varela se vá?

[publicado na VISÃO, em 18 de abril de 2013, fls. 8 e 9] 

S. Martinho de Anta, 18 de Abril de 1976

       Uma Páscoa triste. Nem vale a pena dizer porquê. São razões que quero levar comigo para a sepultura, a ver se me esquecem lá, se apodrecem comigo.
Miguel Torga

18 de Abril de 1978

Um grudo folclórico da Arménia deu em certa cidade espectáculos sensacionais de canto e dança. Alguém que os gabava a um amigo ouviu esta resposta: «Sim, mas achei-os um tanto armeniosos de mais!»
Todos falam agora de «liberdade», como se a tivessem inventado, restabelecido ou merecido. Mas se eu não afivelar a máscara de um partido nem agitar o pendão de uma seita, serei sem demora ignorado, suprimido ou oprimido pela mais vil das armas políticas (ou fascistas!), que é o boicote ou o silêncio; pela crítica caluniosa ou degradante; ou, pior que tudo isso, pela impossibilidade de publicar. Não terei jornal, nem editor, nem lugar ao sol. Cada grupo, facção ou quadrilha que se apodera dos postos de comando nas instituições públicas ou privadas onde se dispõe das vidas, carreiras e reputações dos cidadãos, exerce a seu modo, e na medida dos seus rancores, as funções que ontem cabiam ao ditador, ao censor e aos seus agentes policiais, impondo gostos, ideias, modas e ofícios.
Por isso eu me refugiei neste jornal da esquerda pluralista, onde encontro até a liberdade de escrever por vezes aquilo em que com ele não estou de acordo – porque a ninguém, nem a mim mesmo, reconheço a virtude de possuir toda a verdade. Deixei assim aos «neutros» e/ou «indiferentes», que ontem bajulavam ou serviam obedientemente os bonzos da tirania, o privilégio de passar a bajular ou servir os semideuses e mandarins do presente: servindo-se a si próprios, no processo, pela sua aptidão a serem amigos-de-toda-a-gente – o que os não obriga a serem amigos de ninguém.
JRM 

18 – Abril (quarta). [1990]

       Quando fui professor em Évora tive obviamente alguns alunos muito inteligentes. E um deles aparece-me aqui de vez em quando perto de casa com a mioleira em liquidação. Mas tem levado a liquidar. Aguentava-se mesmo num certo equilíbrio muito próximo de ser equilibrado. Mas pouco a pouco a sua loucura mansa foi cumprindo a obrigação. E quando mal me precato, salta-me à frente sempre a rir e a dizer coisas tolinhas. Hoje tive de ir deixar provas na livraria Bertrand da avenida de Roma, e entrei na Barata para cumprir o dever. E eis senão quando o moço me ataca de frente. Queria oferecer-me ou que eu comprasse O Nome da Rosa em versão alemã. Já tinha, disse-lhe eu. E em português. Você sabe alemão? Então estudei dois anos, não havia de saber? E provou-mo logo, traduzindo os dizeres da contracapa. E eu senti-me vexado porque também estudei alemão dois anos, fui óptimo aluno, mas perdi tudo. Como eu não quis o livro, foi-me buscar uma edição do Entendimento de Locke numa tradução francesa contemporânea do filósofo. Também já tinha, disse-lhe eu, em mexicano. E em face disso, foi procurar outro livro e eu aproveitei para me escapar. Em vão. Veio apanhar-me já longe, e meteu-me na mão «uma lembrança». Era uma moeda de 25 tostões. E fugiu. Não quero isto, berrei-lhe. Ele olhou-me atrás com a sua barba por fazer e em grande riso. Fiquei encravado. Deitar fora a moeda? Meti-a no bolso para a dar a um pedinte. Não houve pedinte no trajecto. Continua no bolso. Preciso de achar um pedinte amanhã para me desfazer eu da esmola do tolinho.
VF 

quarta-feira, 17 de abril de 2013

S. Martinho de Anta, 17 de Abril de 1976

       O Douro fotografado de todos os ângulos. Mas não há diafragma por onde possa entrar esta grandeza. De resto, mesmo que entrasse, de que valia? Todas as imagens colhidas pela objectiva não seriam nada comparadas com as que trago na retina. É que, para mim, Trás-os-Montes não é uma paisagem: é uma fisiologia.
Miguel Torga

Coimbra, 17 de Abril de 1974

         Jesus Cristo Super Star. Que perverso aproveitamento se faz hoje do inconsciente cristão, que, quer queiramos quer não, é uma herança de todos nós! Ao sair do espectáculo, até o mais ateu alardeava o ar iluminado e desobrigado de quem acabava de cumprir honestamente um preceito. Preceito tão público como o da missa, acobertado, porém, da crítica do livre pensamento por nobres razões estéticas. Necessitada de sagrado, mas envergonhada dessa fraqueza, a multidão corria ao cinema e saía dele aliviada e divertida como quem sai de um casino. Viesse um apóstolo pregar na praça a boa nova, e toda aquela gente passaria ao lado, embaraçada com o escândalo da verdade em carne viva. Felizmente que o escudo da arte tornava permissível o acto cultual… E esgotavam-se as bilheteiras.
O pior é que o sagrado não pode ter suportes profanos. Perde neles a força e a grandeza. Sem nada de aleatório, de uma rigorosa coerência interna, só no seu dogmático monolitismo dá sentido aos gestos certos e à vida certa – o indivíduo certo no homem, o homem certo na família, a família certa na sociedade, a sociedade certa nos dias, nos meses, nos anos, nas estações, e as estações certas no ritmo cósmico.
Seres de religião levianamente desviados dessas apetências anímicas, satisfazemo-nos mediocremente com os seus simulacros. E eis-nos a macaquear o que já não sabemos honrar. A trocar os símbolos por emblemas, as orações por imprecações, as liturgias por formalidades ou informalidades. A esquecer que, sem disciplina ortodoxa, o religioso pode ser tudo, desde um filme comercial até um comício para destruir a própria religião.
Miguel Torga