terça-feira, 29 de maio de 2012

Dia 29 [Maio de 2009]

Desencanto
Todos os dias desaparecem espécies animais e vegetais, idiomas, ofícios. Os ricos são cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres. Cada dia há uma minoria que sabe mais e uma minoria que sabe menos. A ignorância expande-se de forma aterradora. Temos um gravíssimo problema na redistribuição da riqueza. A exploração chegou a requintes diabólicos. As multinacionais dominam o mundo. Não sei se são as sombras ou as imagens que nos ocultam a realidade. Podemos discutir sobre o tema infinitamente, o certo é que perdemos capacidade crítica para analisar o que se passa no mundo. Daí que pareça que estamos encerrados na caverna de Platão. Abandonamos a nossa responsabilidade de pensar, de actuar. Convertemo-nos em seres inertes sem a capacidade de indignação, de inconformismo e de protesto que nos caracterizou durante muitos anos. Estamos a chegar ao fim de uma civilização e não gosto da que se anuncia. O neo-liberalismo, em minha opinião, é um novo totalitarismo disfarçado de democracia, da qual não mantém mais que as aparências. O centro comercial é o símbolo desse novo mundo. Mas há outro pequeno mundo que desaparece, o das pequenas indústrias e do artesanato. Está claro que tudo tem de morrer, mas há gente que, enquanto vive, tem a construir a sua própria felicidade, e esses são eliminados. Perdem a batalha pela sobrevivência, não suportaram viver segundo as regras do sistema. Vão-se como vencidos, mas com a dignidade intacta, simplesmente dizendo que se retiram porque não querem este mundo.
José Saramago, O CADERNO

segunda-feira, 28 de maio de 2012

Dia 28 [Maio de 2009]

Mãos limpas?
Baltasar Garzón é uma das pessoas mais influentes que a sociedade espanhola produziu na última metade do século XX. Ao juiz Garzón devemos alguns dos momentos mais luminosamente democráticos que conhecemos: o processamento do general Pinochet e a investigação contra os crimes da guerra e do franquismo. Nesse segundo caso, Garzón considerava que Franco e outros 44 membros dos seus governos e da Falange cometeram «delitos contra Altos Organismos da Nação» e também de «detenção ilegal com desaparecimento de pessoas num âmbito de crimes contra a humanidade». Pois bem, a investigação contra estes crimes exasperou os franquistas, que ainda os há em Espanha, até ao ponto de processar Garzón, a quem acusam de prevaricar, porque iniciou processos, dizem, sabendo que os responsáveis estavam mortos. Assina a queixa um tal Bernard, antigo dirigente da Fuerza Nueva, grupo ultradireitista muito activo na repressão de antifranquistas, e actual presidente de uma associação sindical que cinicamente diz «defender» o Estado de Direito e que copiou o nome de Mãos Limpas da nunca esquecida iniciativa italiana.
Que fez Baltasar Garzón? Fora das associações judiciais, com as suas intrigas e as suas confrontações, fora da fúria, que não é só política, que os franquistas sentem contra as iniciativas que a sociedade adopte para limpar-se da ditadura, o que vemos é uma actuação que introduz o senso comum nos tribunais. Há um juiz corajoso que em vez de enredar-se em leis para justificar silêncios e omissões busca os resquícios que as leis permitem para que às vítimas da guerra e do franquismo se lhes reconheçam direitos e se esclareça a sua memória. Garzón entendeu que tinham direito a recuperar os corpos enterrados em fossas comuns, ou a saber onde estão as então crianças que foram separadas com violência das suas famílias, por isso pôs em marcha um processo que logo continuou noutras instâncias, porém, ele foi o precursor e isso não se perdoa. O terrível, o incompreensível, é que os herdeiros do franquismo tenham encontrado eco no Tribunal Supremo de Espanha onde Garzón terá que declarar como imputado pela causa contra o franquismo. Diz o Supremo que «sem valorar nem pré-julgar o sucedido, entende que não se dão as condições para rejeitar a admissão a trâmite desta queixa», que a hipótese de prevaricação não é nem absurda nem irracional. Isso é o que dizem cinco magistrados, cinco, do Supremo. A ver agora o que diz a sociedade espanhola, sempre tão apaixonada quando se trata de defender causas justas. Deixará, sem fazer ouvir a sua voz, que a Fuerza Nueva, perdão, Mãos Limpas, use e abuse do Direito? Permitirá, sem protesto, que conceitos como Estado de Direito, pelo qual tanto lutaram os antifranquistas, sejam utilizados contra as vítimas, para que uma vez mais caiam no esquecimento? Já não se trata de Garzón, de cuja amizade me honro, mas sim de que não se divirtam à nossa custa. Prevaricar não é actuar para ampliar o Direito, prevaricar é não ter actuado antes. E troçar da justiça é aceitar como normal que os franquistas venham dar lições de escrúpulo democrático.
José Saramago, O CADERNO

domingo, 27 de maio de 2012

Dia 27[Maio de 2009]

Música
Ontem foram armas, hoje são notas de música. Vamos avançando, portanto. A ideia, segundo julgo haver entendido, foi da Fundação Calouste Gulbenkian e a ela se juntaram a Câmara Municipal da Amadora e o Conservatório Nacional. Tratava-se de reunir crianças residentes em bairros degradados e ensinar-lhes música e a tocar um instrumento. O propósito não era original, basta lembrar a recente revelação da orquestra juvenil de Venezuela, agora conhecida em todo o mundo, mas o erro de partida teria sido seguir ou imitar uma ideia má, nociva, de alguma maneira prejudicial, e esta valeria o seu peso em ouro se uma ideia tão rica de conteúdo pudesse ser pesada. Acabo de assistir à passagem de um vídeo em que se me apresentaram umas quantas crianças, de cor na sua maior parte, às voltas com instrumentos em que nem em sonho haviam posto alguma vez as mãos, manejando arcos e pistões com uma facilidade para mim assombrosa, pois foi inevitável recordar o tempo, não muito, em que frequentei a Academia de Amadores de Música, onde não fiz mais que balbuciar uns vagos solfejos e tropeçar com os dedos no teclado de um piano. (O meu futuro não estava ali.) E mesmo que o futuro de todas aquelas crianças não venha a ser a música, tenho a certeza de que nunca irão esquecer as horas passadas na sala de ensaios e menos ainda, creio, os caminhos para chegar lá, carregando elas próprias as caixas dos seus instrumentos, pequenas como para uma flauta, manejáveis se continham um violino, menos cómodas se de um violoncelo se tratava. A gravidade daqueles rostos, mesmo quando a boca se lhes descerrou em sorrisos, a luz daqueles olhares, a ponderação com que respondiam às perguntas, confirmaram uma velha ideia minha, a de que a felicidade é uma coisa muito séria. Compenetrados, atentíssimos, ensaiavam uns quantos compassos da Nona de Beethoven. Creio que os que lêem estas páginas estarão de acordo comigo se eu disser que é um bom princípio de vida.
José Saramago, O CADERNO

sábado, 26 de maio de 2012

Dia 26 [Maio de 2009]

Armas
O negócio das armas, sujeito à legalidade mais ou menos flexível de cada país ou de simples e descarado contrabando, não está em crise. Quer dizer, a tão falada e sofrida crise que vem destroçando física e moralmente a população do planeta não toca a todos. Por toda a parte, aqui, além, os sem trabalho contam-se por milhões, todos os dias milhares de empresas declaram-se em falência e fecham as portas, mas não consta que um único operário de uma fábrica de armamento tenha sido despedido. Trabalhar numa fábrica de armas é um seguro de vida. Já sabemos que os exércitos precisam de armar-se, substituir por armas novas e mais mortíferas (disso se trata) os antigos arsenais que fizeram a sua época mas já não satisfazem as necessidades da vida moderna. Parece portanto evidente que os governos dos países exportadores deveriam controlar severamente a produção e a comercialização das armas que fabricam. Simplesmente, uns não o fazem e outros olham para o lado. Falo de governos porque é difícil crer que, a exemplo das instalações industriais mais ou menos ocultas que abastecem o narcotráfico, existam no mundo fábricas clandestinas de armamento. Logo, não há uma pistola que, por assim dizer, não vá tacitamente certificada pelo respectivo, ainda que invisível, selo oficial. Quando num continente como o sul-americano, por exemplo, se calcula que há mais de 80 milhões de armas, é impossível não pensar na cumplicidade mal disfarçada dos governos, tanto dos exportadores como dos importadores. Que a culpa, pelo menos em parte, é do contrabando em grande escala, diz-se, esquecendo que para fazer contrabando de algo é condição sine qua non que esse algo exista. O nada não é contrabandeável.
Toda a vida tenho estado à espera de ver uma greve de braços caídos numa fábrica de armamento, inutilmente esperei, porque tal prodígio nunca aconteceu nem acontecerá. E era essa a minha pobre e única esperança de que a humanidade ainda fosse capaz de mudar de caminho, de rumo, de destino.
José Saramago, O CADERNO

Caminhada pelas encostas da Serra do Alvão

Senhora da Graça - Serra do Alvão
Logo é dia de "caminhada pelas encostas da Serra do Alvão, a partir da Senhora da Graça, um dos mais belos miradouros do norte de Portugal, e uma oportunidade de ver o vale do rio Cabril que em breve desaparecerá sob as águas de uma barragem do Tâmega.
Após o almoço visitaremos, na freguesia de ATEI, uma notável igreja românica que fez parte do senhorio do Convento de Santa Clara de Vila do Conde."

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Lei dos Compromissos "impede as autarquias de transportarem doentes"

O presidente da Câmara Municipal de Vila do Conde alertou esta sexta-feira para o facto de a Lei dos Compromissos impedir as autarquias de "transportarem doentes" para unidades de saúde centrais. 
Mário Almeida, que falava na abertura do congresso internacional de paramiloidose que decorre em Vila do Conde, pediu ao secretário de Estado da Saúde que transmita ao Governo esta sua preocupação, porque, "se a lei não for alterada, as carrinhas da Câmara que fazem o transporte de doentes, muitos deles com paramiloidose, serão paradas".
A Lei dos Compromissos "não permite arranjar estas mesmas viaturas", lamentou Mário Almeida, que defende que "é impensável que determinados apoios que as Câmaras prestam, vitais para a vida das populações, tenham que acabar".
Para o autarca, a lei é "um ataque desenvolvido pelo Governo à autonomia administrativa, financeira e política das autarquias portuguesas".
Até porque, defende, se tem passado a "falsa ideia" que "a dívida pública dos municípios é grande, quando esta se cinge apenas a 3,1 por cento do endividamento público do Estado", denunciou o autarca.
Mário Almeida denomina de "famigerada" uma lei que está "contra a Constituição Portuguesa", porque "ofende a autonomia do poder local e é lesiva para os interesses das populações".
O autarca lamenta, acima de tudo, que a Lei dos Compromissos impeça as Câmaras Municipais de "darem subsídios a instituições sociais, numa altura em que há tanta gente com dificuldades, que não tem dinheiro para comprar medicamentos e que até passa fome".
São "pequenas coisas, mas a verdade é que representam muito para as populações", disse Mário Almeida.
Mário Almeida, também presidente do Conselho Geral da Associação Nacional de Municípios, lamenta que venha aí "um verdadeiro calvário para as populações" que poderia ser "minimizado com o apoio que as Câmaras Municipais têm possibilidade de dar".
O transporte de doentes, não só de Vila do Conde, mas também da Póvoa de Varzim para hospitais do Porto e de Lisboa, "é uma ajuda vital para estas pessoas que, sem isso, não poderão ser tratadas", concluiu Mário Almeida.
Questionado sobre, o secretário de Estado da Saúde Manuel Teixeira disse apenas que esse assunto é "tutelado pelo ministério das Finanças".

Dia 25 [Maio de 2009]

História de uma flor
Aí pelos começos dos anos 70, quando eu ainda não passava de um escritor principiante, um editor de Lisboa teve a insólita ideia de me pedir que escrevesse um conto para crianças. Não estava eu nada certo de poder desobrigar-me dignamente da encomenda, por isso, além da história de uma flor que estava a morrer à míngua de uma gota de água, fui-me curando em saúde pondo o narrador a desculpar-se por não saber escrever histórias para a gente miúda, a quem, por outro lado, diplomaticamente, convidava a reescrever com as suas próprias palavras a história que eu lhes contava. O filho pequeno de uma amiga minha, a quem tive o desplante de oferecer o livrinho, confirmou sem piedade a minha suspeita: «Realmente», disse à mãe, «ele não sabe escrever histórias para crianças». Aguentei o golpe e tentei não pensar mais naquela frustrada tentativa de vir a reunir-me com os irmãos Grimm no paraíso dos contos infantis. Passou o tempo, escrevi outros livros que tiveram melhor sorte, e um dia recebo uma chamada telefónica do meu editor Zeferino Coelho a comunicar-me que estava a pensar em reeditar o meu conto para crianças. Disse-lhe que devia haver um engano, porque eu nunca tinha escrito nada para crianças. Quer dizer, havia esquecido totalmente o infausto acontecimento. Mas, há que dizê-lo, foi assim que começou a segunda vida de A maior flor do mundo, agora com a bênção das extraordinárias colagens que João Caetano fez para a nova edição e que contribuíram de maneira definitiva para o seu êxito. Milhares de novas histórias (milhares, sim, não exagero) foram escritas nas escolas primárias de Portugal, Espanha e meio mundo, milhares de versões em que milhares de crianças demonstraram a sua capacidade criadora, não só como pequenos narradores, também como incipientes ilustradores. Afinal, o filho da minha amiga não tivera razão, o conto, de transparente simplicidade, havia encontrado os seus leitores. Mas as coisas não ficaram por aqui. Há alguns anos, Juan Pablo Etcheverry e Chelo Loureiro, que vivem na Galiza e trabalham em cinema, procuraram-me com o objectivo de fazer da Flor uma animação em plasticina, para a qual Emilio Aragón já tinha composto uma bela música. Pareceu-me interessante a ideia, dei-lhes a autorização que pediam e, passado o tempo necessário, inútil dizer que depois de muitos sacrifícios e dificuldades, o filme foi estreado. Eu próprio apareço nele, de chapéu e bastante favorecido na idade. São quinze minutos da melhor animação, que o público tem aplaudido em salas e festivais de cinema, como foram, no passado recente, os casos de Japão e Alasca. Como foi igualmente o prémio que acaba de lhe ser atribuído no Festival de Cinema Ecológico de Tenerife, felizmente ressurgido de uma paragem forçada de alguns anos. Chelo veio a nossa casa, trouxe-nos o prémio, uma escultura representando uma planta que parece querer ascender até ao sol e que, muito provavelmente, irá continuar a sua existência na Casa dos Bicos, em Lisboa, para mostrar como neste mundo tudo está ligado a tudo, sonho, criação, obra. É o que nos vale, o trabalho.
José Saramago, O CADERNO

terça-feira, 22 de maio de 2012

Dia 22 [Maio de 2009]

Mayores
Em português diríamos pessoas de idade. Num caso e no outro trata-se de eufemismos para fugir à aborrecida palavra «velhos», que podendo e devendo ser tomada como uma afirmação vital («Vivi e estou vivo»), é, com demasiada frequência, lançada à cara do idoso como uma espécie de desqualificação moral. E, contudo, pelo menos no meu país, usava-se (usa-se ainda?) uma resposta definitiva, fulminante, dessas que tapam a boca ao interlocutor: «Velhos são os trapos», respondiam os velhos do meu tempo a quem se atrevesse a chamar-lhes velhos. E continuavam com o seu trabalho, sem dar mais atenção às vozes do mundo. Velhos seriam, claro, mas não inúteis, não incapazes de meter a sovela no lugar certo do sapato ou de guiar a relha do arado com que andasse lavrando. A vida tinha uma coisa má: era dura. E tinha uma coisa boa: era simples.
Hoje continua a ser dura, mas perdeu a simplicidade. Talvez tenha sido esta percepção, formulada assim ou doutra maneira, que fez nascer a ideia de criar uma universidade para pessoas de idade em Castilla-La Mancha, essa que precisamente se chama Universidad para Mayores e de que tenho a honra de ser patrono. Pessoas a quem a idade obrigou a deixar o seu trabalho, que fazer com elas? Outras em quem a idade fez nascer curiosidades que até então não se haviam experimentado, que fazer com elas? A resposta não tardou: criar uma universidade para as gerações de cabelos brancos e rugas na cara, um lugar onde pudessem estudar e descobrir mundos do conhecimento ocultos ou mal sabidos. Cada uma dessas pessoas, cada uma dessas mulheres, cada um desses homens, pode dizer quando abre um livro ou escreve a resposta a um questionário: «Não me rendi». Nesse momento uma aura de juventude rediviva perpassa-lhes no rosto, em espírito é como se estivessem sentados ao lado dos netos, ou foram eles que se vieram sentar ao lado dos seus maiores. O conhecimento une cada um consigo mesmo e todos com todos.
Qualquer idade é boa para aprender. Muito do que sei aprendi-o já na idade madura e hoje, com 86 anos, continuo a aprender com o mesmo apetite. Não frequento a Universidade para Mayores Castilla-La Mancha (lá irei um dia), mas partilho a alegria (diria mesmo a felicidade) dos que lá estudam, esses a quem me dirijo com estas palavras simples: Queridos Colegas.
José Saramago, O CADERNO

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Dia 21 [Maio de 2009]

Suborno
Tinha jurado a mim mesmo não voltar a escrever sobre este figurão nos tempos mais próximos, mas, uma vez mais, a força dos factos pôde mais que a minha vontade. Neste caso não se trata de misses, modelos e bailarinas escolhidas a dedo (ou pelos dedos) para o Parlamento Europeu nem de jóias como presente de aniversário a jovens ragazzi pouco mais que adolescentes que tratam o primeiro-ministro italiano por «papi», termo que não sei exactamente o que quererá dizer (o meu forte não é italiano falado pelas lolitas de lá), mas que prometeria muito até ao menos atento dos exames. Também não se trata do badalado divórcio do qual, pessoalmente, duvido muito que se venha a consumar porque os interesses materiais mútuos pesam e o risco é grande de que a comédia (se o é) acabe em reconciliação e muitas horas de transmissão televisiva.
O que me tirou do meu relativo sossego em relação ao «padrone» Berlusconi foi uma sentença do Tribunal de Milão que condena o advogado britânico David Mills a quatro anos e meio de prisão por corrupção em acto judicial. Afirma-se na sentença que Berlusc (saiu assim, assim o deixo ficar) subornou em 1997, nada menos que com 600 000 dólares, o dito advogado e que este incorreu em «falso testemunho» com o objectivo de «proporcionar impunidade a Berlusconi e ao grupo Fininvest». A reacção de Berlusc foi típica: «É uma sentença absolutamente escandalosa, contrária à realidade». E mais: «Haverá recurso, haverá outro juiz, e eu estou tranquilo». O leitor notará aquela referência a «outro juiz» que, pelo menos assim o leio eu, não passa de um acto falhado que me permitirei interpretar desta maneira: «Haverá outro juiz, que eu tratarei de subornar». Como subornou outros antes, acrescento.
José Saramago, O CADERNO

domingo, 20 de maio de 2012

Dia 20 [Maio de 2009]

Um sonho
Nunca vi a pessoa em questão, nunca lhe falei, não tem nem teve jamais lugar no círculo dos meus interesses, quer imediatos quer distantes, e para que tudo fique dito em meia dúzia de palavras, considerando os anos que no passado levei ouvindo ou lendo este nome, nem sequer sei se está vivo. Refiro-me a um editor português, Domingos Barreira, que na noite passada veio visitar-me no meu sono. Aliás, não cheguei a vê-lo e, se o visse, não saberia que cara lhe haveria de pôr. O que ele fez foi enviar-me uma secretária com o recado de que gostaria de encontrar-se comigo para conversarmos sobre coisas passadas. Que coisas passadas fossem elas, ainda estou para sabê-lo, porque, apesar do encontro ter ficado aprazado para o próximo fim-de-semana, não se falou de local. E, como se isso fosse pouco, acordei, e, quando acordei, a secretária não estava ali.
Agora, que venham os doutores da academia explicar-me este sonho sem causa aparente nem motivo que se perceba. Salvo se se quiser aceitar uma ideia minha, antes lhe chamaria convicção, a de que a doença que há um ano e tal esteve a ponto de levar-me deu uma volta à minha cabeça, desarrumando as memórias e voltando a arrumá-las por outra ordem e poderá ter sido, também ela, a responsável por este insólito sonho. Infelizmente, ficará sem resposta a pergunta: “Porquê?” Paciência, não se pode ter tudo e os doutores da academia têm com certeza mais que fazer que ler esta página.
José Saramago, O CADERNO

sábado, 19 de maio de 2012

Dia 19 [Maio de 2009]

Poetas e poesia
Não será com todos nem será sempre, mas às vezes acontece o que estamos vendo nestes dias: que, por ter morrido um poeta aparecem, em todo o mundo, leitores de poesia que se declaram devotos de Mario Benedetti e que precisam de um poema que expresse o seu desconsolo e talvez também para recordar um passado em que a poesia teve lugar permanente, quando hoje é a economia que nos impede de dormir. Assim, vemos que de repente se estabelece um tráfico de poesia que deve ter deixado perplexos os medidores oficiais, porque de um continente a outro saltam mensagens estranhas, de factura original, linha curtas que parecem dizer mais do que à primeira vista se crê. Os decifradores de códigos não têm mãos a medir, há demasiados enigmas para decifrar, demasiados abraços e demasiada música acompanhando sentimentos que são demasiados: o mundo não poderia suportar muitos dias desta intensidade emocional, mas tão-pouco, sem a poesia que hoje se expressa, seríamos inteiramente humanos. E isto, em poucas linhas, é o que está sucedendo: morreu Mario Benedetti em Montevideo e o planeta tornou-se pequeno para albergar a emoção das pessoas. De súbito os livros abriram-se e começaram a expandir-se em versos, versos de despedida, versos de militância, versos de amor, as constantes da vida de Benedetti, junto à sua pátria, aos seus amigos, ao futebol e alguns boliches de trago largo e noites mais largas ainda.
Morreu Benedetti, esse poeta que soube fazer-nos viver os nossos momentos mais íntimos e as nossas raivas menos ocultas. Se com os seus poemas saímos à rua – lado a lado somos muito mais que dois –, se lendo Geografias, por exemplo, aprendemos a amar um país pequeno e um continente grande, agora, segundo as cartas que chegam à Fundação, recuperaram-se momentos de amor que deram sentido a tempos passados, e quem sabe se presentes. Isso também o devemos a Benedetti, ao poeta que ao morrer fez de nós herdeiros da bagagem de uma vida fora do comum.

«No es verdad que el mundo está todo descubierto. El mundo no es sólo la geografía con sus valles y montañas, sus ríos y sus lagos, sus planicies, los grandes mares, las ciudades y las calles, los desiertos que ven pasar el tiempo, el tiempo que nos ve pasar a todos. El mundo es también las voces humanas, ese milagro de la palabra que se repite todos los días, como un corona de sonidos viajando en el espacio. Muchas de esas voces cantan, algunas cantan verdaderamente. La primera vez que oí cantar a Tania Libertad tuve la revelación de las alturas de la emoción a que puede llevarnos una voz desnuda, sola delante del mundo, sin ningún instrumento que la acompañara. Tania cantaba a capella La paloma de Rafael Alberti, y cada nota acariciaba una cuerda de mi sensibilidad hasta el deslumbramiento.
Ahora Tania Libertad canta a Mario Benedetti, ese gran poeta a quien tan bien le sentaría el nombre de Mario Libertad...
Son dos voces humanas, profundamente humanas, que la música de la poesía y la poesía de la música han reunido. De él la palabras, de ella la voz.
Oyéndolas estamos más cerca del mundo, más cerca de la libertad, más cerca de nosotros mismos.»
José Saramago, O CADERNO

sexta-feira, 18 de maio de 2012

Dia 18 [Maio de 2009]

Charlot
Numa destas últimas noites vi na televisão alguns filmes antigos de Chaplin, a saber, dois ou três episódios nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial e um filme mais extenso, The Pilgrim, que, retoma, com menos felicidade que noutros casos, o tema recorrente de um Chaplin sem culpas procurado pela polícia. Não sorri nem uma única vez. Surpreendido comigo mesmo, como se tivesse faltado a uma jura solene, dei-me ao trabalho de tentar recordar, tanto quanto me seria possível oitenta anos depois, que risos, que gargalhadas me terá feito soltar Charlot nos dois cinemas populares de Lisboa que frequentava quando tinha seis ou sete anos. Não recordei grande coisa. Os meus ídolos nessa época eram dois cómicos dinamarqueses, Pat e Patachon, que esses, sim, eram, para mim, autênticos campeões da gargalhada. Continuando a reflectir com os meus botões, sempre bons conselheiros porque em princípio não mudam de casa nem de opinião, cheguei à inesperada conclusão de que Chaplin, afinal, não é um cómico, mas um trágico. Repare-se como tudo é triste, como tudo é melancólico nos seus filmes. A própria máscara chaplinesca, toda ela em branco e negro, pele de gesso, sobrancelhas, bigode, olhos como pingos de alcatrão, é uma máscara que em nada destoaria ao lado das representações plásticas clássicas do actor trágico. E há mais. O sorriso de Chaplin não é um sorriso feliz, pelo contrário, aventuro-me a dizer, sabendo ao que me arrisco, que é tão inquietante que ficaria bem na boca de qualquer drácula. Se eu fosse mulher, fugiria de um homem que me sorrisse assim. Aqueles incisivos, demasiado grandes, demasiado regulares, demasiado brancos, assustam. São um esgar no enquadramento rígido dos lábios. Sei de antemão que pouquíssimos vão estar de acordo comigo. O caso é que, uma vez que foi decidido que Chaplin é um actor cómico, ninguém lhe olha para a cara. Creiam no que lhes digo. Olhem-no de frente sem ideias feitas, observem aquelas feições uma por uma, esqueçam por um momento a dança dos pezinhos, e digam-me depois o que viram. Chaplin levaria todos os seus filmes a chorar se pudesse.
José Saramago, O CADERNO

terça-feira, 15 de maio de 2012

Dia 26 [Maio de 2009]

Até quando?
Há uns dois mil e cinquenta anos, mais dia menos dia, a esta hora ou outra, estava o bom Cícero clamando a sua indignação no senado romano ou no foro: «Até quando, ó Catilina, abusarás da nossa paciência?», perguntou ele uma vez e muitas ao velhaco conspirador que o quis matar e fazer-se com um poder a que não tinha qualquer direito. A História é tão pródiga, tão generosa, que não só nos dá excelentes lições sobre a actualidade de certos acontecidos outrora como também nos lega, para governo nosso, umas quantas palavras, umas quantas frases que, por esta ou aquela razão, viriam a ganhar raízes na memória dos povos. A frase que deixei acima, fresca, vibrante, como se tivesse acabado de ser pronunciada neste instante, é sem dúvida uma delas. Cícero foi um grande orador, um tribuno de enormes recursos, mas é interessante observar como, neste caso, preferiu utilizar termos dos mais comuns, que poderiam mesmo ter saído da boca de uma mãe que repreendesse o filho irrequieto. Com a enorme diferença de que aquele filho de Roma, o tal Catilina, era um traste da pior espécie, quer como homem, quer como político.
A História de Itália surpreende qualquer um. É um extensíssimo rosário de génios, sejam eles pintores, escultores ou arquitectos, músicos ou filósofos, escritores ou poetas, iluminadores ou artífices, um não acabar de gente sublime que representa o melhor que a humanidade tem pensado, imaginado, feito. Nunca lhe faltaram catilinas de maior ou menor envergadura, mas disso nenhum país está isento, é lepra que a todos toca. O Catilina de hoje, em Itália, chama-se Berlusconi. Não necessita assaltar o poder porque já é seu, tem dinheiro bastante para comprar todos os cúmplices que sejam necessários, incluindo juízes, deputados e senadores. Conseguiu a proeza de dividir a população de Itália em duas partes: os que gostariam de ser como ele e os que já o são. Agora promoveu a aprovação de leis absolutamente discricionárias contra a emigração ilegal, põe patrulhas de cidadãos a colaborar com a polícia na repressão física dos emigrantes sem papéis e, cúmulo dos cúmulos, proíbe que as crianças de pais emigrantes sejam inscritas no registo civil. Catilina, o Catilina histórico, não faria melhor.
Disse acima que a História de Itália surpreende qualquer um. Surpreende, por exemplo, que nenhuma voz italiana (ao menos que haja chegado ao meu conhecimento) tenha retomado, com uma ligeira adaptação, as palavras de Cícero: «Até quando, ó Berlusconi, abusarás da nossa paciência?» Experimente-se, pode ser que dê resultado e que, por esta outra razão, a Itália volte a surpreender-nos.
José Saramago, O CADERNO

DIÁRIO (XIII)

Coimbra, 15 de Maio de 1980 – Sou do ofício e já não estranhei.
– O seu homem?
– Lá está na reanimação...
Dantes, a pessoa vinha ao mundo, fazia-se gente, chegava a velho, a caminhar progressivamente para o fim de acordo com a fisiologia. Agora, a morte não é mais um desfecho natural. É uma falência da técnica.

segunda-feira, 14 de maio de 2012

Dia 14 [Maio de 2009]

Sofía Gandarias
À pergunta angustiada, ainda que carregada de uma retórica fácil, que o papa lançou em Auschwitz para surpresa e escândalo do mundo crente: «Onde estava Deus?», vem esta grande exposição de Sofía Gandarias responder com simplicidade: «Deus não está aqui». É evidente que Deus não leu Kafka e, pelos vistos, Ratzinger também não. Não leram nem sequer Primo Levi, que está mais perto do nosso tempo e nunca se serviu de alegorias para descrever o horror. Se se me permite a ousadia, eu aconselharia ao papa que visitasse, com tempo e olhos de ver, esta exposição de Sofía, que escutasse com atenção as explicações que lhe fossem dadas por uma pintora que, sabendo muito da arte que cultiva, muito sabe também do mundo e da vida que nele temos feito, os que crêem e os que não crêem, os que esperam e os que desesperam, e os outros, os que fizeram Auschwitz e os que perguntam onde estava Deus. Melhor seria que nos perguntássemos onde estamos nós, que doença incurável é esta que não nos deixa inventar uma vida diferente, com deuses, se quiserem, mas sem nenhuma obrigação de crer neles. A única e autêntica liberdade do ser humano é a do espírito, de um espírito não contaminado por crenças irracionais e por superstições talvez poéticas em algum caso, mas que deformam a percepção da realidade e deveriam ofender a razão mais elementar.
Acompanho o trabalho de Sofía Gandarias desde há anos. Assombra-me a sua capacidade de trabalho, a força da sua vocação, a mestria com que transfere para a tela as visões do seu mundo interior, a relação quase orgânica que mantém com a cor e o desenho. Sofía Gandarias é, toda ela, memória. Memória de si mesma, como qualquer, em primeiro lugar, mas também memória do que viveu e do que aprendeu, memória de tudo o que interiorizou como algo próprio, memória de Kafka, de Primo Levi, de Roa Bastos, de Borges, de Rilke, de Brecht, de Hanna Arendt, de quantos, para tudo dizer numa palavra, se debruçaram do poço da alma humana e sentiram a vertigem.
Nota: Texto para a exposição «Kafka, o visionário», de Sofía Gandarias, que poderá visitar-se na Haus am Kleistpark de Berlim a partir do dia 28 deste mês.
José Saramago, O CADERNO

domingo, 13 de maio de 2012

Dia 13 [Maio de 2009]

Corrupção à inglesa
Lê-se e não se acredita. Dá vontade de promover urgentemente uma subscrição pública capaz de reunir uns quantos trocos para ajudar os deputados ingleses, tanto trabalhistas como conservadores, a chegarem ao fim do mês ainda com algumas libras no bolso. Apetece perguntar: «Império britânico, quem te viu e quem te vê?» Donos de metade do mundo num passado não tão distante, agora pouco lhes falta para descer à rua e estender a mão à caridade dos eleitores. Não é que não tenham o suficiente para comer. Pelo menos que se saiba, não há notícia de que algum deputado ou deputada tenham desmaiado de fome durante um discurso. A coisa ainda não chegou aí. Mas que podemos dizer da deputada Cheryl Gillan que passou à conta do Estado a importância de 87 cêntimos de euro pela compra de duas latas de comida para cães? Ou do deputado David Willetts, que chamou um operário para que lhe mudasse 25 lâmpadas em sua casa, pagando o Estado o trabalho? Ou Alan Duncan, que reformou o jardim à custa do contribuinte? A lista de casos é extensíssima.
O escândalo na Grã-Bretanha está a atingir tais proporções que o primeiro-ministro Gordon Brown se viu obrigado a pedir desculpa em nome da classe política do país, incluindo os partidos, todos eles, perante o gravíssimo descrédito que está a sofrer a reputação dos políticos que abusam do dinheiro público para cobrir as suas despesas como deputados. Realmente há que fazer algo para pôr cobro a esta vergonha, onde não é difícil encontrar sinais de farsa. Eu, por mim, tenho uma ideia: contratar um novo Robin Hood, um que ponha a saque os pobres para que não falte dinheiro aos representantes da nação para as suas despesas miúdas, que em muito casos de miúdas não têm nada, como foi o caso de David Cameron, líder dos conservadores, que levou à conta do Estado 92 000 euros gastos na sua segunda residência. Creiam-me, a solução está à vista. A Robin Hood não lhe falta experiência e por enquanto ainda tem boa reputação.

José Saramago, O CADERNO

sábado, 12 de maio de 2012

Dia 12 [Maio de 2009]

A coragem
Patricia Kolesnicov é jornalista e argentina, mais jornalista que argentina em minha opinião, mas isto é só uma pequena ideia de literato, colocar a profissão antes da nacionalidade como se estivesse a substituir um mundo por outro. Há anos apareceu-lhe um cancro da mama que enfrentou com a coragem de que só uma mulher é capaz. Não o digo para parecer bem, para ganhar indulgências entre a outra metade da humanidade. Se o digo é simplesmente porque o penso: perante a dor, perante o sofrimento, elas são muito mais valentes que nós. A criança que chora e se lastima por ter esfolado um joelho continua a existir no homem mesmo que passem muitos anos, e quantos mais passem, mais essa presença se notará. A mulher meteu-lhe uma decidida chupeta na boca e, se a não conseguiu calar de todo, ao menos aplicou uma surdina aos seus queixumes, que os tornará relativamente suportáveis a ouvidos e sensibilidades alheias. O homem exibe, a mulher não quer que se note.
Quando o cancro foi vencido, Patricia escreveu um livro a que pôs o título de Biografia do meu cancro. Não gostei e disse-lho, mas ela não me fez caso. O livro (publicado também em Portugal, na Caminho) traça sem complacências um percurso duríssimo e, talvez para honrar a palavra daqueles que afirmam existir um humor judeu particular (Patrícia é judia), o relato, que noutras mãos seria grave, inquietante, inclusive assustador, desperta frequentemente em nós um sorriso cúmplice, uma súbita risada, uma irreprimível gargalhada. Com um pouco mais Patricia Kolesnicov tornar-se-ia mestra do paradoxo e do mais negro dos humores.
Patricia acaba de recuperar os direitos sobre a sua obra e não lhe ocorreu melhor ideia que pô-la na internet para uso, disfrute e lição de toda a gente. Leiam-na e agradeçam-lhe. E, já agora, agradeçam-me também a mim que sou seu amigo e escrevi estas palavras justas, mínimas para o que ela mereceria, mas que outros (os seus leitores) farão crescer pela via do respeito e da admiração. Pela coragem.
José Saramago, O CADERNO

sexta-feira, 11 de maio de 2012

Dia 11 [Maio de 2009]

Torturas
Que eu saiba (mas eu sei muito pouco) nenhum animal tortura outro animal e menos ainda um semelhante seu. É certo que se diz que o gato sente prazer e se diverte à grande, a atormentar o rato que acabou de lhe cair nas unhas e que só virá a devorar depois de lhe haver moído bem as carnes numa forma particular de maceração, mas os entendidos nestas matérias (não sei se os entendidos em gatos ou em ratos) afirmam que o felino, como um requintado gourmet sempre à procura das cinco estrelas cinco, está simplesmente a melhorar o sabor do manjar por via de um inevitável rompimento da vesícula biliar do roedor. Sendo a natureza tão vária e diversa, tudo é possível. Menos diversa e vária, ao contrário do que geralmente se crê, é a natureza humana. Torturou no passado, tortura hoje e, não tenhamos dúvidas, continuará a torturar por todos os tempos futuros, começando pelos animais, todos eles, estejam domesticados ou não, e terminando na sua própria espécie, com cujas agonias especialmente se deleita.
Para aqueles que teimam na existência de algo a que, com os olhos em alvo, se atrevem a chamar bondade humana, a lição é dura e muito capaz de lhes fazer perder algumas das suas queridas ilusões. Acaba de ser trazido ao conhecimento da opinião pública um dos mais demenciais casos de tortura que poderíamos imaginar. O torturador é um irmão do emir de Abu Dhabi e presidente dos Emiratos Árabes Unidos, um dos países mais ricos do mundo, grande exportador de petróleo. O infeliz torturado foi um comerciante afegão acusado de ter perdido um carregamento de cereais no valor de 4000 euros que o xeque Al Nayan (este é o nome da besta) havia adquirido.
O que se passou conta-se em poucas palavras, já que um relato completo exigiria um livro de muitas páginas. A gravação do vídeo, de 45 minutos, mostra um homem de chilaba branca golpeando os testículos da vítima com uma aguilhada eléctrica, dessas que se usam para tocar o gado, que depois lhe introduz no ânus. A seguir verte-lhe sobre os testículos o conteúdo de um isqueiro e pega-lhes fogo, lançando depois sal sobre a carne queimada. Para rematar, atropela várias vezes o desgraçado com um carro todo-o-terreno. No vídeo pode ouvir-se os ossos a partirem-se. Como se vê, um simples capítulo mais da ilimitada crueldade humana.
Se Alá não toma conta da sua gente, isto vai acabar mal. Já tínhamos a Bíblia como manual do perfeito criminoso, agora é a vez do Corão, que o xeque Al Nayan reza todos os dias.
José Saramago, O CADERNO

quarta-feira, 9 de maio de 2012

A Tabuada

Quando era pequenino, comecei a aprender a prova da multiplicação com a ajuda da minha antiga mãe.

terça-feira, 8 de maio de 2012

Georges Clemenceau

« La vie m'a appris qu'il y a deux choses dont on peut très bien se passer : la présidence de la République et la prostate.  »

de Georges Clemenceau

Dia 8 [Maio de 2009]

A feira
Este ano não irei à Feira do Livro de Lisboa. Que não é como a de Frankfurt, ou a de Guadalajara, no México, nem sequer como a de Madrid, mas que é a nossa e está num lugar bonito, onde antes havia uma colina e agora menos, porque a fúria urbanística reduziu encostas, mas ainda assim vê-se o rio ao fundo, e há uma bela imagem da cidade pombalina, a que ia ser moderna e racional e o foi, basta passear por ela para ver que a razão esteve presente quando se desenhou, embora logo tivessem vindo outros que preferiram o obscurantismo às luzes e quase deram cabo dela.
Dizem-me que faz bom tempo e que a Feira este ano está mais animada, como se por esse mundo fora não lavrassem coisas terríveis, crise, pobreza, depressão. Diz-se que em épocas de crise se lê mais, e parece que os contabilistas comprovam esta afirmação. A mim agrada-me pensar que em épocas de crise as pessoas querem saber por que chegámos a isto e acercam-se aos livros como se estes fossem fontes de água fresca e os leitores gente sedenta.
Gosto da Feira do Livro. Gosto de estar horas sentado assinando exemplares de pessoas que chegam com um recado, em geral discreto. Gosto de levantar os olhos e ver as pessoas circulando entre os pavilhões, talvez procurando o ser humano que os livros levam dentro. Gosto do calor da primeira parte da tarde e da frescura que virá depois, sinto que certo lirismo me percorre o corpo, em mim que não sou lírico, mas sentimental. E penso que os livros são bons para a saúde, e também para o espírito, e que nos levam a ser poetas ou a ser cientistas, a entender de estrelas ou encontrá-las no interior da vontade de certas personagens, essas que às vezes, algumas tardes, se escapam das páginas e vão passear entre os humanos, talvez mais humanas elas.
Sinto muito não poder estar este ano em Lisboa, na Feira do Livro.
José Saramago, O CADERNO

segunda-feira, 7 de maio de 2012

Eleição em França

François Hollande foi eleito presidente da França.

Dia 7 [Maio de 2009]

Homem novo
Culturalmente, é mais fácil mobilizar os homens para a guerra que para a paz. Ao longo da história, a Humanidade sempre foi levada a considerar a guerra como o meio mais eficaz de resolução de conflitos, e sempre os que governaram se serviram dos breves intervalos de paz para a preparação das guerras futuras. Mas foi sempre em nome da paz que todas as guerras foram declaradas. É sempre para que amanhã vivam pacificamente os filhos que hoje são sacrificados os pais…
Isto se diz, isto se escreve, isto se faz acreditar, por saber-se que o homem, ainda que historicamente educado para a guerra, transporta no seu espírito um permanente anseio de paz. Daí que ela seja usada muitas vezes como meio de chantagem moral por aqueles que querem a guerra: ninguém ousaria confessar que faz a guerra pela guerra, jura-se, sim, que se faz a guerra pela paz. Por isso todos os dias e em todas as partes do mundo continua a ser possível partirem homens para a guerra, continua a ser possível ir ela destruí-los nas suas próprias casas.
Falei de cultura. Porventura serei mais claro se falar de revolução cultural, embora saibamos que se trata de uma expressão desgastada, muitas vezes perdida em projectos que a desnaturaram, consumida em contradições, extraviada em aventuras que acabaram por servir interesses que lhe eram radicalmente contrários. No entanto, essas agitações nem sempre foram vãs. Abriram-se espaços, alargaram-se horizontes, ainda que me pareça que já é mais do que tempo de compreender e proclamar que a única revolução realmente digna de tal nome seria a revolução da paz, aquela que transformaria o homem treinado para a guerra em homem educado para a paz porque pela paz haveria sido educado. Essa, sim, seria a grande revolução mental, e portanto cultural, da Humanidade. Esse seria, finalmente, o tão falado homem novo.
José Saramago, O CADERNO

sábado, 5 de maio de 2012

Dia 5 [Maio de 2009]

Santo da casa
O refrão diz que santos da casa não fazem milagres, salvo que a igreja venha um dia afirmar o contrário, que sim senhor os fazem, a dificuldade só está em documentá-los, em reunir testemunhos bastantes e crer na fiabilidade deles. Ao que parece, Nuno Álvares Pereira, até há pouco tempo Beato de Santa Maria para a igreja católica, fez um milagre na vida, um único, mas mais do que suficiente para o elevar à suprema dignidade dos altares, como o acaba agora mesmo de decidir o papa Ratzinger, para quem, pela amostra, qualquer milagre serve. A uma mulher que estava fritando peixe (seria peixe?) saltou-lhe uma gotícula de azeite fervente para um olho, causando-lhe uma chaga, uma úlcera ou algo deste jaez, com sofrimento e risco de perder a visão do dito olho. A mulher invocou o auxílio do Beato de Santa Maria e a ferida não tardou a fechar. Isto é o que pôde ser deduzido das informações coligidas pela comissão vaticanal encarregada de averiguar a limpeza das candidaturas. Resultado, temos mais um santo português na estatística do céu.
Nuno Álvares Pereira, o Condestável, foi sempre uma pedra básica na educação dos portugueses, mormente nas classes primárias da escola, em que se forjavam o espírito cívico e o sentimento patriótico dos futuros cidadãos. Bons tempos aqueles. Guerreiro invencível (recordemos Atoleiros e Aljubarrota), espelho de virtudes, exemplo sublime de dedicação à pátria e de fidelidade absoluta ao seu rei, um Portugal todo feito de Nunos Álvares seria o assombro do universo, não teríamos que esperar o Quinto Império anunciado pelo Padre António Vieira nem o cumprimento das profecias do sapateiro Bandarra. Há porém na vida deste varão impoluto uma nódoa inapagável sobre a qual piedosamente costumamos passar os olhos quando não simplesmente os desviamos. Nuno Álvares Pereira era um homem rico, riquíssimo. Graças à liberalidade e à gratidão de D. João I pelos serviços por ele prestados, foi acumulando bens e domínios ao longo da vida, ao ponto de possuir mais terras que qualquer outro fidalgo do tempo, incluindo, por extraordinário que pareça, a própria casa real. Durou isto até ao dia em que D. João I compreendeu que por aquele andar iria ficar sem país. Se fosse hoje, haveria expropriado, mas não encontrou melhor solução que comprar o que havia dado, a Nuno Álvares Pereira, sim, mas também, a Martim Vasques da Cunha, João Fernandes Pacheco, ao irmão deste, Lobo Fernandes, Egas Coelho, João Gomes da Silva e outros. Foi notória a contrariedade do Condestável. Tendo ido a Estremoz mandou chamar, como conta Fernão Lopes, «algumas gentes, assim aqueles que o na guerra serviam como de outros criados e amigos, e foram hi juntos soma deles, com os quais o Conde falou, dizendo como el-Rei havia por seu serviço de lhe tirar parte das terras que lhe dado tinha, por a qual razão se ele não podia suportar como a sua honra pertencia com as que lhe de ficar houvessem: e que por isso se queria ir fora do reino a buscar sua vida, guardando sempre o serviço de el-Rei…» A ideia não foi por diante, o sangue não chegou ao rio, Nuno Álvares Pereira não saiu de Portugal, mas para a História ficou um mistério: em que estava a pensar o Condestável quando disse que, mesmo na «emigração» (onde? para quê? com quem?), guardaria sempre o serviço de el-Rei? Fernão Lopes nada mais diz e a nós, apesar de tudo, repugna-nos a ideia de que Nun’Álvares fosse oferecer os seus préstimos aos castelhanos… Ainda assim, há algo de suspeito no facto de o papa, ao anunciar a canonização, ter dito Nuno Álvarez…
José Saramago, O CADERNO

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Dia 4 [Maio de 2009]

Benedetti
O susto foi grande, Mario Benedetti estava no hospital e o seu estado era considerado grave. Ángel González foi-se-nos quase sem aviso, numa fria madrugada de Janeiro. Que agora fosse a vida de Benedetti a estar em perigo lá no seu distante Montevideo era algo que a preocupação aqui despertada não se resignava a aceitar. E, contudo, nada podíamos fazer. Enviar telegramas, à antiga usança? Mandar recados por algum amigo? Rezar uma oração pelo seu pronto restabelecimento, se com isso não fôssemos provocar a ira laica de Mario? Pilar encontrou a solução. Que era em verdade Mario Benedetti, que havia sido ele em toda a sua  vida, muito mais que as múltiplas profissões exercidas? Poeta. Então arranquemos os seus poemas à imobilidade da página e façamos com eles uma nuvem de palavras, de sons, de música, que atravesse o mar atlântico (as palavras, os sons, a música de Benedetti) e se detenha, como uma orquestra protectora, diante da janela que está proibido abrir, embalando-lhe o sono e fazendo-o sorrir ao despertar. Aos médicos alguma coisa se ficou a dever, reconheçamo-lo, mas nós, todos os que ao redor do mundo demos a nossa contribuição pessoal, juntando poemas de Benedetti aos poemas de Benedetti, tivemos também a nossa parte no trabalho. Mario Benedetti está melhor. Leiamos então um poema dele.[1]
José Saramago, O CADERNO


[1] HASTA MAÑANA
Voy a cerrar los ojos en voz baja
voy a meterme a tientas en el sueño.
En este instante el odio no trabaja
para la muerte, que es su pobre dueño
la voluntad suspende su latido
y yo me siento lejos, tan pequeño
que a Dios invoco, pero no le pido
nada, con tal de compartir apenas
este universo que hemos conseguido
por las malas y a veces por las buenas.
¿Por qué el mundo soñado no es el mismo
que este mundo de muerte a manos llenas?
Mi pesadilla es siempre el optimismo:
me duermo débil, sueño que soy fuerte,
pero el futuro aguarda. Es un abismo.
No me lo digan cuando me despierte.

DIÁRIO (XIII)

       Coimbra, 4 de Maio de 1980 – Morreu Tito, o último dos homens desmedidos do século. Foi uma chusma deles! Às vezes a História capricha e brinda certas épocas com monstros assim, que podem ser génios do bem ou do mal, ou de ambos ao mesmo tempo. O de hoje acumulava, e conseguiu simultaneamente meter medo e impor respeito, dar e tirar a liberdade, ser um tirano e um pai. A eternidade dos mortais é curta. A dos políticos, então, acaba ordinariamente no dia do enterro. Mas há alguns eleitos que escapam a essa lei do olvido. É o caso. Os povos desunidos que uniu e manteve independentes face aos imperialismos da hora, mesmo doridos dos vergões da sua mão de ferro, nunca esquecerão o herói lendário e concreto que os tutelou e dignificou. E o mundo, que necessita de arquétipos, verá também nele um dos periódicos e carismáticos mensageiros de uma esperança de salvação colectiva, sempre ao alcance da vista e sempre adiada.

quarta-feira, 2 de maio de 2012

Dia 2 [Maio de 2009]

Expulsão
Espero que a estas horas os agressores de Vital Moreira já tenham sido identificados. Quem são eles, afinal? Que foi que os levou a um procedimento em todos os aspectos repulsivo? Que ligações partidárias são as suas? Sem dúvida a resposta mais elucidativa será a que vier a ser dada à última pergunta. A Vital Moreira chamaram-lhe «traidor», e isto, queira-se ou não se queira, é bastante claro para que o tomemos como o cordão umbilical que liga o desprezível episódio do desfile do 1.º de Maio à saída de Vital Moreira do Partido Comunista há vinte anos. Neste momento estamos a assistir a algo já conhecido, toda a gente, com a mais clara falta de sinceridade, a pedir desculpa a toda a gente ou a exigir, como vestais ofendidas, que outros se desculpem. De repente, ninguém parece interessado em saber quem foram os agressores, dignos continuadores daqueles célebres caceteiros que exerceram uma importante actividade política pela via da cachaporra em épocas passadas. Não tanto por contrariar, mas por uma questão de higiene mental, gostaria eu de saber que relação orgânica existe (se existe) entre os agressores e o partido de que sou militante há quarenta anos. São militantes também eles? São meros simpatizantes? Se são apenas simpatizantes, o partido nada poderá contra eles, mas, se são militantes, sim, poderá. Por exemplo, expulsá-los. Que diz a esta ideia o secretário-geral? Serão provocadores alheios à política, desesperados por sofrerem esta crise e que pensam que o inimigo é o PS e o candidato independente às eleições europeias?… Não se pode simplificar tanto, nem na rua nem nos gabinetes.
Embora o tenham incluído na lista dos candidatos, o Prémio Nobel de Literatura nunca se encontrará com o seu amigo Vital Moreira no Parlamento Europeu. Dir-se-á que a culpa é sua, pois sempre quis ir em lugar não elegível, mas também se deverá dizer que sobre ele em nenhum momento se exerceu a mínima pressão para que não fosse assim. Nem sequer a Assembleia da República pôde conhecer os meus brilhantes dotes oratórios… Não me queixo, mais tempo tive para os meus livros, mas o que é, é, e alguma explicação terá. Que espero que não seja por me considerarem a mim também traidor, pois embora militante disciplinado, nem sempre estive de acordo com decisões políticas do meu partido. Como, por exemplo, apresentar listas separadas para a Câmara de Lisboa, que, pelos vistos, vamos entregar a Santana Lopes, isso sim, sem que ninguém tenha perdido a virgindade do pacto municipal. Apetece dizer «Deus nos valha», porque nós parecemos incapazes.
José Saramago, O CADERNO

terça-feira, 1 de maio de 2012

DIÁRIO (XIII)


Campos do Mondego, 1 de Maio de 1980 – Uma tarde de paz, a ver a paz dos camponeses a lavrar e a semear. Nenhum deles sabe sequer que o dia é de santidade operária. O rural só conhece uma luta: a de todos as horas com a fatalidade dos elementos. Tantas vezes revoltado contra os caprichos da natureza, é naturalmente avesso à incerteza das subversões. Por isso, não é nem pode ser um revolucionário na acepção política da palavra. A sua revolução é cósmica, cíclica e solar como a roda do ano.

Dia 1 [Maio de 2009]

Javier Ortiz
Mais um que se foi. Quando as circunstâncias me trouxeram a esta ilha africana para nela viver em alternância com largas temporadas em Lisboa, não demorei muito a conhecer, por intermédio de Pilar, alguns jornalistas que me impressionaram por o serem de um modo bastante diferente daquele ou daqueles a que me havia habituado no meu país. Foram eles Manuel Vincent, Raul del Pozo, Juan José Millás e Javier Ortiz. Alta qualidade literária, rara argúcia de espírito, sentido de humor em altíssimo grau, eis o que os caracterizava e ainda caracteriza a todos, excepto Javier Ortiz, que acaba de morrer. Dos quatro, Javier sempre foi o mais politicamente activo. Homem de esquerda que nunca ocultou ou suavizou as suas ideias, cometeu o prodígio de manter a mais firme das posturas ideológicas quando, sendo ainda jornalista de El Mundo, foi o único a contrariar, sem qualquer concessão oportunista, a deriva direitista de um jornal que o seu director, Pedro J. Ramírez, havia feito cair nos amorosos braços de José Maria Aznar. Agora morreu, não terá mais resposta a pergunta que regularmente fazíamos: «Que terá dito Javier Ortiz?».
As nossas relações tiveram um momento particular afortunado quando lhe dei uma entrevista que viria a ser publicada, também com textos de Noam Chomsky, James Petras, Edward W. Said, Alberto Piris e Antoni Segura, num livro por ele editado, Palestina existe! (Editorial Foca). Recém-chegado eu de Israel, onde havia deixado um rasto de escândalo político e tendo de partir para os Estados Unidos, onde iria apresentar um livro e dar algumas conferências, a nossa entrevista foi, toda ela, feita por e-mail, sobrevoando o Atlântico e o continente norte-americano, de costa a costa. Conheci então melhor Javier Ortiz, a sua inteligência, o brilho da sua dialéctica, e, o melhor de tudo, a sua qualidade humana. Muitos não sabem que Javier escreveu o seu obituário, um texto supremamente irónico e desmitificador, digno de ser publicado em todos os jornais. É pena que não se faça. Seria o momento de lhe dedicarmos um último sorriso, este que tenho na cara e que, de alguma maneira, está negando a sua morte.
OBITUARIO
Javier Ortiz, columnista [1]
Falleció ayer de parada cardio-respiratoria el escritor y periodista Javier Ortiz. Es algo que él mismo, autor de estas líneas, sabía muy bien que sucedería, y que por eso pudo pronosticar, porque no hay nada más inevitable que morir de parada cardio-respiratoria. Si sigues respirando y el corazón te late, no te dan por muerto.
Así que en ésas estamos (bueno, él ya no). Javier Ortiz fue el sexto hijo de una maestra de Irún, María Estévez Sáez, y de un gestor administrativo madrileño, José María Ortiz Crouselles. Sus abuelos fueron, respectivamente, un señor de Granada con aspecto de policía – lo que tal vez se justifique considerando el hecho de que era policía –, una señora muy agradable y culta con allure y apellido del Rosellón, un honrado y discreto carabinero orensano con habilidades de pendolista y una viuda de Haro casada en segundas nupcias con el recién mencionado, Javier Estévez Cartelle, del que se derivó el nombre de pila de nuestro recién difunto. Si algún interés tienen todos estos antecedentes, cosa que dista de estar clara, es el de demostrar que, en contra de lo que suele pretenderse, el cruce de razas no mejora el producto. (Obsérvese qué gran variedad de procedencias se puso en juego para acabar fabricando a un vasco calvo y bajito.)
La infancia de Javier Ortiz transcurrió en San Sebastián, ciudad que le venía muy a mano, porque nació allí. Se dedicó básicamente a mirar lo que había por sus cercanías, en particular el pecho de las señoras – ahora que ya está muerto podemos descubrir ese inocente secreto suyo –, y a estudiar cosas tan peregrinas como las ciudades costeras del Perú, de las que no logró olvidarse hasta su postrer respiro. Los jesuitas trataron de encauzarlo por el buen camino, pero él descubrió muy pronto que era comunista. Eso malogró del todo su carrera religiosa, ya de por sí poco prometedora, sobre todo desde que notó con desagrado el interés que algunos sacerdotes ponían en sus partes pudendas.
Su primer trabajo como escribidor, aparecido en una página del periódico del colegio, fue, curiosamente, una necrológica, con lo que cabría decir que su carrera como periodista ha resultado capicúa, singular circunstancia de la que muy pocos podrían presumir, aún en el improbable caso de que lo pretendieran.
A los 15 años, hastiado de las injusticias humanas – algunas de las cuales seguían teniendo como referencia obsesiva los pechos femininos –, decidió hacerse marxista-leninista. Los años siguientes tuvo que emplearlos en averiguar qué era eso que acababa de hacerse, a lo que contribuyeron decisivamente algunos esforzados miembros de la Policía política franquista.
A partir de lo cual, se dedicó con gran entusiasmo a cultivar el noble género del panfleto. Sin parar. A diario. Año tras año. Fue cambiando de punto de residencia, no siempre por voluntad propia – ahí merecen especial mención sus estancias carcelarias y su exilio, primero en Burdeos, luego en París –, pero jamás varió su inquebrantable afán de agitador político, que él pretendía haber adquirido, por absurdo que parezca – y sea, de hecho –, en la lectura de Los documentos póstumos del Club Pickwick, de don Carlos Dickens, y de las Aventuras, inventos y mixtificaciones de Silvestre Padarox, de don Pío Baroja.
Burdeos, París, Barcelona, Madrid, Bilbao, Aigües, Santander... Recorrió incontables sitios y holló innúmeros parajes sin parar de escribir, erre que erre. Zutik!, Servir al Pueblo, Saida, Liberación – y Mar, y Mediterranean Magazine – y El Mundo, y una docena de libros, y varias radios, y algunas televisiones... Por escribir, incluso escribió para otros y otras, ejerciendo de negro en momentos de particular penuria. También lo hizo a veces por amistad.
Movido por la lectura del Selecciones de Reader's Digest y otras publicaciones estadounidenses tan aficionadas a ese género de operaciones, un día decidió calcular cuántos kilómetros cubrirían sus escritos, en el caso de colocarlos todos en una sola larguísima línea de cuerpo 12. El resultado de la estimación fue concluyente: ocuparían la tira.
En materia de amores (de la que sería injusto decir que careciera de alguna experiencia), también fue capicúa. Decía que las mejores mujeres, las más cariñosas y las más nobles con las que compartió sus días (sin desdeñar dogmáticamente a ninguna otra), le resultaron la primera y la última. Aunque la favorita le apareciera por medio: su hija Ane.
Y todo para acabar con algo tan vulgar como la muerte. Por parada cardio-respiratoria, como queda dicho. En fin, otro puesto de trabajo disponible. Algo es algo.
José Saramago, O CADERNO


[1] Javier Ortiz, escritor y columnista, nació en Donostia-San Sebastián el 24 de enero de 1948 y murió ayer en Aigües (Alicante), tras dejar escrito el presente obituario.