quinta-feira, 23 de maio de 2013

23 – Maio (quarta). [1990]

Ontem fui à inauguração da nova sede da Sociedade Portuguesa de Autores. Tinham insistido comigo, fui. A consagração do edifício não meteu cardeal a benzer as paredes com o hissope, mas meteu o presidente da República, que é no caso um cardeal laico. E esta foi a grande razão de eu lá ir. Chumbada imensa. Trago as pernas em saldo e aquilo implicável no fazer de estátua muitas horas, que foi suplício em que me não treinei no salazarismo. Primeiro houve que esperar a chegada do presidente e aguentar em cumprimentos circunstanciais a conhecidos e desconhecidos com apertos de mão e aperta-azeite. Depois foi a deslocação de toda a massa para a sala, atrás do presidente, que fora abrindo o seu sulco de bacalhoadas e abraços (eu tive um). Depois foi a sessão. Eu não queria ausentar-me antes do discurso presidencial, confiado em que tínhamos feito um curso de retórica com a rolha fascista. Qual quê. Havia cadeiras para senhoras e outras notabilidades, eu e o resto da plebe estivemos de plantão cá para o fundo. E aí aguentei a pé toda a viagem da oratória que lá da mesa nos infligiam. Houve um discurso curioso – naquilo que entendi – do jovem autor de letras João de Melo. Leio às vezes textos dele no «JL». Tem caco. Já o romance premiado é uma boa penitência feita das sobras (ainda!) do neo-realismo. E de vez em quando, na leitura, tinha de me sentar porque era penitência a mais. E ainda não concluí assim a tarefa. Lembro-me de que uma vez que me sentei a descansar, foi quando um filho (?), a propósito de o pai se queixar de tantos filhos, lhe disse assim com toda a educação:  
– Não fodesse tanto.
Isto, além do mais é insensato. Porque se o pai tinha, suponhamos, 10 filhos, só precisava de fornicar 10 vezes, ou menos, se houvesse gémeos. O que para uma vida é quase abstinência.
E quando regressava a casa havia como de costume um pedinte no metro. São normalmente cegos que lamuriam a sua desgraça por boca própria ou de intérprete ajudante, mas que nas paragens se mudam de carruagem com uma incrível rapidez para irem continuando a comover profissionalmente as almas mais sensíveis. Mas desta vez era um jovem, que trabalhava por conta própria, sem sócio na comoção profissional. E não era cego. O que lhe caracterizava as possibilidades de comover era um corpo desenculatrado nos movimentos, com as pernas, os braços, tronco e cabeça trabalhando cada um para seu lado. E feito o número do desengonço, não dizia nada e apenas estendia a mão. Eu conheço de já ter visto outros jovens com os movimentos desencontrados talvez de moléstias infantis, talvez de doença de Parkinson. Mas não sei porquê, nestes tempos de vigarice desenfreada e cheia de génio inventivo, admiti que aquele jovem talvez vivesse de nos aldrabar. Tive problemas de consciência à ideia de ser esmoler. E guardei as coroas. Mas de todo o modo, fosse ou não o jovem um hábil imitador da desgraça alheia, cobrou o seu «cachet» da exibição e alastrou de bem-estar a consciência das almas pias. E todos ficaram contentes. E todos ganharam o seu direito a um recanto no paraíso.

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