sábado, 25 de maio de 2013

Moçâmedes, 25 de Maio de 1973 - Miguel Torga

       Moçâmedes, 25 de Maio de 1973 – O deserto abordado. A terra a transformar-se progressivamente em negativo. O reino mineral degradado, e o vegetal e o animal ainda a teimarem, a reduzirem as exigências, espalmados numa folha coriácea, aguçados num pico, endurecidos num casco. Espectros de erosão, monstruosidades fisiológicas, miragens alucinantes. Rochas que parecem fantasmas, plantas que parecem bichos, bichos que parecem plantas, carcaças, rastros, silêncio. Um silêncio de horizontes abertos, infinito, onde o sofrimento se cala, a agressividade se oculta, a voz não tem eco. Meia dúzia de horas de deslumbramento consentido e terror recalcado, o instinto a sentir-se em pânico diante de uma realidade que contactava pela primeira vez, sem reflexos para semelhante imensidão, para semelhante esterilidade, para semelhante absurdo, e a razão humilhada por lhe não poder acudir com nenhuma das mezinhas habituais. Por não ser capaz de instituir uma lei, uma regra, uma medida, num mundo raso, desmedido, sem horas, sem dias, sem estações, sempre igual no espaço e no tempo, imagem física da eternidade morta. 

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