Moçâmedes, 25 de Maio
de 1973 – O deserto abordado. A terra a transformar-se progressivamente
em negativo. O reino mineral degradado, e o vegetal e o animal ainda a
teimarem, a reduzirem as exigências, espalmados numa folha coriácea, aguçados
num pico, endurecidos num casco. Espectros de erosão, monstruosidades
fisiológicas, miragens alucinantes. Rochas que parecem fantasmas, plantas que
parecem bichos, bichos que parecem plantas, carcaças, rastros, silêncio. Um
silêncio de horizontes abertos, infinito, onde o sofrimento se cala, a agressividade
se oculta, a voz não tem eco. Meia dúzia de horas de deslumbramento consentido
e terror recalcado, o instinto a sentir-se em pânico diante de uma realidade
que contactava pela primeira vez, sem reflexos para semelhante imensidão, para
semelhante esterilidade, para semelhante absurdo, e a razão humilhada por lhe
não poder acudir com nenhuma das mezinhas habituais. Por não ser capaz de
instituir uma lei, uma regra, uma medida, num mundo raso, desmedido, sem horas,
sem dias, sem estações, sempre igual no espaço e no tempo, imagem física da
eternidade morta.
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