domingo, 12 de maio de 2013

Coimbra, 12 de Maio de 1974


Um Domingo triste a ler papéis velhos, a ver se arranjava coragem para os rasgar. A ganga que um poeta deixa pelo caminho! Por cada expressão feliz, quanta ingenuidade, quanta burrice, quanta gaguez! A obra publicada também tem disso tudo, mas é beneficiada pela luz das montras. Adquire não sei que estatuto só pelo facto de se mostrar. Os refugos que abarrotam as gavetas, porém, como que concentram os defeitos na própria reclusão. Mais: a maldição do nascimento parece envenenar-lhes todo o futuro. Mesmo se a vontade tenta reabilitá-los, o anátema inicial trava os passos à imaginação recriadora. E o mais trágico é que há em cada autor uma ternura quase doentia por esses borrões teratológicos, que nem consegue insuflar de uma nova vida, nem atirar à fogueira do esquecimento. Poucos se furtam à fraqueza de os legar a uma posteridade gulosa que, piamente, os junta aos textos acabados, numa devoção beata que venera tudo quanto o santo tocou.
Segue-se que também eu fraquejei hoje mais uma vez diante do estendal das minhas inépcias. Talvez porque elas gritassem a pedir existência e me faltasse o ânimo para as estrangular; talvez na esperança, protelada para além do razoável, de as melhorar; talvez a contar, no íntimo dos íntimos, que terei tempo de as destruir antes da morte; ou talvez, mais verosimilmente, por serem o único suporte sensível de algumas horas gratas mas nunca cristalizadas…

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