Um Domingo triste a ler papéis velhos, a ver se arranjava coragem para os
rasgar. A ganga que um poeta deixa pelo caminho! Por cada expressão feliz,
quanta ingenuidade, quanta burrice, quanta gaguez! A obra publicada também tem
disso tudo, mas é beneficiada pela luz das montras. Adquire não sei que
estatuto só pelo facto de se mostrar. Os refugos que abarrotam as gavetas,
porém, como que concentram os defeitos na própria reclusão. Mais: a maldição do
nascimento parece envenenar-lhes todo o futuro. Mesmo se a vontade tenta
reabilitá-los, o anátema inicial trava os passos à imaginação recriadora. E o
mais trágico é que há em cada autor uma ternura quase doentia por esses borrões
teratológicos, que nem consegue insuflar de uma nova vida, nem atirar à
fogueira do esquecimento. Poucos se furtam à fraqueza de os legar a uma
posteridade gulosa que, piamente, os junta aos textos acabados, numa devoção
beata que venera tudo quanto o santo tocou.
Segue-se que também eu fraquejei hoje mais uma vez diante do estendal das
minhas inépcias. Talvez porque elas gritassem a pedir existência e me faltasse
o ânimo para as estrangular; talvez na esperança, protelada para além do
razoável, de as melhorar; talvez a contar, no íntimo dos íntimos, que terei
tempo de as destruir antes da morte; ou talvez, mais verosimilmente, por serem
o único suporte sensível de algumas horas gratas mas nunca cristalizadas…
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