quinta-feira, 31 de março de 2011

Pereira-brava (Pyrus bourgaeana Decne)

Eu Simplesmente Amo-te

Eu amo-te sem saber como, ou quando, ou a partir de onde. Eu simplesmente amo-te, sem problemas ou orgulho: eu amo-te desta maneira porque não conheço qualquer outra forma de amar sem ser esta, onde não existe eu ou tu, tão intimamente que a tua mão sobre o meu peito é a minha mão, tão intimamente que quando adormeço os teus olhos fecham-se. 

Pablo Neruda, in "Cem Sonetos de Amor"

José Rodrigues Miguéis / José Saramago (1959-09-27)

4
319 East 17th St
New York 3, NY

Domingo, 27 de Set. de 59

Meu caro Saramago:

As vossas notícias, os cheques, contrato, algarismos, - tudo foi calorosamente acolhido (carta de 16, rec. a 18). Escrevo-lhe hoje à pressa para não atrasar mais a devolução e os agradecimentos. Adiante serei mais prolixo! – Agradeço muito ao Sr. Canhão a bondade dos números de venda (até Julho, inel.): a minha vaidade de tímido inchou! 622 vols por mês, 2490 ao todo (sem contar a Aventura) é para a gente se benzer. Nada me poderia tornar mais feliz. Vejo que até o Homem Sorri vai saindo como uma novela: por este andar não tarda que tenhamos de pensar na segunda ed., mas comum. Não vale a pena esperar que eu tenha outros materiais do género para lhe juntar, como pensava o Nataniel, porque se vê que é um livro por si, pode viver e andar sozinho… Do que NÃO me diz depreendo que a Noite amanhecerá um pouco mais tarde… Estou ansioso por vê-la. Mas creio que não convém submergir os leitores nem irritar os ânimos sensíveis… Este Miguéis está desencadeado! (Acabo de mandar um longo artigo, rábido, para o número do 5 de Out. da República: duvido que saia, mesmo cortado. Não deixe de o ver! Para o D. de Lxa mandei há semanas uma imaginária «Introdução» à Aventura que aqui vim encontrar entre velhos papéis. Não sei se a publicaram.)
Conheço há muitos anos o chefe da Noonday Press, Hemley: é uma casa de vanguarda (paperbacks) de recursos limitados, mas séria. Tem lançado Eças, vários Machados de Assis, modernos, etc. Quando as coisas estiverem mais maduras irei tratar com ele, e então lhes darei informação. Preciso saber qual o pagamento simbólico que a COR reclama! (dos meus direitos de autor). Da Escola do Paraíso já refiz mais de 100 folhas, e tenho-a melhorado muito. E, porque o tinha prometido ao Agostinho Fernandes, da Portugália, traduzi todo o Grande Gatsby, e estou a revê-lo! Trabalho muito? Não há mais que fazer, não há Conversa!…
Como vê, nada alterei no contrato. Quanto aos pagamentos, preferia que adquirissem cheques em dólares – se não é mais trabalho: o limite, por pessoa e por dia, é de cem dólares: seriam dois cheques, um de cem, outro da fracção restante. Os cheques-escudos obrigam-me a várias démarches em bancos distantes – os de dólares troco-os aqui na vizinhança. Mas isto, só se não lhes criar complicações.
Estou certo de que a sua revisão da Noite é primorosa! Reparo agora que não cheguei a ler a Carta final.
Desculpe o tom corrido – o exílio obriga-me a escrever dezenas de cartas, o que me arrasa. Para não se lhe tomar pesado escrever-me (não falo das «cartas oficiais») basta anotar em dois rabiscos o que for tendo a dizer-me, e depois mete tudo num envelope; duas fls leves custam 4$50, creio. Não quero roubar-lhe um tempo precioso.
Como há aqui pessoas interessadas em histórias para televisão, ou trad., etc., tenho que lhes pedir em breve que me mandem alguns exemplares dos meus livros, para ofertas. E professores, etc.
Se o Coração Solitário continua a sair mal, creio que já o lembrei ao nosso amigo Correia: talvez valesse a pena fazer uma cinta: Tradução de JRM – prémio CCB, etc.
Abraços plurais para todos, com os melhores votos e os agradecimentos do

Miguéis 

“Tablóides” – Março de 1976

• Dizia Raul Brandão que os seus livros, uma vez publicados, eram como filhos atirados ao mundo. Ao invés dele, e de tantos escritores (que talvez não sejam sinceros!), eu releio os meus livros com olho crítico, para os (e me) corrigir… e até para aprender! – pois me espanta às vezes a criatividade de outros tempos, se a comparo à minha relativa improdutividade actual. E até me deixo comover e arrebatar por eles, como qualquer leitor. Fui eu realmente quem escreveu isto? Mas de há tempos para cá gela-me uma atroz repugnância por tanto que escrevi com entusiasmo e amor!
• No seu livro Confrontation avec la Poussière (Gallimard, 1970, p. 32) diz Marcel Jouhandeau:
«Esta manhã, ao descer a escada, em escada, encontrei a nossa doméstica, que vinha entrando. Disse-lhe:
– Maria, acho que vou morrer. Tenho frio e não consigo aquecer!
Então, abrindo os braços em cruz, ela avançou para mim e, pousando a cabeça no meu ombro, disse:
– Não, monsieur! Não me dê esse desgosto! Vou-lhe preparar um bom café, e o senhor vai recobrar vida, fogo e chama (vie, feu et flamme).
É destes testemunhos que eu gosto, sobretudo quando vindos de pessoas indomáveis (indomptables) como esta portuguesa.»
Já não é a primeira nem será a última vez que M. J. se refere nos seus livros a esta sua empregada portuguesa com admiração e carinho. Assim civilizados e sensíveis vêem os bons portugueses de modesta condição, que lá fora vão ganhar o pão e o respeito humano. Saberemos nós acolhê-los assim também, quando eles retomam?
José Rodrigues Miguéis

Os Cordoeiros: Quarta-feira, Março 31 [2004]

Intolerância

Em 31 de Março de 1492, Fernando e Isabel de Espanha assinaram o édito que determinou a expulsão dos Judeus que não se convertessem ao Cristianismo.

AS NOSSAS PEDRAS

Constato que a minha pequena picardia sobre o MP e os Interesses Difusos foi parar ao espaço cibernético... era bom que servisse, ao menos, para acordar os nossos maiores. Mas não criemos demasiadas expectativas: esses, sempre atentos ao fervilhar de novas ideias, da evolução da realidade e consequentes necessidades (re)organizativas do MP para a ela dar reposta, certamente estão demasiado ocupados para blogar...
É pena, pois a sua intervenção, mormente na criação de estruturas de coordenação e apoio (informativo e técnico) é contributo fundamental, há muito devido, para incentivar e viabilizar o exercício das competências do MP no âmbito da defesa dos interesses difusos. Mais ainda, agora, que o novo ETAF alargou o âmbito de intervenção do MP nessa área... aliás, parece-me caso para dizer: competências há muitas!
Um pequeno exemplo:
- suponhamos que o magistrado do MP X, no tribunal Y, leva o seu trabalho a sério e é suficientemente voluntarioso e desacomodado para, no exercício das suas competências funcionais e, por exemplo, com base numa notícia de jornal, tomar a iniciativa de instaurar um processo administrativo com vista ao apuramento da verificação de violações a interesses difusos, designadamente na área do património cultural ou do urbanismo;
- de quantos pareceres técnicos precisará para concluir a investigação e recolher prova (também testemunhal)? Vai solicitá-los a quem? A organismos dependentes da administração pública? Não parece que vão ser muito diligentes na prestação de colaboração, quando se perspectivar, desde logo, eventual propositura de acção contra entidade pública, nos termos do ETAF... ;
- acresce que, mesmo que essa colaboração fosse dada (o que se afigura mais plausível em sede de acção a propor contra particulares nos tribunais comuns), é sabido que os organismos públicos não primam pela celeridade de resposta... ora, em muitos casos, este tipo de situações requer, para uma intervenção eficaz, que esta seja rápida (v. g. através da instauração de providência cautelar).
- vai o MP pedir esses pareceres a entidades particulares? Quem pagaria os custos?
Vias para ultrapassar este verdadeiro bloqueio foram sugeridas num, aliás excelente, texto sobre A Reforma do Contencioso Administrativo, publicado no nº 161 do Boletim Informativo do SMMP, disponível em http://www.smmp.pt/online/boletins/bol161_2003.pdf (págs. 8-10, concretamente págs. 9-10, Ponto IV, Assessoria Técnica).
Nos entretantos, enquanto a sugestão de criação de uma Assessoria Técnica não passa disso mesmo, quid juris? Quiçá encontrar formas mais ou menos casuísticas de colaboração com as ordens profissionais e com as associações cívicas? Quanto mais voluntarismo será exigível aos magistrados do MP???
Ou poderia o SMMP, na ausência de resposta realmente institucional por banda de quem de direito, criar protocolos com essas entidades?
Bem, para lançar mais achas para a fogueira parece-me que, por ora, basta...
Quanto à solicitação do Causidicus ("sou dos acreditam na importância de intervenções do MP em defesa do património cultural e gostaria muito de conhecer melhor o que tem sido feito"): apesar de tudo algo de positivo sempre haveria a informar, embora não exactamente no que respeita às "nossas pedras" (mas sim um pouquinho na defesa do ambiente, da saúde pública e mais na defesa do consumidor).
Foi o que constatei ao colaborar na organização de uma acção de formação para procuradores-adjuntos sobre "O MP na Promoção dos Interesses Difusos na vertente cível", que teve lugar, nos dias 22 e 23 de Fevereiro, na Figueira da Foz e ao organizar eu própria uma outra, sobre o mesmo tema e destinada a procuradores-adjuntos, estagiários e auditores de justiça, cuja apresentação foi efectuada ontem, dia 29 de Março, no Museu da Água, em Lisboa - uma vez que essa organização implicou um levantamento sobre quais os processos administrativos e acções instauradas pelo MP, neste âmbito, a partir de 94 - 94 ex vi da Circular da PGR nº 3/94 que, infelizmente, como também constatei por aquela via, muitas vezes não é cumprida!

Liliana Palhinha
# posto por Rato da Costa @ 31.3.04

quarta-feira, 30 de março de 2011

Guincho-comum (Chroicocephalus ridibundus)

“Tablóides” – 30 de Março de 1976

• A simplicidade de estilo é hoje uma das coisas mais complicadas e mais difíceis de encontrar no mundo das letras.
J. R. Miguéis

O LAROUCO

A melhor vista do Larouco é a que se desfruta de Peireses.
Silhueta de serena beleza.
Habituei-me a ela desde criança.
Desde que, com quatro ou cinco anos, ia tornar a água a Ferreiras e parava na Pedra da Sesta a ouvir as cotovias e a olhar para o Larouco.
Literalmente fascinado. De joelhos ante a divindade. Que eu nem sabia qual fosse. Mas o altar ali estava.
Aéreo e divino. Coisa sagrada.
Dizem veneráveis pergaminhos que os Romanos o dedicaram a Júpiter, deus do Olimpo e dos trovões.
Para mim, porém, a beleza foi sempre atributo feminino.
Preferia que o tivessem dedicado a Diana, deusa da Caça e do Pudor.
De Júpiter, de Diana ou de qualquer outra divindade, o que importa saber é que os altares se não devem profanar. São coisas sagradas. Intocáveis. Eternas.
Saibam isto os sacrílegos adoradores do Bezerro de Oiro que, a troco duns cobres, pretendem profanar a olímpica silhueta do Larouco.
Estou indignado.
Tanto, que me atrevo a pedir a Júpiter, deus dos Trovões, que os confunda.
Que, à medida que forem levantadas as execrandas torres eólicas, venha um raio e as derreta.

Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS – Crónicas de Barroso (p. 39)

1922 - Primeira travessia aéra do Atlântico Sul


A 30 de Março de 1922, Gago Coutinho e Sacadura Cabral partem, de Lisboa, a bordo do hidrovião Lustânia, tendo por destino o Rio de Janeiro. Dão, assim, início à primeira travessia aérea do Atântico Sul.

Os Cordoeiros: Terça-feira, Março 30 [2004]

OS CUSTOS DA (IN) DEFESA OFICIOSA

O Dr. António Marinho, na crónica semanal que assegura no Expresso, relata na última edição deste semanário um caso a todos os títulos exemplares sobre o que não deve fazer qualquer profissional forense, isto é, afrontar flagrantemente a lei legitimamente aprovada pelos órgãos legislativos constitucionalmente mandatados.
Aparte outras considerações sobre a independência dos advogados que aqui não pretendo para já comentar, refere também a dado passo que «os defensores oficiosos são remunerados pelo Estado com verbas verdadeiramente irrisórias que ofendem a dignidade da advocacia», acabando por aceitar que as verbas gastas com o regime de apoio judiciário constituem, em muitos casos, a única remuneração auferida pelos advogados estagiários, que, implicitamente, reconhece serem os verdadeiros garantes de tal apoio e da defesa oficiosa.
A questão, portanto, deve deslocar-se para a sua sede própria, ou seja, a da defesa oficiosa, verdadeira defesa e de qualidade, tal como exigem a CRP e a Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Será que aquele regime de defesa oficiosa, garantido essencialmente por advogados estagiários, desacompanhados de qualquer apoio da respectiva Ordem e com o fito quase exclusivo de permitir a artificial sobrevivência dos milhares de candidatos à advocacia, é compatível com as exigências do inalienável direito de defesa consagrado naqueles instrumentos normativos e com a proclamada independência do exercício profissional de tão nobre e indispensável actividade como é a da advocacia em qualquer Estado de Direito Democrático?
Parece que não e disso tem dado nota o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, que já condenou o Estado português por violação daquele direito e que nalgumas queixas apresentadas contra Portugal considerou ter ocorrido violação do princípio da proibição da indefesa no processo penal, não obstante ter sido nomeado advogado como defensor oficioso e só porque as instâncias judiciárias não convidaram o defensor nomeado a corrigir ou emendar o processado, inacção que redundou em prejuízo do arguido (cfr. António Henriques Gaspar, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 13, n.º 2, 2003, pp. 261).
E será que a República está em condições de assumir gastos astronómicos com o apoio judiciário em geral e com a defesa oficiosa em particular, com vista a garantir a observância daquele sagrado direito fundamental, para depois ser condenada pela sua violação. É racional e verdadeiro o sistema em vigor, ou tudo não passa de um simulacro de defesa, cujo primeiro objectivo é, afinal, o de atribuir aos candidatos a profissionais independentes uma espécie de bolsa de ar, com muitos euros a voar, até que decidam enveredar por outra actividade, sempre em prejuízo ou com indiferença pelo destino e qualidade da defesa dos interesses dos patrocinados, muito embora se saiba que muitos são os estagiários que dão de si o melhor que têm e sabem para exercerem uma verdadeira defesa.
Parece que também não, como demonstra um levantamento não exaustivo realizado pela PGD de Lisboa, em cuja conclusão pode ler-se. «No ano de 2003, no Distrito Judicial de Lisboa, com exclusão do Tribunal da Relação, o Estado pagou, pelo patrocínio oficioso 9.105.392,81 euros, não tendo liquidado, por falta de cabimento orçamental 301.932,02 euros; no mesmo período despendeu em transcrições de prova gravada em audiências de julgamento 454.152,14 euros, ficando por pagar, por falta de cabimento orçamental 11.624,26 euros».
Elucidativo e irracional, não é? Multipliquem por três, ainda que dando o natural desconto para a diferença de dimensão dos restantes distritos judiciais (Porto, Coimbra e Évora) e terão uma ideia aproximada do desperdício de dinheiros públicos, face aos resultados conseguidos.
O que se espera, sinceramente, é que o anunciado Instituto de Apoio Judiciário, agora finalmente sob a égide exclusiva da Ordem dos Advogados, seja mais do que uma nova experiência e do que um modo diferente de garantir uma espécie de subsídio de desemprego para os candidatos à advocacia, e definitivamente permita cumprir os desígnios constitucionais e do direito internacional em matéria de efectiva e universal defesa de todos quantos tenham de enfrentar o poder punitivo do nosso Estado.
J. Rato
# posto por Rato da Costa @ 30.3.04

Voto e negro

Foi a partir de 30 de Março de 1870, pela 15ª Emenda à Constituição, que os homens negros dos EUA passaram a ter direito ao voto.

Pena de morte

Contra a pena de morte na Nigéria. Indigne-se: aqui.

Formação

Vários acontecimentos recentes se transformaram num irresistível apelo a que blogasse sobre uma questão de crucial importância, já outras vezes aqui ventilada, ainda que apenas implicitamente, e que de alguma forma interfere também com a da legitimidade do poder judicial.
Falo, claro está, da formação de magistrados.
Creio ser do domínio público que o recém laureado "prémio Pessoa", reflectindo sobre o tema, propôs como novidade aplaudida de muitos quadrantes a criação de um "tribunal universitário", um pouco à imagem do que se passa com os hospitais universitários, como modelo capaz de responder às exigências postas pela "declaração de Bolonha".
Avizinha-se, por outro lado, a realização de mais um concurso com vista à selecção e recrutamento de não sei quantos novos magistrados.
Por fim, está constituída e em pleno funcionamento uma comissão nomeada pelo Governo encarregada, precisamente, de apresentar uma proposta de nova Lei Orgânica do CEJ, sobre cujo trabalho as diversas corporações lançam já um olhar desconfiado.
É, portanto, o momento decisivo para todos estarmos atentos e pugnar pela discussão ampla e séria do que mais importa nesta matéria, deixando de lado velhas querelas corporativas e a irresistível tentação de cada um ver no seu modelo a melhor solução, quando na verdade o problema não radica em modelos mas antes noutras questões compatíveis com quase todos os modelos imagináveis, dentro das disponibilidades financeiras da República.
Claro que os modelos também são importantes, nomeadamente para garantir a equidistância da formação relativamente aos órgãos superiores de gestão das magistraturas e ao Governo, definir critérios de selecção e recrutamento, formação separada e ou conjunta, mesmo com outras profissões forenses, requsitos de admissão, etc.
Mas, indubitavelmente, o mais importante será definir à partida que magistrados queremos: pessoas artificialmente eruditas, propensas a rivalizar com os académicos e distanciadas do caso concreto e da sua resolução rápida e equilibrada, com recurso pragmático e sensato às leis e ao direito, a começar pelo de índole constitucional, ou como dizia Laborinho Lúcio, "gente simples para uma profissão exigente", de quem se espera, como também dizia Armando Leandro, "humildade activa" no desempenho profissional, podendo nem sequer ser licenciada em direito?
Definido, sem medo da palavra, o perfil de magistrado ou de magistrados que se ambiciona, quanto mais não seja por apelo às funcões que se pensa atribuir-lhe, e os objectivos pretendidos para cada um dos momentos formativos, importa depois, acima de tudo, acertar conteúdos de formação, inicial e contínua, respectivas metodologias de ensino, aprendizagem e corpo de formadores sobre quem vai recair essa magna tarefa, começando por ministrar-lhes a formação adequada.
Se assim se fizer e decididamente se investir em tal objectivo (é bom lembrar que actualmente o CEJ consome a quase totalidade do respectivo orçamento com a folha de salários a seu cargo), talvez consigamos, de uma vez por todas, legitimar logo na base a intervenção do poder judicial, sempre com a noção de que não há sistemas perfeitos e de que a selecção e recrutamento se não esgotam na fase inicial da formação, antes reclamando permanentes e actuantes instrumentos de fiscalização e avaliação do desempenho profissional, expurgando o sistema daqueles que em contexto laboral revelem qualquer tipo de incapacidade incompatível com o exercício de uma pequena parcela de poder, ainda que mais aparente do que real.
A ver vamos.
J. Rato

terça-feira, 29 de março de 2011

Imagem do dia

 Terre cuite pleureuse Louvre E27247 .jpg
Escultura de terracota em exposição no Museu do Louvre.

Corvo ou Corvo-comum (Corvus corax L.)

José Rodrigues Miguéis / José Saramago (1959-09-26)

3
Lisboa, 26 de Setembro de 1959

Querido Amigo,

A barca da Noite vai ser lançada ao mar por estes dias. A impressão está no fim, a capa pronta, a «nossa» capa com a «sua» anamita… Cada folha do livro que me passa pelas mãos é um suor frio: estou sempre à espera duma daquelas gralhas sorrateiras, gralhas de pezinhos de lã, que só picam quando já estamos irremediavelmente manietados. Uma apanhei eu à última hora. Veja só: nas 3.as provas repeti uma emenda que já tinha feito nas anteriores, sem que o compositor se impressionasse com a insistência. Entregues as provas, dizem-me de lá: nós fazemos as emendas que ainda apareceram, fique o senhor descansado que não há-de haver novidade, etc, etc. Não há-de haver!... Pois não, que não havia!... Eu tinha concordado, mas às tantas dá-me o coração um baque: puxo do telefone e digo: não senhor, quero provas de todas as páginas com emendas! Que talvez não valesse a pena, que a máquina estava parada, à espera. Esse argumento da máquina parada, que sempre me comove, deixou-me insensível. Insisti. Vêm as provas, contrariadas. E lá estava a Gralha! Imagine que a pobre Julieta da Mancha, ao cair do chão com o faniquito, não tinha o telegrama amarrotado nos dedos, não senhor! Eram os cabelos da pobre que se crispavam no malfadado papel! O compositor, ao fazer a emenda terceiramente apontada, não esteve com mais aquelas: trocou dedos por cabelos – e aí estava eu desacreditado como revisor, e sem culpa!
Este fait-divers, que só lhe conto para o fazer intervir um pouco na «fazedura» do seu livro (parece que condenado a ser feito sempre fora das vistas do autor), talvez devesse ir no fim, porque, principalmente, o motivo desta carta é o de anunciar-lhe que seguem, por avião, umas tantas primeiras folhas para assinatura. Em breve irão os volumes que pediu para as ofertas pessoais, esses por via marítima como ficou combinado.
Espero que tenha recebido a minha carta anterior: lá ia o contrato, e também dois cheques que somavam três contos.
Por cá, tudo bem. O Canhão foi gastar os réditos editoriais em orgias bordelesas e parisienses. O Correia prepara-se para o imitar. Só eu, pobre proletário das letras, a sonhar com obras impossíveis, aqui continuo agrilhoado, invejoso e dispéptico, com ferocidades de niilista e gostos de burguês – que é assim que entendo dever ser traduzido o ange et bête do Pascal.
O Nataniel promete cá vir na primeira quinzena de Outubro. Pena que o meu querido Amigo cá não esteja: fazia-se um bate-papo consolador.
E termino de estalo, corno diria o Camilo. Cumprimentos para sua Esposa e sua Filha. Um abraço do muito amigo e muito admirador

Saramago 

Vergílio Ferreira (29 de Março de 1989)

29 – Março (quarta). Precisava tanto de escrever, escrever. Desfazer-me em escrita. Criar o meu espaço habitacional. Existir em escrita. Mas a minha cabeça e o descalabro dos meus nervos e o insuportável mal-estar e o cansaço interior que é cansaço de estar e não de ficar, tudo isso me aniquila e faz de mim um farrapo. As minhas obrigações, que se estão nas tintas para o meu estado físico e psíquico, acrescentam-me a incomodidade com incidência na consciência. E então, porque sou um subdesenvolvido moral, dou-lhes o despacho que posso. Hoje escrevi uma carta ao Luís Mourão que está fazendo uma tese de mestrado sobre o meu diário, porque nas inovações rasgadas com que quis dar ar ao bolor da tradição académica, lembrou-se de incluir cartas dele para mim e E. P. Coelho e de nós para ele. O Prado Coelho, lançado agora na grande roda cultural de Paris, não sei se terá tempo para corresponder ao rasgo de um Professor de Braga. Devia ter. O Professor de Braga tem a marca de um grande ensaísta, como toda a gente o saberá daqui a uns dez anos. E como eu o não poderei saber então, vou-o sabendo agora. E é tudo.
*
Lancei uma «reflexão» no livro das ditas. Desenvolvi o Capítulo XI do romance. Curiosa e intimidante coisa: este romance está a querer deitar um «físico» que não é de (interrompido).

conta-corrente - nova série I (1989), p. 58

Os Cordoeiros: Segunda-feira, Março 29 [2004]

ULTIMATUM À OPRESSÃO

A minha geração recebeu na faculdade de direito, ou outra, a grande lição de que a liberdade se conquista, que os direitos não são fornecidos gratuitamente, que nos advém com sangue, suor e lágrimas. Não nas aulas de Marcelo Caetano, Paulo Cunha ou Cavaleiro Ferreira, que estes eram células visíveis e palpáveis da repressão e opressão que assolavam o país. Antes, lá no fundo da escola, na associação académica, onde dávamos os primeiros passos na mira de uma consciência política e social que haveria de elevar-nos ao estatuto de cidadãos e não de servos com que nos tratavam. Lembro-me, e lembro-me muito bem, de que como éramos assaltados na associação académica pelos gorilas da pide e tropas do capitão Maltez que, invadindo as instalações, quando lhes dava na real gana, distribuíam bastonadas que nos conduziam ao Santa Maria ou ao buraco da António Maria Cardoso.
Era uma opressão totalitária, física, generalizada, que não poupava quem quer que fosse que botasse uma simples palavra de desacordo, um simples pensamento próximo da liberdade ou do exercício de um direito.
As coisas mudaram nessa madrugada de 25 de Abril. O país explodiu de alegria e liberdade. Instalou-se, aos poucos, como em tudo que é grande, a democracia.
Esta, pelo simples facto de o ser, não faz desaparecer, num ápice, por mais órgãos constitucionais que tenha, e por mais que o Estado se organize democraticamente, todas as formas de opressão e repressão. As coisas aqui surgem de um modo mais insidioso. Mais sofisticado, sem pides e sem bastões. Reflecte-se e apalpa-se no modo como os mais diversos poderes democráticos se relacionam com o cidadão. Este, também na democracia, necessita lutar, dizer não, ser capaz de afrontar o poder.
A "opressão democrática", passe a antinomia, veste-se de roupagens hipócritas, de modos astutos de tramar e enganar o cidadão.
Quando o governo anuncia a sua impotência para impedir despedimentos e lava daí as mãos como Pilatos, com a desculpa rasgada de que assim é o mercado, não está ele a esquecer, ou a fazer que esquece, as suas obrigações constitucionais? E, por aí, a reprimir o cidadão dorido pela angústia do despedimento, servindo de instrumento à ganância e desumanidade do capital e seu tradicional comportamento antimoniano?
Quando, e por exemplo:
1. Um qualquer presidente de junta, abusando dos seus poderes, atrasa o deferimento de um requerimento de um seu vizinho só porque este é seu adversário político, não está a reprimi-lo, a usar de opressão?
2. Uma qualquer câmara municipal arreda da distribuição da casa social uma família em favor de outra menos necessitada só porque se trata de um correligionário político, não está a reprimir e oprimir a primeira?
3. Um governo civil distribui um subsídio a um clube de futebol das suas simpatias, assim o desviando do seu destino legal que seria, por hipótese, uma obra social, não está a actuar em termos repressivos e opressores?
4. A Direcção-Geral dos Impostos devolve o IRS pago a mais, muito para além dos prazos legais, não está a oprimir e reprimir o cidadão que pagou demais?
5. Um ministério concede a feitura de uma obra a uma empresa amiga do governante em causa, não está a oprimir e reprimir aqueles que, pelos meios legais, concorreram?
6. Um tribunal resolve um caso judicial para além dos prazos razoáveis de que fala a Constituição, não está a reprimir e oprimir os interessados?
7. Um órgão constitucional, em dado concurso curricular, se permite estabelecer critérios de apreciação dos candidatos que não têm nada a ver com a Constituição e a Lei e ainda se permite não esclarecer o que quer com os critérios que não definiu ("bom senso", "aprumo moral", "imagem na sociedade") não está a oprimir, reprimir e intimidar os candidatos, assumindo uma postura inaceitável num estado de direito e num órgão constitucional?
A opressão e repressão assumem, como se pode ver pelos pequenos exemplos, coloridos muito diferenciados na democracia. Mas não deixam de ser opressão e repressão. Incumbe-nos, como cidadãos, não aceitar, protestar, ou, como diria NATÁLIA CORREIA, erguer sempre uma bandeira que assuma a forma de "… Um ultimatum permanente a todas as formas de opressão mesmo aquelas que se tingem das cores mais vivas da liberdade..."
Vem aí o 25 de Abril. Com ele, é preciso erguer essa bandeira contra as opressões mesmo as mais discretas e sinuosas.

Alberto Pinto Nogueira
# posto por Rato da Costa @ 29.3.04

segunda-feira, 28 de março de 2011

Faz hoje anos...

... que nasceu o peruano Mario Vargas Llosa.

Evento recente

Prémio Pritzker, mais importante prémio mundial da arquitetura, atribuído a Eduardo Souto Moura.

Pintassilgo (Carduelis carduelis)

Alexandre Herculano: 28 de Março

cesário verde
No dia 28 de Março de 1810 nascia o escritor Alexandre Herculano.
Historiador, poeta e romancista, preocupou-se sempre com a reconstituição histórica. Foi também um dos grandes nomes do Romantismo português.

OS VÂNDALOS DO PATRIMÓNIO

Costumo acordar com o gorjeio dos pássaros na horta. Ontem, Sábado de Aleluia, acordei mergulhado num silêncio tumular. «Quereis ver?...» Abri a janela. Dois palmos de neve no muro da horta. Os campos, a perder de vista, um deslumbramento de brancura.
Saí para a eira de codaque em riste. O beiral da casa rendilhado de candeeiros. Coisa bonita!
Julguei que tínhamos para oito dias. Mas eis que o sol começa a subir, a neve a derreter, o beiral a despejar água em catadupa. Em poucas horas, casas e árvores despiram a alva. Ficaram apenas as serras coroadas de arminho. Fui vê-Ias de perto.
No cotovelo duma calhelha, encontrei o meu velho e particular amigo Rodrigues.
– Já foste ver que pedra estão a tirar em Penas-Covas? – perguntou-me.
Nos meus tempos de escolaridade, saudosos tempos em que reinava a soberana e crudelíssima Santa-Luzia-dos-Cinco-Olhos, ensinaram-me que nunca se responde a uma pergunta com outra pergunta. Mas não resisti e contra-ataquei:
– Sabes o que quer dizer Penas?
– Home…
– Eu te explico. Pena, de acordo com o radical ou étimo latino, pode significar três coisas. De poena, deu: tristeza, castigo, dó, compaixão, saudade; de penna, deu pluma, pena de ave, pena de escrever, asa de rodízio; de pinna deu rocha, fraguedo. Não tens lá um dicionário?
- Nem cabeça para essas coisas.
– Mas já tinhas idade para perceberes que as Penas-Covas eram os penedos maiores e mais bonitos do termo de Peireses e arredores. Por isso os nossos antepassados os cognominaram de Penas: as rochas por excelência.
– E tinham razão. Que pedra lá deram!
– E tu a dares-lhe e a burra a fugir. Os penedos não estavam em terrenos teus?
– E dos meus cunhados.
– Ao todo, quantos herdeiros?
– Quatro.
– E quanto recebeu cada um?
– Uns cinquenta contitos.
– E vós não tendes vergonha de, por uma insignificância dessas, deixares destruir um monumento?
– E ó rapaz que bela pedra lá deu!
– Chiça! Cala-te lá com a beleza da pedra. Belos eram os penedos e a paisagem de que eles eram o melhor ornamente. Agora parece que passou por lá uma bomba atómica …
– Olha que a do Crasto não lhes agradou …
– Han?!
– Palavra! Fui eu lá com eles. Já tinham licença do engenheiro da floresta e do Presidente da Junta.
Fiquei siderado!
No termo de Peireses há um castro com três lanços de muralhas, a que o povo chama Muradal. Nasceram-me por lá os dentes atrás das vacas e das cabras. Muitas cortes e palheiros da minha aldeia foram construídos com pedra do Muradal. Sou testemunha disso. Nos meus tempos de estudante gostava de ir espairecer até ao Crasto. Um dia reparei que tinham andado a tirar pedra de fresco. Ia a passar um meu vizinho caçador. Chamei por ele:
– Ó Tizé? Venha cá. Olhe para esta pouca vergonha… A roubarem a pedra das muralhas!
Eu estava rubro de cólera e de indignação. E quando julguei que o meu vizinhe ia fazer coro comigo nos impropérios aos vândalos do monumento, ele limitou-se a olhar indiferentemente para o rombo nas muralhas e a dizer:
– Quer não que não é grande cantaria…
Oh! Céus! Na minha ingenuidade e entusiasmo de aprendiz de história, estava à espera que o meu vizinho, ante a cividade adormecida, exclamasse para mim, como Napoleão para os soldados ante as pirâmides do Egipto:
– Do alto destas ruínas, quarenta séculos te contemplam!
Mas o meu vizinho tinha mais espírito de pedreiro do que de Bonaparte. E a única observação que lhe ocorreu foi a de que os Celtas não eram grandes canteiros…
Mas deixaram monumentos que resistem há cinco mil anos! E continuarão a resistir indefinidamente.
A não ser que a ganância e o diabólico poder da técnica os destruam.
O meu amigo Rodrigues garantiu-me que não. Que os empreiteiros não gostaram da pedra.
Mas fiquei horrorizado. Tão horrorizado, que peguei no carro e fugi para o Porto.
Ao chegar aos Pisões, reparei que os carros que me precediam, bem como os que vinham em sentido oposto, encostavam à berma. Que foi que não foi, coisa sem importância de maior: uma carrinha que, no cruzamento de Friães, tocara de raspão num autocarro.
Em breves segundos, tive ensejo de cumprimentar ali numerosos amigos, entre eles, o Presidente da Junta de Freguesia de Salto. Que vinha da Câmara, onde passara a tarde a discutir e assentar os termos de concessões de pedreiras ao ar livre no termo de Salto…
Atei as mãos à cabeça. Eu não sou de modo algum contra as pedreiras. Sou até adepto incondicional das casas de pedra. Mas acho que a pedra deve ser explorada no subsolo, em zonas bem delimitadas, sem grandes estragos ambientais. Os penedos, como as árvores, fazem parte integrante da paisagem, Com uma diferença: as árvores, cortadas umas, plantam-se outras: os penedos, destruídos uma vez, nunca mais voltam.
Que o Ministério do Ambiente, a Quercus e organismos similares venham em meu auxílio.
Que, pelo exposto, com os Barrosões, escuso de contar.


Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS – Crónicas de Barroso (p. 36 e ss.)

1922 - Nascimento de José Craveirinha (Faleceu a 5 de Fevereiro de 2003)


A 28 de Maio de 1922, nasce o poeta moçambicano José Craveirinha. Foi-lhe atribuído, em 1991, o Prémio Camões. Da sua obra destacam-se Xigubo (1964), Cântico a um Dio de Catrane (1966), Karingana Ua Karingana [Era uma vez] (1974), Cela 1 (1980), Maria (1988), e Haminas (1997).

Os Cordoeiros: Domingo, Março 28 [2004]

Os mal-amados


Sem abrigoHá quem diga que são rosas
mas não são...
Não há rosas andrajosas em botão.
Imagem mesmo que fosse
não servia.
O amargo não é doce
nem sequer na fantasia.
Chamem-lhes pois pelo nome,
pelo seu nome infeliz,
de seres humanos com fome
na raíz.


MIGUEL TORGA
# posto por Rato da Costa @ 28.3.04

Pobreza e sofrimento

Já que o nosso amigo João B. Magalhães não manda nada para o blogue, aqui vai a transcrição da sua crónica de hoje no JN:
Agrava-se, entre nós, a pobreza. Fala-se em duzentos mil pobres, mas há estudiosos que garantem que a pobreza em Portugal cresce diariamente, excedendo, já em muito, esse número. Entretanto, a retórica oficial diz-nos que a recuperação da economia está no bom caminho e que os sacrifícios que, hoje, se fazem vão garantir no futuro mais felicidade para todos. Contudo, a boa-governação não é privilegiar a produção de riqueza, mas a eliminação da miséria e do sofrimento. Pode-se argumentar, como faz o primeiro-ministro, que só o crescimento económico resolve o problema da pobreza. Os factos estão, entretanto, a contradizer essa tese. Com a obsessão desse propósito, este governo tem desenvolvido políticas direccionadas exclusivamente para a produção de riqueza e os resultados estão à vista: aumentou o desemprego, a insegurança no trabalho, a exclusão social e, consequentemente, a pobreza. Os pobres vão ficando cada vez mais pobres e em maior número e os ricos cada vez mais ricos e em menor número. A correcção desta situação não pode ser feita com uma espécie de "ditadura benevolente" que, recusando o diálogo e as medidas contratualistas, teoricamente afirma privilegiar o desenvolvimento social, mas, na prática, gera exclusão e sofrimento. Não há, sob o ponto de vista da ética da responsabilidade, uma simetria entre o crescimento económico e a pobreza ou entre bem-estar e sofrimento. Nenhuma miséria ou sofrimento pode ser contrabalançada pelo bem que engendra. A pobreza e o sofrimento, privando o homem da sua dignidade, apelam a um auxílio imediato que, sob o ponto de vista da boa-governação, terá de ter uma resposta prioritária. A máxima de uma boa-governação é levar a cabo medidas que possam minimizar o sofrimento humano e, em caso de este ser inevitável, distribui-lo o mais equitativamente possível, por forma a que os que já são pobres (os que não dispõem de possibilidades para se defenderem nas crises económicas) não sejam os mais penalizados. É por esta máxima que passa a distinção entre o bom e o mau governo e, se quisermos, entre esquerda e direita. Só por puro cinismo ou demagogia se pode falar em desenvolvimento social, ficando indiferente ao sofrimento e à miséria.
# posto por Rato da Costa @ 28.3.04

Instrução?

No domínio do Código de Processo Penal de 1929, a instrução tinha por fim «averiguar a existência das infracções, fazer a investigação dos seus agentes e determinar a sua responsabilidade», sendo que, a partir da entrada em vigor do Decreto-Lei nº 35007, de 13-10-1945, a instrução preparatória passou a ser dirigida pelo Ministério Público, enquanto que a chamada instrução contraditória, continuando a ser dirigida por um juiz, pouco mais era que uma excrescência do processo, servindo apenas para retardar o seu andamento.
A Constituição da República Portuguesa, aprovada em 1976, veio a estabelecer que «toda a instrução é da competência de um juiz…».
O legislador do CPP de 1987 instituiu, entretanto, como verdadeira fase do processo, o chamado inquérito, constituído pelo «conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação», e atribuiu a sua direcção ao Ministério Público, assistido pelos órgãos de polícia criminal; paralelamente, manteve a fase da instrução, com carácter facultativo, dirigida por um juiz, também assistido pelos órgãos de polícia criminal, mas assinalando-lhe uma outra finalidade – a comprovação judicial da decisão do MP de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento. A esta mudança de finalidades da instrução chamou, na altura, Vital Moreira uma “burla de etiquetas”.
No essencial, o papel desempenhado pela velha instrução preparatória passou a ser substituído pelo do actual inquérito, embora sob a tutela do chamado “juiz das liberdades e garantias”.
No clima de turbulência que actualmente se vive na área processual penal, é de questionar, mais uma vez, se se justifica a coexistência das duas fases (inquérito e instrução). Enquanto uns (Lacão & C.ª) pretendem complicar ainda mais as coisas, limitando os poderes investigatórios do MP, criando uma subespécie de instrução e desvirtuando a natureza e finalidades desta fase, outros, mais avisados e com melhor conhecimento de causa (Figueiredo Dias e a sua escola), preconizam, pura e simplesmente, a eliminação da fase da instrução, desde que se altere a norma constitucional atrás aludida.
Voto decididamente por esta segunda alternativa. Num quadro institucional em que o Ministério Público goza de autonomia, em que os fins últimos nessa área perseguidos pelas duas magistraturas em nada diferem e em que a isenção com que actuam é em tudo idêntica, não vejo razão para que se persista em manter a complementaridade daquelas duas fases, que só serve para tolher a almejada celeridade processual e representa mais uma fonte de evitáveis conflitos. Estando o Ministério Público, na fase de inquérito, tutelado pelo tal juiz das liberdades e garantias, a sua decisão de deduzir acusação estará sempre, no fim de contas, sujeita à comprovação judicial da fase de julgamento; e, relativamente à decisão de arquivar o inquérito, haverá, seguramente, outras formas mais expeditas e eficazes de a controlar, sem necessidade de erigir uma outra fase processual e fazer intervir um juiz, muitas vezes inexperiente e de passagem pela “instrução” (por que não instituir, aqui, um verdadeiro regime de recursos das decisões do Ministério Público, por mais que isto possa chocar?).
O legislador, constitucional e ordinário, deveria preocupar-se com esta questão. Investigação única sob a direcção do Ministério Público, controlado pelo juiz, ou do juiz, fiscalizado pelo Ministério Público. As duas coisas é que não.

P.S.:
1. Segundo o Público de hoje, a Ministra da Justiça, Celeste Cardona, vai apresentar, esta semana, um anteprojecto de proposta de lei sobre o Código de Processo Penal, em que, menos ambiciosamente que Jorge Lacão, se vai "mexer" na protecção da vítima, na prisão preventiva, no segredo de justiçae nas escutas telefónicas. Segundo o mesmo diário, «para estas mudanças o Ministério da Justiça consultou os juristas Figueiredo Dias e Germano Marques da Silva». A ver vamos...

2. Diz Pedro Vieira de Almeida, em Estrago da Nação:
Lá fora está a chover. Espero que esteja agora também a chover em Oliveira de Frades, Águeda e Sever do Vouga, onde hoje de manhã deflagaram incêndios florestais.
Só o São Pedro nos vai valer este ano para que não se repita a catástrofe do ano passado. Mas agora já sabemos que a ocorrer, a culpa não será nem dos proprietários que abandonam as florestas, nem dos bombeiros que não estão bem equipados e formados, nem do Governo que continua sem tomar medidas estruturais. A culpa dos incêndios será da Natureza das coisas, como em Entre-os-Rios.


Topsius 
# posto por A.C. @ 28.3.04

As pedras de Roseta e o Ministério Público

Recentemente muitos se indignaram, justamente, com a tibieza com que a GNR reagiu à arruaça protagonizada por um autarca, durante um desafio de futebol. Afirmou-se que apenas a subserviência das autoridades perante o cacique local poderia justificar tal comportamento.
Convém lembrar, porém, que a subserviência face a estes sobas não é exclusivo de autoridades locais, manifestando-se a altos níveis de responsabilidade da administração central, que preferem, muitas vezes, ignorar os deveres que a Lei lhe impõe, quando eles colidem com os interesses ou o peso político de um qualquer Sr. Joãozinho das Perdizes, Presidente de Câmara Municipal.
O domínio do património cultural é daqueles em que este problema se tem posto com maior acuidade. A harmonização dos valores do progresso com os da protecção do património nem sempre é fácil, é quase sempre onerosa e implica demoras e limitações diversas. Os próprios poderes públicos procuram muitas vezes, nos seus empreendimentos, contornar as obrigações legais nesta matéria. Delapidações e atentados ao património cultural, mesmo se classificado, praticadas pela administração central ou local, são por demais conhecidas. Muitos valores patrimoniais não passam, para estes empreendedores públicos, de meras “pedras”, que a insensatez do legislador atravessou no seu caminho.
E o que fazem os Institutos na dependência do Ministro Pedro Roseta, aos quais o Estado deferiu a tutela do património cultural? Aos simples particulares e às instituições (públicas ou privadas) bem comportadas, com cultura e tradição de respeito pela legislação do património cultural, aplicam todo o rigor da lei, devidamente temperado pelo peso da burocracia, quando não enfeitado por extravagâncias e caprichos da sua exclusiva lavra. Porém, quando se trata de autarcas com peso político e que não têm pejo em ignorar as imposições legais que não lhes convêm ou as competências dos ditos Institutos, a conversa é outra.
Não raro, a comunicação social relata casos de obras promovidas ou licenciadas por Câmaras Municipais, sem que tenham sido obtidos os pareceres da administração do património cultural legalmente exigidos, ou que estarão a violar pareceres vinculativos emitidos. Sucedem-se igualmente os relatos de obras realizadas sem observância das exigências legais relativas à minimização de impactes, designadamente no que se refere ao acompanhamento e registo arqueológico. Não vale a pena – nem é objecto deste post – referir aqui qualquer caso particular. A realidade acima descrita é pública e notória.
Quando estas ilegalidades - que põem em causa um património não renovável que é de todos, muitas delas indiciando condutas tipificadas como crime (no Código Penal ou na LPC) – são praticadas pelos tais autarcas politicamente influentes, verifica-se por vezes uma pasmosa não-reacção por parte dos Institutos do Ministério da Cultura. Providências administrativas da sua competência ou o recurso aos mecanismos judiciais que a Lei prevê parecem ficar no esquecimento, como se não existissem, limitando-se os responsáveis a alertar, timidamente, para as ilegalidades praticadas ou em curso...
Enredados em processos de reorganização permanentemente adiados (e de bondade muito discutível), limitados nos recursos, carentes da aprovação da legislação de desenvolvimento da LPC, cada vez menos os Institutos do MC parecem estar à altura de cumprir as suas responsabilidades face aos atentados às “pedras” que confiámos a Roseta.
Quando esta tibieza se manifesta e as ilegalidades praticadas são amplamente divulgadas na comunicação social, resta-nos confiar na intervenção de Magistrados, que não se coíbam de enfrentar os caciques e outros poderosos, se a defesa da legalidade o exigir.
O Ministério Público tem competências e um papel insubstituível a desempenhar na defesa dos interesses difusos e importa que o comece a exercer com maior ênfase no domínio do património cultural.
Sem prejuízo de vários casos conhecidos em que o MP tomou a iniciativa de promover processos administrativos ou criminais em defesa do património cultural, por vezes com base em notícias na imprensa (cf., por ex., a R.M.P., n. 49, pp.161-163), tenho a sensação – eventualmente desajustada - de que esta matéria não tem merecido a atenção que a multiplicação dos casos noticiados justificaria.
«A consulta dos Boletins de Interesses Difusos disponibilizados no site da PGR, permite constatar uma notável actividade no âmbito dos direitos dos consumidores ou do direito do ambiente, sendo quase inexistentes as menções à defesa do património cultural. Talvez os caros Cordoeiros possam esclarecer melhor esta questão, com o especial conhecimento de causa de que dispõem. Deste Causidicus, ficam os votos de que o MP actue diligentemente contra as ilegalidades cometidas contra as nossas “pedras”, já que outros, a quem tal caberia, por vezes o não fazem. Registo aliás, que, para além dos procedimentos visando directamente a protecção do património cultural, não deixaria também de aproveitar à prevenção de certas omissões funcionais que as mesmas passassem a ser especificamente investigadas, procedendo-se em conformidade com os factos apurados.»
Será ingenuidade do Causidicus? Ou será que não reparou que o último Boletim de Interesses Difusos é de 2001??? (e que não sabe que não foram publicados mais porque o voluntarismo da colega que o organizava cedeu perante a total indiferença-falta de apoio das estruturas superiores do MP, a quem apenas parece importar a eficácia no aumento de "baixas" - literalmente, pois! - de inquéritos? É que até parece que o Causidicus está a falar a sério!

Liliana Palhinha
# posto por Rato da Costa @ 28.3.04

domingo, 27 de março de 2011

Robin

foto
Esposende

Vergílio Ferreira (27 de Março de 1989)

27 – Março (segunda). Estou a ler o livro do Alberto da Costa e Silva para pensar a apresentação. Antes de mais julguei que o Alberto tivesse nascido no Brasil por distracção. Obrigou foi a mãe a jurar que o faria lá nascer. Há mesmo no livro um certo proselitismo ou chauvinismo intenso. Mas o que mais me incomoda é a defesa que ele faz da arte primitiva africana contra todo o europeísmo. Pobre Alberto. Nunca pensou nesta coisa elementar e é que foi a Europa em crise quem descobriu e valorizou a arte primitiva. Mas valorizando a arte negra, A. C. S. refere-se ao barbarismo de tais civilizações – sem uma palavra de restrição ou recusa. Tais pretos degolam «cruamente» as mães ou asfixiam crianças ou degolam-nas igualmente. Não, a Europa está aflita. Mas ainda é a capital do Mundo. E tal mundo para vir ao de cima da vida e autonomia e regresso, é da Europa que faz as importações. Nem que se trate de mercadoria estragada como foi o marxismo para a China.

conta-corrente - nova série I (1989), p. 57 e s.

José Rodrigues Miguéis / José Saramago (1959-09-16)

2 
Lisboa, 16 de Setembro de 1959
Meu caro Amigo,

Afinal, a sua ilha «deserta» de não sei quantos milhões de habitantes, para onde algumas vezes lhe ouvi dizer aqui que lhe apetecia fugir, não tem já solidão bastante para o fazer esquecer os 100 terríveis metros da calçada do Chiado, o Chiado-de-Espingarda-ao-Ombro, igualzinho e tão provinciano como o Freixo-de-Espada-à-Cinta! O viajante das sete partidas, o homem instável, o calcorreador de horizontes, suspira pelas raízes que começavam a romper-lhe a sola dos sapatos! Era de esperar: também o pintor enamorado da anamita[1] muitas vezes se lembrou da parvónia, do Aterro, da Avenida dos Aliados, destes quatro palmos que medem Portugal… Pois cá o esperamos – e que venha em bem, como dantes se dizia!
Pede-me o Canhão que declare expressamente que o ditado «longe da vista, longe do coração» não é com ele. A prova aqui está: «perto da vista» o contrato da Noite não andava nem desandava: o cartaz que lhe afixei diante do nariz não parecia eloquente bastante para o demover da sua imobilidade de pedra. Pois bastou a sua ida para que o memorando fosse solenemente retirado! Eis o contrato, pois, redigido na forma do costume, adoptando as percentagens que propôs, e apenas com uma ligeira alteração no número de exemplares. Como quem não quer a coisa, passou-se dos 4000 para os 4500 exemplares, primeiro passo (quem sabe?) para os 5000 (ou mais) da Escolala!... Isto mostra que também é nosso desejo conservá-lo na prateleira dos best-sellers nacionais[2].
A revisão da Noite (veremos se «rigorosa e meticulosa»!) não foi só de 2.as provas: foi também de 3.as, pois o Alexandre Vieira entrou em digressão turística pelo País e eu tive de substituí-lo completamente. Conclua daqui que é inteiramente minha a responsabilidade das tolices que, por desgraça, possam ter passado. Quando a minha Avó acabava de amassar o pão, dizia sempre, depois de traçar uma cruz na massa: «Deus te ponha a virtude, que eu fiz o que pude.» Assim estou eu também.
Quanto às notícias que nos dá da Escola, nada nelas me surpreende. Revisões, provas para trás e para diante – não era realmente possível fazê-la sair em Dezembro. E talvez seja melhor assim: 1959 foi o ano-Miguéis[3]: façamos com que 1960 o seja também. Por outro lado, pessoalmente, prefiro que a Escola apareça com o Autor presente.
Como poderá ver, os cheques que enviamos, datados de 9 e 10 do corrente, mostram que foi aceita a sua sugestão de incluir-se já neste pagamento a primeira prestação da Noite. Brevemente o informaremos das vendas ultimamente registadas de todos os seus livros.
Uma notícia que certamente lhe agradará: um editor americano, cujo endereço segue à parte, pediu-nos os seus livros e indicação de direitos. Aqueles já foram, mas de direitos não falámos, até porque não sabemos ainda se lhe interessará ser editado pelos sujeitos. De qualquer modo, demos um direito de opção de dois meses. Veremos o que isto dá. Se quiser dar-se a esse trabalho, poderá informar-se de quem são os editores: no fim de contas, pode não lhe convir, a si, a edição.
Por agora, é o que há. Os nossos cumprimentos a sua esposa e a sua filha. O Canhão e o Correia pedem-me que transmita por esta via o abraço que lhe mandam. Quanto a mim, usando do privilégio que me dá a função de escrivão-mor do reino da Cor, transformo em duplo o meu abraço. Aceite-os com a estima e a admiração sincera do

José Saramago

P.S. Hesitei se deveria indicar no frontispício da Noite tratar-se de «edição definitiva». Ainda pensei em escrever-lhe para o consultar. Mas, por fim, decidi-me pela negativa: efectivamente, não pode ser definitiva uma edição feita, afinal, longe das vistas do Autor. Além disso, fui encontrar riscadas na sua «Nota ao Leitor», mas ainda legíveis, as palavras em questão. Isso me acabou de decidir. Edição definitiva será, portanto, a que o meu Amigo quiser – e só essa.

Desculpe o rasgão!
Afinal, não vai à parte:
THE NOONDAY PRESS
80, East 11 th Street
New York 3

          Notícias de última hora:

Léah
Páscoa
Homem Sorri
Abril
   44
   162
     298
Maio
  159
     91
     122
Junho
  336
     64
     105
Julho
  610
    221
     278

1149
    538
     809


[1] Referência a uma personagem de um conto de Miguéis.
[2] Na margem da carta, Miguéis fez as seguintes contas: 4500 x 30 = 135 000$00; 1S%: 10 12S; 20%: 13 500; - total: 23 625$00.
[3] Referência ao Prémio Camilo Castelo Branco com que foi distinguido, e de grande importância na época.