No museu das minhas
recordações de infância, há uma galeria infindável de quadros evocativos. Um
dos mais coloridos é o que me recorda a «Feira do Prémio», outrora realizada em
Montalegre a 28 de Junho. Não andarei longe da verdade se disser que era a feira
mais concorrida do ano. Aí concorriam as aldeias com o seu «boi do povo» e os
particulares com as suas vacas, almalhas e novilhos. Aí concorriam os velhos
para ver o gado e os novos para ver as moças.
Um «1.º Prémio» num «boi
do povo» embriagava de alegria e vinho uma aldeia. O mesmo galardão numa vaca,
almalha ou novilho, ensandecia de vaidade uma família.
Em termos de fama e
proveito, um título de «Vaquinha do Prémio» desses tempos, correspondia ao de «Miss
Mundo» dos nossos dias.
Lavradores havia que
passavam o ano a treinar uma vaca para o concurso de 28 de Junho. Um deles era
o meu vizinho Janfernandes, homem de fartos haveres e muita prosápia. Um ano
concorreu com a sua Galanta, que ele
julgava imbatível e com alguma razão. À primeira vista, a vaca possuía todas as
prendas exigidas por uma campeã. Juventude, boas medidas, formas harmoniosas,
pelagem alaranjada em caracóis de muita graciosidade, um bonito colar de pêlos brancos
à volta do barbo, outro das pálpebras, badana elegantemente caída em véu de
odalisca desde o lábio inferior à fúrcula dos membros dianteiros, ventre
enxuto, cornos em lira, alvos nas bases e morenos nas pontas, olhos de Helena
de Tróia, da qual Homero afirma que tinha «olhos de boi.»
O Janfernandes ia
absolutamente seguro de que o júri cairia de joelhos ante a beleza da sua Galanta. Afinal a vaca nem sequer foi
classificada.
O Janfernandes focou
inconsolável.
– Ó rapazes? – pedia ele
aos vizinhos. – Sede francos comigo. Vedes algum defeito na minha Galanta?
– Foste roubado! –
exclamavam todos. .
Todos menos o velho
Aleixo que se mantinha calado. O Janfernandes interpelou-o:
– Vai muito calado, ti
Aleixo. Não concorda?
– Com quê?
– Com os outros. Nota
algum defeito na minha Galanta?
– Olha-lhe para a
croca do rabo.
– Que tem a croca do
rabo?
– Andas cego.
– Desculpe, mas por
enquanto ainda vejo bem, graças a Deus.
– Pois não parece.
Repara nas outras e na tua.
As vacas regressavam
da feira em grande quantidade. O Janfernandes pôs-se a olhar para elas.
Realmente, em todas o fio do lombo ia da cernelha à implantação da cauda numa
horizontal perfeita. Ao passo que na sua Galanta,
ao chegar ao cóccix, elevava-se abruptamente numa pequena bossa de camelo. «Ah!
Então é isso…» – disse para consigo. E não disse mais nada.
No dia seguinte levou
a vaca ao veterinário. Este, ouvido o caso, gracejou:
– Ó Janfernandes? Eu,
em veterinária, sou apenas clínico geral. Ora um caso destes exige, pelo menos,
um cirurgião plástico.
– Conhece algum,
doutor?
– Não conheço nem
creio que o haja nas setenta vezes sete milhas em redor, Lisboa inclusa.
– Desculpe o
atrevimento. Mas eu vinha convencido de que uma pancada na bossa…
O veterinário riu-se:
– Para isso não
precisas da minha ajuda. Não tens lá um mascoto?
O Janfernandes
regressou a casa e, dito e feito. Agarrou num malho-rodeiro, subiu três degraus
das escadas e disse ao criado:
– Puxa a vaca para
aqui.
O rapaz colheu a vaca
por um corno e trouxe-a para junto das escadas. O Janfernandes quadrou-se com ela
e, a mãos ambas, com quanta força tinha, desferiu-lhe um golpe tremendo na
croca do rabo. A vaca foi-se abaixo das patas de trás e assim esteve, por
instantes, fincada nas da frente. Depois afundou-se de vez no estrado do pátio.
– Está morta – disse o
rapaz.
– Se está morta,
enterra-se.
– Não será melhor
sangrá-la e comê-la?
– Também não dizes
mal.
Antes de chamar os
vizinhos, o Janfernandes combinou com o criado dizer que a Galanta partira uma perna. Mas a história acabou por cair nas bocas
do mundo. O velho Aleixo comentou:
– Tenho visto matar
muita vaca com uma pancada na testa. Agora no rabo, é a primeira.
Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS II
– Crónicas de Barroso (p. 59 e ss.)
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