Porque é que se diz com firmeza
que Heidegger pôs
fim à metafísica? Ele próprio, com efeito, insiste em dizer mal dela. Como se
tudo na vida não fosse praticamente metafísica, a começar pelos que a
repudiavam como os materialistas. Mas toda a arte é metafísica, todos os
sentimentos o são, todos os raciocínios o são, ou seja, todas as ideias gerais,
porque todas elas visam o além do imediato como qualquer abstractização. Quando
eu digo por exemplo «isto é um casa», aludo logo ao conceito de casa que não é
esta nem aquela, mas o seu universal, que está para além da coisa real e
imediata «casa». Mas o mais curioso é que Heidegger, desprezando a metafísica,
inaugura uma super-metafísica, muito mais metafísica portanto do que aquela que
ele recusa. Os antigos falavam no «ser» de qualquer «ente», ou seja da sua
essência. E isso é metafísica. Muito bem. Mas Heidegger diz: para lá de todo o
nomeável há o inominável, a névoa indistinta em que impensadamente se funda
todo o pensamento. O erro de Heidegger, creio já tê-lo dito, foi justamente o
de dar um nome ao que já o não tem. Ser esse «ser» particularmente ou um «Ser»
geral, tudo é redutibilidade e limitação. Nós podíamos assim dizer, segundo o
seu método, que para lá do «Ser» geral, há ainda o ser desse «Ser» e que já não
tem nome. A menos que se prefira falar de um ser de outro ser até ao infinito.
Mas o mais grave para mim não é isso. Mais grave é Heidegger e os seus sequazes
afirmarem do mesmo passo que um «eu» não existe, porque o que existe é esse
«Ser». Mas onde está ele para permanecer aí existente, quando nenhum homem
existir? As coisas reais eu posso, enquanto vivo, saber que permanecem depois
de eu estar morto, como o verifico depois de os outros irem morrendo. Mas e o
«Ser»? Que realidade tem ele, fora de mim que o concebo? Os próprios conceitos
ou essências ou valores abstractos são uma criação minha para eu me orientar no
Mundo com o meu pensá-lo. Ao princípio não é o «ser» ou o «Ser» mas eu. O ser está dependente de mim para
existir, porque ele só existe se me
existe. Mas a que propósito me ocorreu todo este paleio? Ocorreu-me por uma
razão simples que noutros anos me tem já ocorrido. Levanto-me, abro a janela e
vejo no pinhal um sol ainda retraído no seu esplendor. É o sol da Primavera, a
criar embalagem para o Verão. Isto o pensei por me lembrar que estamos em Maio.
E foi então que me lembrei de pensar o que pensaria se estivéssemos em
Setembro. Porque o que eu pensaria não era que o sol ainda não chegara ao seu esplendor de Verão, mas sim que já não chegava a esse esplendor. Como em
Outubro ou Novembro eu pensaria que o sol tinha já uns começos de tristeza do
Inverno. Ou seja, a mesma realidade era-me totalmente diferente, se a pensasse
noutro contexto, ou seja se eu a integrasse assim. Ao princípio não era o Ser,
ao princípio sou eu. E é o que diria
ao Heidegger (que está passando um mau bocado por causa do seu nazismo) se ele
estivesse aqui em Fontanelas e me desse um pouco de cavaqueira.
*
Fui a casa do Vasco (conhecem, não
é assim? o cartoonista, esse mesmo, que mora aqui em Fontanelas) porque o Sousa
Monteiro me queria devolver a tradução alemã do Até
ao Fim. Sousa Monteiro é bilingue porque esteve largo tempo na Alemanha
e é casado com uma alemã. A mulher leu o livro e ele também. E a opinião dos
dois veio cheia de rodeios para eu não estar onde ela passasse e eu visse dela
apenas um pouco do seu passar. Em linguagem rápida – não gostaram. Tradução
muito boa, pois, pois, um prefácio muito elogioso, pois, pois. Pronto. Com
muita humildade ainda anotei que a editora suprimira a epígrafe, que era um
verso do Rosa e faz falta para cúpula do entendimento do livro e que a Tina, a
Oriana, etc. e que a significação da arte moderna no compositor e escultura,
etc. e que da ausência de valores para o conflito pai/filho, etc. etc. Mesmo
assim não o comovi. Dissertei então um pouco sobre a situação actual do romance
e dos seus antecedentes e dos autores que o promoveram – e fui brilhante. Não o
abalei. E apenas consegui que de vez quando me dissesse, para me reconfortar,
que a Conta-Corrente isso é que era
admirável e que a relia sem cessar e que. E foi tudo. Saímos os dois, ele
ofereceu-me boleia até casa. Agradeci, mas preferia um regresso de infantaria.
Estava um sol já muito aplicado a esturrar-me os miolos. Mas fiz-lhe uma finta
e meti-me pela sombra. Já a havia a abrir a estrada e só falhava quando não
tinha pinheiros para se cumprir. Cheguei a casa, arrumei o livro para o levar
para Lisboa e como os desportistas derrotados pus-me a pensar que o próximo
romance, já a sair do forno, vai-me arrumar a questão sempre adiada de que agora é que é.
Pois. Mas e se não é? Ora. Se não
é, aguardo as contas finais a saldar no infinito e aí não tenho dúvidas de que
no deve e haver o meu lugar é na coluna da direita. Disse.
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