Ontem antes de
jantar voltei a ter uma hemorragia nasal. A Regina, já instruída da experiência
de há meses, meteu-me na narina prevaricadora um tampão com água oxigenada. E realmente
a coisa travou mais cedo. Mas mesmo assim foi um espectáculo de sangueira, a
cara e as mãos inundadas de sangue que esparrinhou também para a sanita e
paredes da casa de banho. Por fim tudo serenou, menos o nosso estado de
excitação nervosa. Telefonei ao António Magalhães que me levou da outra vez ao
hospital para um jovem médico me cauterizar a veia que se rompeu. E isto para a
hipótese de nova cauterização. Não valia a pela. Fosse tapando os buracos a
haver com algodão e água oxigenada. De resto, a veia patifória devia ser outra.
Há muitas no recanto da venta para se irem rendendo umas às outras. E se houver
grandes desmandos, aplica-se-lhes então o processo inquisitorial. Sábado, mas
não sei se falei disso, reparei que tinha o pulso com uma tresloucada arritmia.
Depois reentrou na ordem. A ver se o Nogueira da Costa me passa hoje uma vista
de olhos. E é isto. Agora vou é ver o que é que ainda funciona em mim para ter
para esse órgão uma palavra de gratidão. Que sacana de corpo desde a infância até
à morte.
*
Aí está. Fui às
livrarias à procura de um livro e um pouco também para tomar o peso às pernas.
Pesavam arrobas. E foi só hora e meia de experiência. A Regina tem uma
explicação fácil para a desgraça – é que ando pouco e devia portanto andar
mais. Mas se andasse muito com elas, tinha de me sentar no chão para as não
trazer ao colo. Não havia o livro mas folheei os que havia e me não
interessavam. Também tinha em mira mandar fazer cartões de visita na Emílio
Braga. E levava um modelo de há anos que me convinha. É daqueles que têm o nome
em relevo e são mais próprios de quem tem personalidade. Custavam uma fortuna e
mandei a personalidade para o inferno. Encomendei portanto outros, mais
próprios do proletariado. Mesmo assim, ser hoje proletário está uma carestia.
Mas acabou-se, fiz um aperto na bolsa e espremi uma conta calada. Silêncio
portanto sobre ela. De todo o modo, posso agora ser mais sociável e
cumprimentar quem me cumprimenta. Curioso é que os livros são todos os dias aos
montes. Edições e reedições e reedições de reedições. Quem disse que em
Portugal há analfabetismo? Só se os livros se compram ao metro para adorno
cultural. Mas o que mais me aflige é pegar num livro estrangeiro ou aborígene e
atirar logo com ele, atacado de tédio. Como é que se pode ler um romance
começado por exemplo por «Eram sete horas quando me bateram à porta.
Levantei-me e fui abrir. Era um sujeito de meia-idade, vestido de escuro e que
me perguntou se não era ali que», Ou: «A cidade estendia-se à beira-mar, com o
seu casario que». Ou: «Um dia, pela tarde, o comboio chegou mais tarde do que».
Etc. etc. Sou eu que estou a inventar estes começos para não dar «pistas», como
se diz, a quem me ler. Mas se invento estes, os não inventados são parecidos.
Espantoso. Com perdão de Valéry,
quando a marquesa chega às cinco, é uma festa. Porque enfim sempre é uma
marquesa e a aristocracia está ainda cheia de possibilidades. Mas o que se lê é
pior. Como é que se pode ter prazer na leitura de um livro em cujas frases se
não passa nada? Como é que ainda se lê disto, fora da pressão de uma insónia?
Como é que pode haver deleite na leitura de um prosaísmo ofensivo? Como é que
se podem ainda suportar historietas para atrasados mentais? Como é que se podem
escrever páginas e páginas a dizer que fulano se sentou, ou poisou o chapéu no
bengaleiro ou olhou as horas no relógio ou envergou a gabardina, abriu a porta,
fechou-se à chave e desceu as escadas para ir comprar tabaco? Como é que se têm
de ler 300 páginas para se lhe espremer uma que se lia em três minutos? Como é
que há tanta gente que adora desvairadamente ser imbecil?
E foi fazendo
estas considerações que larguei toda a livralhada e carreguei apenas com as
pernas às costas para as trazer de novo ao descanso da casa. E agora que já cá
estão, vou sentá-las no sofá e dar-lhes de prémio um cigarro.
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