terça-feira, 7 de maio de 2013

7 – Maio (segunda). [1990]

Acabei há pouco o meu texto sobre o Mário Soares. Agora fica para ali a abeberar e depois logo se verá o que lá pus. Entretanto passo em diagonal um artigo do Prado Coelho no Público e topo com a afirmação de que um dizer do Martins Pereira lembra as minhas «verdades do sangue» de que o Sartre, diz ele, não andará longe. Eu penso que anda. De todo o modo apetece-me escrever um longo artigo sobre a «verdade», de que dou aqui alguns tópicos.
Nós temos a tradição de pensar a verdade como uma coisa «indiferente». A célebre adaequatio rei et intelectos é isso. Husserl antepôs-lhe a noção de verdade «antepredicativa». Mas no fundo a questão da verdade não-indiferente ficou na mesma – e julgo que o Sartre foi aí que a deixou. Husserl tinha um preconceito com o que ele dizia ser «mundanismo», contra o «eu» e a sua problemática vivencial. Ficaram assim intactas as verdades que constituem a grande maioria que nos importa: verdades políticas, amorosas (que todas elas o são, afinal), religiosas, «humorísticas», estéticas, etc. etc. Porque aderir a esta obra e não àquela? a esta mulher e não àquela? a este partido político e não àquele? a esta anedota e não àquela? etc. Ora para isto eu introduzi um conceito a que já muito me referi, que me não lembro de encontrar em ninguém e que é, como tenho dito, o conceito do «equilíbrio interno». O fundamento deste equilíbrio é o incognoscível (hereditarismo, educação, encontros, livros lidos ou não, idade, etc. etc.) que nos remete ao próprio «eu» ou o nosso ser, ou se se quiser a nossa liberdade ou a nossa espontaneidade que é impossível suprimir ou condicionar. Por outro lado – e por isso mesmo, ou seja pelo que o fundamenta – esse nosso «equilíbrio» vai-se alterando ou o pode. Se amo hoje uma música, posso amanhã minimizá-la. Há um conceito paralelo e que suponho ter eu introduzido também, que é o do «desgaste». Um pouco ironicamente (mas não tanto como isso) disse eu que ele era no fundo uma explicação da evolução histórica. Obviamente a evolução faz-se em função de milhentos factores. Mas por entre eles todos há o de que uma verdade é como uma estrela nova que cresce até a um brilho máximo e depois começa a apagar-se. A experiência prática e imediata disso é ouvirmos mil vezes uma música que nos arrebata. Porque a certa altura ela começa a ser-nos insuportável. Outra é (quase) a do amor prolongado em que exactamente a mesma mulher (na beleza, honestidade, afeição, etc.) começa a perder-nos atractivos. Ora tudo isto tem como consequência gerar ou alterar o nosso «equilíbrio». As nossas verdades para a vida regulam-se todas elas por ele. Ser ou não crente, aderir ou não a este partido político, etc. é um problema em que a crença ou descrença, etc. entra ou não no nosso equilíbrio, como dizermos que tal azul ou amarelo se coordena ou não com tal quadro. Ora são estas verdades que eu designo por «verdades de sangue» ou seja verdades que têm que ver com a nossa pessoa inteira, nos nascem dentro, são a nossa consubstanciação como elas.
Mas fico por aqui porque vou ler o jornal e fumar-lhe um cigarro por entre a leitura. E estou cansado. Sobretudo de procurar «ter razão». Resta-me uma pergunta: onde é que Sartre reflectiu a minha reflexão, ou seja eu a dele? O E. Lourenço em tempos disse-me (ou escreveu) que o contágio me viera de Nietzsche. Mas não sei de que parte dele.
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Afinal li o artigo. O autor em causa falaria de qualquer coisa que tinha que ver com a nossa biologia. Não há biologia no meu caso e o «sangue» que lá esta não é hematológico.
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Fui a casa do Vasco buscar a minha «CC.3» para eu ler o que aí digo sobre o «retrato» (páginas 439 e seguintes). E tamanha discussão se armou sobre hacer ou não «espírito de cada época» como fundamento inominável da arte nela feita, que fiquei outra vez de nervos enrodilhados e nem um banho de sol há pouco tomado entre os pinheiros mos esclareceu e ordenou de novo. E não bebo eu vinho desde há dias porque me transtorna a vigília e o sono com as drogas com que tento ser um homem calmo. Mas o tabaco é um estupor e é também colaboracionista. Mas sem um copo e um cigarro vale a pena fazer de vivo? A coisa começa sempre com uma bolha de ar no estômago. Se eu o fumasse? Porque se instala ali e não há modos de prosseguir o seu trânsito legal. E dá sempre engarrafamento. Vou-me pôr a ouvir o cuco. A ver se entro no compasso da sua alegria. Se eu dissesse um palavrão a ajudar?

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