quarta-feira, 31 de outubro de 2012

De Profundis, Valsa Lenta [8]


“Sai depressa, depressa.
Já quase morrem esta noite os ecos.”



Mais dois, três dias, e iria levantar ferro da ilha dos náufragos para reviver a casa e o mundo e voltar à escrita e aos livros nas últimas linhas em que os abandonara.
Num golpe repentino tinha perdido a inteireza da fala, no mesmo golpe tinha perdido os valores da grafia e ficara analfabeto de mim e da vida. Subitamente também, retomara tudo isso mas foi preciso algum tempo para começar a ter consciência de tamanha felicidade.
A princípio, por prudência instintiva ou por quase superstição, evitava comprovar a realidade que me tinha sido restituída e experimentar-me em coisas que me eram essenciais. Para reabrir os livros receava que ainda não fosse a hora, havia que não perturbar a recuperação. Escrever, nem uma linha depois da prova salvadora com que os médicos arrumaram de vez o meu dossier. Ler, lia os jornais e sem a curiosidade que seria de esperar talvez porque o fosso que separava a fortaleza do hospital da humanidade exterior ainda não estivesse instintivamente vencido.
Não, leituras poucas. Pelo menos por enquanto. E no que tivesse a ver com escrever, nem pensar. Até sair do hospital jamais me quis abordar (inquietar, para ser mais preciso) como sujeito de livros e de escrita, uma identificação pessoal que eu só muito depois viria a relacionar com o letreiro-fantasma ƂAИHOϨ ƂAИHOϨ ƂAИHOϨ que me perseguira ao longo da minha erosão da memória e que foi a única recordação que sobreviveu integralmente a todo esse aniquilamento[1].
Quanto ao mais, o desfazer das trevas brancas repunha-me numa normalidade que me impressionava por ser tão nítida e tão espontânea, tão decorrente. O minuto interrompido e, ao fim de todo este tempo, continuado como se nada tivesse acontecido; o livro aberto, à espera, as anotações à vista; a frase abandonada a meio e prosseguida naturalmente – tudo assim, nada mais simples.
Entretanto, até ao final do internamento ia sabendo notícias do Outro que eu fora pelas descrições de quem o tinha visto na névoa antiga, e então nomes, pessoas e casos voltavam a povoar-me a memória. Sobretudo ao almoço com a Edite e nos passeias pelo corredor recapitulava-me e recapitulava o pesadelo quase amável donde eu me tinha libertado, embora não tivesse trazido de lá mais do que vislumbres fugazes, instantes ou insinuações.
Ao percorrer agora o território do hospital que correspondia a esse cenário, encontrava muito de raro em raro pormenores que me sugeriam alguns sinais da aridez da morte branca, atmosferas ou como que atmosferas, reflexos de luzes. Mais: de passagem, um ou dois apontamentos casuais levaram-me a reconstruir momentos concretos da minha marcha de sonâmbulo iluminado. Os passageiros sem viagem, por exemplo. Afinal, em frente do elevador o banco onde antes se dizia que eu tinha visto pessoas-em-estátua (a expressão não seria minha certamente mas foi assim que a traduziram), pois bem, esse banco estava lá, existia. Existia mas vazio, embora me tivessem ouvido falar de ocupantes «esquisitos» (doentes sem rosto?). Praticamente sem ninguém, pode dizer-se, estava igualmente a sala do televisor que era mais uma passagem do que outra coisa e que me parecia um espaço ao abandono com imagens a sucederem-se na penumbra. Mais adiante ficava um gabinete de enfermagem de que nunca me tinha dado conta, depois o corredor, o corredor que fora dos passos perdidos, depois as toilettes, depois novamente o quarto, e ponto final, ali acabava o mundo.
Acabava, não. Agora que eu tinha despertado o mundo recomeçava a partir dos dois companheiros de hospital que iria deixar em breve e que até lá eram os meus personagens de cada dia. Vivia-os com atenção. Com afecto, até, e de certo modo com admiração. Contava-os à Edite para não lhes perder o fraseado nem o adejar em torno da vida e da morte.
Cruzado de risos e de dores, Ramires, de olhos fechados, sonhava com o médico da sua redenção e esbravejava em roncos infernais para expulsar os aviões que lhe vinham invadir o sono. Por seu lado, Martinho, o velho, passava uma parte do tempo entre parênteses, ou seja, fechado muito com ele nos auscultadores que lhe davam música para esquecer o só Deus sabe que lhe estaria reservado. Volta não volta, os dois, para desentorpecer, metiam-se em tropelias de conversa com gargalhadas à mistura e em momentos especialíssimos Martinho punha-se a dissertar em voz pensada sobre as artes do bilhar.
Suponho que assentara naquele tema por explorar um bar de snookers na Nazaré e o snooker não lhe merecer particular consideração. Segundo ele, o snooker era bilhar de cavalgada americana (vinte e uma bolas à procura dum buraco) e se o escolhera para ramo de negócio a culpa cabia ao triste gosto do público da Nazaré, essa praia de calçudos. Para ele, bilhar, o que se diz bilhar, só o francês e mais nenhum. Aí é que sim. Aí, com três bolas em sujeito, predicado e complemento, o artista de mão de seda traçava uma oratória geométrica em cima do pano verde que era um pasmo de se ver.
Só tive conhecimento deste discurso no dia da minha despedida, mas pelo ar enfastiado com que o empreiteiro Ramires o ouviu depreendi que não tinha sido novidade para ele. Para mim foi, e de certo modo tomei-o como um adeus que o velho me endereçava. Eu partia, sorte minha, ele ficava. Mas pelo sim e pelo não, queria que eu levasse comigo uma imagem apropriada da sua pessoa. A dissertar numa cama de hospital em carambolas à meia volta, efeitos na conta certa, massés e tabelas de preciosidade, o velho era como se pairasse longe dali e da morte, presidindo a uma constelação de estrelas loucas a rolarem em céu aberto.
Últimos preparativos para a partida. Papéis da secretaria para assinar; eu, de gravata e gabardina, à espera da Edite. Mas era cedo, continuava a ser cedo. Ia ao corredor, espreitava à janela o arvoredo do hospital, lia a linhas soltas um semanário desportivo diante dos meus companheiros que se manteriam, não tinha dúvida, de olhos bem abertos até à minha despedida. Martinho desligara o walkman, Ramires não dizia palavra. Eu verificava a mala, olhava o relógio. Lá fora estava uma manha luminosa.
No quarto um silêncio em suspenso.


Pronto. Cá vou eu, Lisboa ao sol, cá vou eu, e agora, passados meses, já sentado diante destas folhas de papel, redijo-me em capítulo de liberdade a atravessar a capital com a Edite ao volante. Escrevo: é um meio-dia de inverno.
Só que enquanto escrevo tenho chuva na janela à minha esquerda e isso obriga-me a acrescentar que o meio-dia que estou a rememorar era (foi) um rasgão de céu e de luz numa estação sombria. Regressava a casa em saudação de primavera em pleno mês de Janeiro. Para trás ficava a pesada babilónia do Hospital de Santa Maria onde àquela hora estaria um cirurgião rodeado de toda a sua equipa a reconstruir o cérebro de alguém suspenso entre a terra e o céu. Ponho-lhe música de fundo, uma música burlesca, se possível, como o «Quarteto das Dissonâncias» de Mozart. Música, porque não? No renascer de cada vida a música é um privilégio abençoado, já lá dizia o empreiteiro Ramires por outras palavras. E por Ramires, lembro-me da tarde em que o companheiro dele, recostado na cama, se saiu com esta para o informar devidamente:
«Amigo Ramires, amigo Ramires, o amigo anda para aí todo seguro do seu Professor mas sabe o que é que alguns hospitais fazem agora?»
(Suspensão. Ramires de olhos no tecto, à espera.)
«Fazem», recomeçou Martinho, «uma manigância que nem você nem o mais astuto é capaz de desmaranhar. Levam-no para a sala das operações, está a compreender, mostram-lhe um cirurgião de primeiríssima, põem-lhe música se for caso disso, música para eles é um abelhar para entontecer, depois atiram-lhe com um anestesista para cima, picadela, coisa e tal, e assim que o amigo fica a ressonar em ponto morto, em vez do propriamente cirurgião entregam-no a um velhadas de prateleira ou a um doutorzeco qualquer que ande por aí aos caídos. Topou?»
Eu pela minha parte apreciei o aviso, aprecio, quero eu dizer, e parece que ainda estou a ver o nojo impassível com que Ramires ouviu aquele cantar de velhaco, salvo seja. Ouviu, deixou pousar, e como resposta ao maldizente, convidou-me em voz alta e bem sonante para uma festa de lagosta, ostras bravas e champanhe francês que andava a estudar com todos os pormenores para o dia em que se visse livre daquele estaleiro de entrevados, disse ele.
Dois anos. Já dois anos sobre isto e só hoje é que dou por encerrada para sempre a minha viagem à desmemória, arquivando-a nestes apontamentos escritos à deriva por indícios trazidos na corrente. Vou interrogando e retendo, apurando a caligrafia da recomposição, e quando chego ao convite do meu companheiro de hospital para uma celebração de lagosta com champanhe, não hesito em fechar e pôr assinatura no texto. Disse e vivi, Acta est fabula.
Como despedida, a festa anunciada parece-me uma vinheta condigna mas, se me é permitido, acrescento-lhe um fio de música.

Janeiro de 1997


[1] A única não. A hipótese de loucura, por exemplo, foi outro episódio de que guardo uma lembrança objectiva.

terça-feira, 30 de outubro de 2012

De Profundis, Valsa Lenta [7]

“Para que o assombro da doença dure sempre
em coisa da memória te mudei”



Abrindo caminho por entre ditos e gargalhadas, chega a Edite com as nossas filhas. Vêm iluminadas, felizes, e depois delas a neurologista do relógio da correia bordada que traz um sorriso a condizer com a sua sobriedade natural.
Quando ela sai do quarto passamos ao corredor. Alguém me dá os parabéns como se tivesse sido eu o autor deste triunfo e um psiquiatra meu amigo expõe o fundamental da recuperação, surpreendente, surpreendente, repetiu ele, que me tinha acontecido. Ouvindo-o, penso no cérebro como o atlas vivo das grandes marchas do homem. Uma massa luminosa capaz de abranger os infinitos da mais impossível grandeza, do maior sempre maior ao mais ínfimo dos mais ínfimos, mas que se revolve ou se retém a um minúsculo sopro de pó; que se descodifica e resta neutro, terminado; que se recompõe e nos torna de novo vivos a um traço calculado da ciência.
Sinto-me tomado de gratidão. Isto de alguém se recomeçar assim depois de nulo é algo que deslumbra e ultrapassa.
Nessa noite fui acordar com um desfile de vozes femininas na escuridão do corredor. Enfermeiras? Cantavam Forever (uma canção que eu conhecera há muitos anos) como se viessem no rescaldo duma festa para entrarem no turno de serviço, pensei eu. Era uma procissão nocturna murmurada em inglês, um quase ritual que me fazia duvidar da minha recuperação. Delírio? A tal marcha para a loucura que me viera à cabeça no corredor dos passos perdidos? De ouvidos no escuro fiquei à espera que tudo acabasse. Acabou. O coro amorteceu como se fosse a afastar-se e por fim veio o silêncio. Na janela uma cortina de inverno em chuva miudinha.
Mas há o roncar dum avião a rasgar a noite, um resfolegar poderoso a caminho do aeroporto. E como se obedecesse a uma ordem, na cama à minha esquerda o empreiteiro Ramires começa a ressonar em crescendo, acompanhando a marcha do aparelho. Estremece em vibrações, aumenta o som à medida que o sente aproximar-se, aumenta mais e mais, e quando o tem mesmo por cima do hospital lança-lhe um trovejar de rugidos que abala o quarto de alto a baixo; inversamente, começa depois a baixar o tom, gradual, gradualmente, até o avião desaparecer do mapa da noite. Só então se dá por satisfeito e recolhe ao respirar compassado do sono.
No escuro, junto a dois homens adormecidos, tento ver para trás do meridiano da morte que acabei de dobrar esta manhã mas só encontro névoa luminosa. Dentro de uma ou duas horas, com as recordações da Edite e dos amigos em visita, vou continuar o reconhecimento da geografia sonâmbula por onde naveguei e que não era mais do que uma transfiguração do universo do meu quarto e de uns tantos passas à margem dele. Serão, rapaz, os teus últimos passeios do exílio, dai em diante saúde e baile é que é preciso.
Mas o corredor das portas abertas e das camas a meio sono deixou de ser a estrada sem limites que eu percorria nos cegos tempos. A sua brancura já não é de vazio e solidão nem de extensões de luz fria. Pelo contrário, é quase íntima, hospitalar, e, ponto importante, exibe doentes a desfilarem em parada de toilettes. Três ou quatro, não mais, e todos os dias os mesmos.
Olho-os. Passam por mim roupões acabados de estrear, chinelas de aconchegar sossegos; à saída duma porta, um infeliz de perna arrastada compõe o seu burguês casaco de quarto com alamares; mais adiante outro internado avança em rode com monograma e lenço de seda ao pescoço mas por razoes que só a ele dizem respeito calça luvas de lã grosseiríssima; outro ainda, um tipo enorme de cabelo grisalho, mostra-se de peito aberto num quimono de judoca e calções colados à coxa, exibindo umas pernas ilustradas por adesivos que cobrem enxertos de artérias ou algo assim. Brilhos de presença e uniforme: desejo de sobreposição ao anonimato ou à marginalizarão para que nos empurra a doença?
Numa porta volto a dar com o letreiro BANHOS que me perseguiu até à obsessão sob a máscara bizantina de ƂAИHOϨ e que é uma das raras imagens que me ficaram do tempo cego.
Do tempo nulo. Ou passivo. Como se queira.
De quando em quando vou até ao quarto e lá está o amigo Martinho de auscultadores nos ouvidos a receber a música que lhe vem debaixo dos lençóis e a magicar lucubrações. Na cama em frente o companheiro Ramires permanece de olhos fechados, agarrado ao braço inerte. Ou dorme ou são as dores de cabeça que o obrigam a estar naquela postura; mas se dorme, é garantido que logo que um boeing ou um airbus apareça no firmamento não deixará de dar o alarme, desatando a ressonar em crescendo. «O ressonar do avião», chama Martinho a esse estrondoso toque de peito que, por razões imponderáveis, é menos desvairado nos sonos de dia do que de noite.
Mas também pode acontecer que, quando mudo e de pálpebra tombada, o nosso Ramires esteja apenas fechado em pensamentos e se assim for, entre ele e o da outra cama não tardará a recomeçar o costumado baile das malícias:
“Ou muito me engano ou é amanhá que o Professor me vai marcar a operação.” (Ramires abrindo os olhos, com o ar de quem saiu duma meditação devidamente meditada.)
Sorriso de Martinho: «Operação com música ou sem música?» Nenhuma resposta do lado de lá; e o Martinho outra vez: «Pois eu, amigo Ramires, a noite passada sonhei que o doutor me estava a tirar a tampa do intrínseco.»
«Doutor? Qual doutor?» (Ramires.)
«Um qualquer, não interessa. Sonhei que ele me estava a descifrar de tampa aberta e que do meio dos miolos me saiu uma data de borboletas.»
«De vespas, quer você dizer.» (Ramires, rindo baixinho.)
E Martinho: «Ou isso. Realmente, antes vespas porque as borboletas são muito atreitas às flores de cemitério. (Riso). Na Primavera, bem entendido[1]
Ramires: «Eu cá não sonho. Tenho a consciência tranquila, compreende?»
Martinho: «Sonhar não é fácil.»
Ramires: «Ah, pois não.» Faz-se desinteressado; e de repente: «Diga-me uma coisa», agarra o braço paralítico, puxa-o mais para si, «uma coisa, amigo Martinho: o amigo lá no sonho sabia quem era o doutor que lhe estava a tirar a tampa? Sim, o operador, o cirurgião. Sabia? Claro que não sabia, o azar é esse. E quem não sabe, é garantido: acorda com uma coroa de flores e uma data de borboletas ao de cima.»
«Com vespas, amigo Ramires. Peço desculpa mas eram vespas.»
«Vespas ou borboletas vem tudo a dar no mesmo. Eu, ao menos se alguma vez sonhasse que me estavam a tirar a tampa havia mas era de me sair um anjinho de asas brancas a tocar corneta pela pauta.»
Gargalhada pronta do Martinho: «Pois é. E atrás do anjinho ia você a caminho do Pai do Céu sem o Professor lhe dizer adeus.»
Comerciante de muito traquejo no ramo de bar e bilhares, Martinho lançou a carambola e deu o assunto por arrumado, tornando a emparedar-se entre os auscultadores para ouvir uma música muito sua.
Nisto entrou uma enfermeira que se pôs às voltas pelo quarto, o termómetro, onde estava o termómetro, perguntava ela, nenhum dos senhores ali presentes tinha visto o termómetro? Martinho levantou um dos auscultadores: «O termómetro? Deve andar por aí.» E o construtor Ramires, de olhos fechados: «Se calhar derreteu-se com a febre.»
A enfermeira não só já se tinha habituado aos entremezes daquele par de corvos como fazia por lhes copiar o tom nos dias de boas marés. “Machista”, chamara ela ainda há pouco ao desgraçado do Martinho que na ocasião parecia uma caveira deposta sobre a almofada porque tinha tirado a dentadura. «Machista é que o senhor é, fique sabendo.» E com esta deixara-o de boca às moscas porque machista devia ser uma palavra que não lhe constava lá muito bem.



[1] Primavera-dos-cemitérios: mariposas, mariposas, pétalas a adejar por cima de campas ao sol. Ao redigir este diálogo, lembrei-me da «mariposa-caveira» (Acherontea antropos, L.) que os mexicanos adoptaram como figurante das profissões de Carnaval,

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

De Profundis, Valsa Lenta [6]


“A notícia da minha morte foi um exagero.”
Mark Twain em telegrama à Associated Press



Até que certa manhã acordo em claridade aberta com gargalhadas a creditarem à minha volta. Dum momento para o outro, o sentido de presença. E tudo concreto, tudo vivo. O quarto: para lá da janela, o palácio de cristais dourados (que era o Hotel Penta, quem diria) e à minha frente dois vultos que me faziam companhia a desafiarem-se à gargalhada de cama para cama, um deles com um braço paralisado ao longo do corpo, o outro um velho de auscultadores ao pescoço, com um walkman debaixo do lençol. Cada qual a rir, a rir, e a acenar com um lagarto de plástico que soltava uma língua em tremular de labareda.
Acredite-se ou não, naquele quarto estavam dois candidatos à morte no maior dos carnavais. Dois passardes arruinados, pelo menos quanto ao aspecto. E eu, no meio de tanto riso, descobri (sem espanto, sem assombro, custa a crer) que acabara de me libertar duma doença mais que maldita, duma cegueira ou dum apagamento por onde andara sem norte e sem dias e que numa viragem sem aviso pessoas e luz, palavras e matéria, tudo tinha voltado à realidade. Existência palpável, o mundo deixara de ser anónimo. Agora o roupão e os meus óculos apresentavam-se como evidências familiares e até o lugar onde eu me encontrava parecia circunstancial. Um tanto ao acaso, avancei para o lavatório e ao aproximar-me reconheci-me no espelho: Eu. Eu, saído da névoa, a ir ao encontro de mim na superfície dum vidro emoldurado e com a sensação ou com a certeza (ah sim, com a certeza, a mais que certeza) de que encontrara a memória. Incrível, a memória tinha reaparecido, o coágulo de sangue, esse selo que me estrangulara o cérebro, diluíra-se no segredo do corpo e eis-me livre, renascido, diante de dois estranhos que não paravam de improvisar malícias entre si.
Dois passarões arruinados. Quanto mais os ouço mais os vejo nessa figura. Em regime rigoroso aguardavam que lhes fosse marcada a hora de serem operados ao cérebro («tirar a tampa» ou «arejar a mioleira», como eles diziam), um assunto em que o do braço caído se mostrava confiante e quase com vaidade. Estava destinado ao Professor A («destinado», a expressão dele era essa) e na realidade o prestigio científico daquele neurocirurgião representava um privilégio e uma garantia que o doente não se cansava de proclamar diante do seu companheiro dos auscultadores.
O que o inquietava era que o professor não lhe aparecia, andava por congressos ou por aulas magnas e quem sabe se àquela hora não estaria, rodeado de toda a sua equipa, a operar uma alma desentendida ao som de marchas militares. Marchas militares, porque não? E quem dizia marchas militares, dizia sonatas ou grandes sinfonias, um cirurgião de toda a autoridade tinha direito aos seus caprichos, esclarecia o meu vizinho do braço esquecido. Ramires de seu nome e construtor civil apessoado, dispunha de relações nos hospitais e na classe médica e afirmava-se ao corrente de tudo e mais alguma coisa que respeitasse ao Professor. Contava-o e sublinhava-o numa toada a anuviar para o lendário, e eu, de retorno ao mundo dos vivos, ouvia-o com prazer.
Mas mais do que eu ouvia-o o doente da outra cama que ignorava quais as mãozinhas que lhe iriam trabalhar o cérebro. Caso para saber se o entregariam a um remendão de palpites azarentos, ninguém estava livre disso, ou a um cirurgião acabado de sair das fraldas, uma vez que sem sacrificados não há principiante que chegue a bem sucedido. E uma doutora? Também era capaz de haver gente dessa, doutoras de esquartejar. Nos tempos que corriam as mulheres não tinham regra nem bandeira, embora estivesse mais que provado que doutoras a cortar e a coser só na costura de alinhavos, ou não seria assim? «Não se preocupe, amigo Martinho», sossegava-o o outro a transbordar de generosidade, «isto da mioleira é só renda aos labirintos e para de lá sair o melhor doutor não faz mais que fechar os olhos e seja o que Deus quiser.» E o Martinho: «Estou a ver, estou a ver. Um bom sacaninha é que você me saiu, amigo Ramires.»
E riam a bandeiras despregadas, cada qual nos seus lençóis do medo.
Pelo que vim a saber, este Martinho era comerciante na Nazaré. Velho e sem família que se lhe conhecesse, explorava uma casa de bar e snooker que tinha bem à vista, contou ele, o aviso de

PROIBIDA A ENTRADA A MENORES
OU A ADULTOS AO COLO

domingo, 28 de outubro de 2012

De Profundis, Valsa Lenta [5]

“Na véspera de não partir nunca...”


Há pouco, ao transcrever aquela frase do Hemingway, lembrei-me de mim a tropeçar no meu nome quando, depois de ter sido desligado do soro, me passeava no corredor como numa galeria sem história. Evadido do quarto e dos dois vultos de gaiola que saltitavam palavras mudas um para o outro como se fossem sopros de fumo, deslizava por entre portas e paredes duma brancura macia.
Andava por ali, transposto para qualquer Alguém de mim num território satélite sem vida. Ainda que árida, a atmosfera era leve e luminosa e eu transitava pelas pessoas com um longo olhar sem rumo. Um animal a planar dentro duma redoma de vidro, é como me imagino naquela altura.
Nesse período, já o disse, as palavras que me chegavam vinham cegas. Sombras não havia nem podia haver numa claridade tão absorvente (só hoje enquanto escrevo
é que me dou conta disso) não havia sombras não podia haver a não ser a do Outro que andava por lá Outro que afinal não era mais que uma sombra saída de algures de mim e a desfocar-se por si só não se sabe em que direcção nem com que objectivo
uma sombra branca corrida no branco
como foi que desse apagamento consegui reter alguma luzinha a brilhar até agora é coisa que ainda estou para entender mas retive retive mesmo? retive – melhor assim.
Verdade, melhor assim.
Paredes mansas, as tais paredes em alvura-pérola; por entre elas, os sons, as figuras e o tempo, tudo num deslizar suave, sem densidade. Eu, em pessoa de coisíssima nenhuma, cumpria as tardes de hospital num vaguear inocente. Mesmo assim, aconteceu saltar-me ao caminho o meu nome. Saltou-me poucas vezes é certo, três ou quatro se tanto, mas era um nome que andava a monte repetido e desfigurado nos ficheiros da terapia da fala um nome a acenar-me a acenar-me
José                José                 José
numa espécie de provocação à distancia José que nome tão feio considerava eu.
«Feio». No vocabulário das trevas brancas o meu qualificativo-chave era esse e provavelmente só utilizado na refutação dos nomes das pessoas. Estava longe de adivinhar que, ao voltar um dia à comunidade dos vivos, iria ouvir o mesmo comentário da boca dum herói de Wim Wenders no filme Lisbon Story. O mesmo, sem tirar nem pôr. Com o mesmo sujeito e com a mesma frase, até. Viajante exótico no exótico duma cidade de que desconhecia em absoluto a língua, o passado e o presente (como me acontecera a mim no enquadramento para onde a doença me tinha atirado), o personagem de Wenders pretendia descobrir uma cidade de gente através de sons e só de sons, desabonados de quaisquer referências culturais (sons ausentes de memória, diria eu).
Uma sofisticação ociosa, essa de se querer reduzir a comunicação entre humanos a uma essencialidade tão artificiosamente concebida. Seria, mas Wenders tentou. Deve ter ficado tão encantado com a ideia que não perdeu tempo em enviar um viajante de microfone em punho à cidade de Ulissipo para a descobrir em metáfora num amontoado de palavras sem alma.
Mas aconteceu que ao longo das suas gravações o homem de Wenders deparou com alguém a pronunciar a palavra José. E achou insólito: José? Compreendeu que se tratava dum nome próprio, mas não conseguia mais do que classificá-lo como um articular de sílabas pobres. «Que nome tão feio», comentou de frente para a câmara. Textualmente como eu me tinha comentado a mim próprio no Hospital de Santa Maria.
Adiante. Corredor para a frente, corredor para trás, o Outro que se desdobrou de mim comporta-se naquele planeta como um figurante gratuito que o destino acrescentou à paisagem. Continuo a recordá-lo
não tem hora nem lugar é a impressão que dá
uma afabilidade incolor no trato com os médicos e com as enfermeiras que o acompanham
e calmo sempre calmo praticamente sem palavras mas de quando em quando com a luz discreta dum meio sorriso para manifestar presença ou como uma deferência para com as pessoas com quem se cruza.
Atenção aqui, atenção, porque alguém o viu pegar num jornal e ficar com ele dependurado sem o abrir. Dizem que ficou a observar durante alguns segundos uma fotografia de Cavaco Silva na primeira página e que passou
passou-se está impossibilitado de ler impossibilitado mas não se perturba
segue por cima.
Por vezes vamos encontrá-lo diante dum televisor onde as imagens lhe aparecem sem conotações umas com as outras num discurso conflituoso. Sei desse desenrolar confuso ou julgo que sei. E também sei que ele recebia as vozes como ecos desligados das pessoas, a menos que essa, como outras rememorações, não passe duma «visão auditiva» que eu tivesse construído no limbo da pós-libertação da morte branca.
Jogo dos ecos, nesse caso. Falsa visam.
Seria?
Pausa agora no inverno, sol ameno. Por cima do arvoredo do hospital há um palácio de cristais dourados um palácio não exagero vê-se da janela do quarto e eu fixo-o com interesse
ele também mas passado um segundo
já o perdeu apesar de continuar a olhá-lo. Esta figuração cintilante repete-se a qualquer momento em que se aproxime da janela mas assim que se afastar é como se tivesse abandonado uma vidraça deserta.
Andar andar sempre a andar. Internamento de Neurologia,
cama janela lavabos corredor
corredor para a frente corredor para trás de cada lado só vê quartos de porta aberta com camas a meio sono
em determinado recanto estão sentados três ou quatro doentes num banco. Em roupão (sempre os mesmos?) e de frente para a entrada dum elevador que nunca chega. Na postura impassível de personagens que se ignoram entre si
parecem estar a aguardar a partida para uma viagem confidencial.
Passos. Os passos dele: perdidos. Para a frente e para trás, perdidos. O costume. Se voltar ao televisor, os doentes que irá encontrar diante do écrã estarão todos sem rosto ou é como se estivessem porque os esquecerá assim que os tocar com o olhar
se é que os toca.
O mesmo lhe acontece com os dois companheiros de quarto entregues aos seus diálogos de vultos.
Prossigo o inventário. Por cima duma porta não sei onde havia um letreiro que me obrigava a um soletrar intrigado: ƂAИHOϨ. Aquilo parecia-me uma grafia cirílica. Alfabeto eslavo?
Cada vez que passava por lá com a Edite apontava-o sem mais nada e ela, já sem levantar os olhos, respondia BANHOS. Então sim, eu conseguia ler e reconhecia a palavra.
BANHOS. Era isso devia ser isso mas imediatamente revertia à forma inicial ƂAИHOϨ ƂAИHOϨ ƂAИHOϨ de tanto o estudar a sós e de o saber impossível o letreiro fez com que me interrogasse
sem exactidão de consciência é certo sem sobressalto
mas a interrogar-me
se não estaria a caminhar para a loucura.
Inacreditável. Eu, o Outro de mim, em viagem de passas perdidos e a interrogar-me se não estaria a caminhar para a loucura. E o caso é que, desconcertante ou não, a pergunta aconteceu. E para maior surpresa, não a esqueci. Loucura, caminho para a loucura, a questão chegou-me com uma insistência passadeira mas no estado em que me encontrava o que seria para mim a loucura? Como é que eu, impessoal e tão a esmo, me tinha lembrado de tal coisa a propósito dum letreiro? Pensando-a a esta distância, admito que essa perturbação se possa dever a um eco da minha identidade do passado: ao enfrentar aquele letreiro como uma provocação da leitura e da escrita era o ex-autor de livros que estremecia na cegueira em que tinha mergulhado e que tirava do fundo da sua razão perdida o esboço duma interrogação à loucura. Seria?

sábado, 27 de outubro de 2012

De Profundis, Valsa Lenta [4]

Demoro-me um pouco sobre as fotocópias da caligrafia desse homem nos testes da fala e da escrita que tenho à minha frente. São um desfiar de caracteres cuneiformes traçados a desdém que ele nem se deve ter dado ao trabalho de olhar. Dessa caligrafia enlouquecida só nas últimas provas é que a assinatura tem alguma aproximação com a que me era verdadeira; nas outras mostra-se cerrada, apenas o J se mantém reconhecível. O J de José. A letra menos espontânea da minha identificação.
Sem nome e sem assinatura este que eu sou entre paredes dum hospital encontra-se numa paisagem anónima com gente anónima (o pessoal, os visitantes). Sem nome, vejam só. E contudo, «os nomes penetram-nos até aos ossos», afirmava Hemingway, esse viajante das mortes, em The Garden of Eden. Simplesmente, no meu homem sem memória tanto o nome que lhe pertencera como o das personagens que lhe cobriram a existência tinham enquistado e desfizeram-se em pó. Apesar disso, uma vez por outra ainda dava mostras de procurar recuperá-los:
«Eu tenho filhos, não tenho?» pergunta ele à Edite. (Eu. Uma vez mais o sujeito solitário, repare-se.) «Como é que eles se chamam?»
«Temos duas filhas. A Ana e a Rita», responde ela.
«Rua?»
«Não. Rita», diz a Edite.
E ele: «Pois, Rua.» (Pensava ter dito Rita, é evidente.) «Então e o António Nuno?»
Edite: «O António Nuno era teu irmão, morreu há muito tempo. Nós, além das filhas, temos dois netos.»
Ele: «Pois, dois netos. Como é que eles se chamam?»
Edite: «Joana e Rui.»
Ele: «Rui. Que nome tão feio.»
Os nomes. A preocupação de se reconhecer vivo, identificando-se pela identificação dos outros. Durante a travessia das trevas brancas os diálogos com a Edite foram em grande parte uma busca de referências, um inquérito em total inconsciência na tentativa de se recapitular para voltar a ser indivíduo com passado. A família e os visitantes que lhe apareciam quem eram? Donde vinham e que ligações tinham com ele? O pior é que rarissimamente se preocupava em os situar na sua vida (tinha aceitado que não era capaz, foi a impressão com que eu fiquei até hoje) e, quando muito, punha-se a olhá-los sem os ver.
Ali o tenho, anulado e discreto. Ali me tenho, com a Edite à cabeceira. No quarto onde o arrumaram há os tais dois vultos a comunicarem de cama para cama, duas sombras falantes, se bem que as sombras mesmo que falem nunca têm voz. De modo que permanece deserto e sem sobressaltas, a dias vagos e sonos limpos. Está à mercê dum coágulo que lhe trava a circulação do cérebro e anuncia um fim assustador mas ele desconhece isso, não pressente sequer. Está distante, está longe. Que longe, meu Deus, pensará a Edite.
De resto, a desmemória não só o isolou da realidade objectiva como o destituiu, pode dizer-se, de sentimentos. Perdeu os estímulos de aproximação porque, sem a consciência da identidade que nos posiciona e nos define num framework de experiências e de valores, ninguém pode ser sensível à valia humana do semelhante. As suas virtudes ou os seus males só podem ser reconhecidos como significantes sentimentais em contraponto com a consciência da nossa identidade, isto é, com a tradição da comunicação que praticamos com a sociedade e com a nossa memória cultural. A ele tal coisa estava-lhe vedada, memória onde tu já ias. Daí a total indiferença em que navegava à tona das comoções e dos afectos, uma indiferença extrema que, sucedesse o que sucedesse, não o levava a perturbar nem ao de leve a disciplina ambiente. Na verdade, não sabia de todo onde se encontrava, a razão era essa.
Atentem, atentem nele: chegam amigos a visitá-lo mas ficam-lhe no limiar da recordação. Pelo desfocar da vista, por certas expressões evasivas ou por certas insensibilidades, percebe-se que não é capaz de os localizar com clareza. A um deles, sei eu que lhe viu os olhos toldados de lágrimas e que teve um impensável vislumbre de estranheza, o que era aquilo, parecia perguntar – mas frio, terrivelmente frio.

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

De Profundis, Valsa Lenta [3]

“Já não sou eu, mas outro que
mal acaba de começar”

Samuel Beckett


 Brancura hospitalar, murmurada e sonâmbula, está aqui. Uma atmosfera de quietude sulcada por palavras sem rasto. O universo para onde desertou esse Outro que eu acompanhei com as esvaídas recordações que trouxe dele ou com os relatos da minha mulher e dos amigos que me visitaram era assim.
Da mesa onde agora estou a escrever, sigo-me nesse discurso. Ou, antes, sigo-o a Ele desde que entrou, lado a lado com a Edite, na recepção do hospital onde o esperava um médico das nossas relações. Suponho que o reconheceu. Reconheceu-o com certeza mas provavelmente só de figura, isolado de qualquer contexto. Ou não? «Sabe quem eu sou?», perguntou-lhe o médico. «Sei», foi a resposta, «não me lembro é do nome.»
Dito isto, nem mais uma palavra. Subida ao Calvário num elevador carregado de macas com doentes de olhos fechados (foi a imagem que eu fixei) e lá muito no alto, muito no fim, uma voz de óculos cintilantes numa primeira observação: «O mais provável é ter de ficar internado.»
E logo Ele muito rápido: «Internado, não.» (Ai já se deixa ver que era ainda um último resto de mim que protestava.)
Desse momento em diante vi-o, de corredor em corredor, a ser conduzido aos puzzles da tecnologia clínica, chapa a chapa, registo a registo, análises, electrocardiografias, exames da fala e da escrita, um TAC, uma inspecção às carótidas, mas o que é que eu estou a fazer aqui, perguntava ele quando o deixavam sozinho com a mulher.
Se nessa altura ainda falava com clareza ou se já tinha começado a desmantelar as palavras com o silabar consonântico que toda a gente fingia ignorar, não sei, não posso dizer. Mas por intuição ou pelo quer que fosse ele devia ter alguma percepção dessa afasia porque muitas vezes cortava a frase ou parava de se exprimir, fazendo um gesto de desistência com um sorriso de resignação. Deixem, não vale a pena, era o que aquilo significava. Dava a ideia de que por enquanto sabia o que pretendia comunicar mas que já não comandava as palavras.
Continuo a segui-lo. A princípio houve uma ou outra situação em que nos confundimos e fomos um só. Situações raríssimas, devo acrescentar, breves clarões de consciência. Mas em menos de nada já ele se tinha perdido de mim e ia, hospital fora, a arrastar uma névoa.
O relatório neurológico foi terminante: acidente vascular cerebral de gravidade muito acentuada, um coágulo de sangue que tinha subido (do coração?) até à zona nobre do cérebro, bloqueando duramente a artéria. Não era um problema hemorrágico, antes fosse, e por isso não havia o recurso à cirurgia com largas perspectivas de solução, explicou à Edite um especialista do Serviço de Neurologia. Assim, acrescentou ele, a situação apresentava-se bastante difícil, um caso de isquemia com recuperação lenta e frequentemente incompleta. Do ponto de vista motor nada que justificasse preocupações, o doente bastava-se a si próprio. Mas o centro da fala e da escrita estava profundamente afectado e podia conduzir a uma sobrevivência em incomunicabilidade total.
Incomunicabilidade, pois. Incomunicabilidade total. Nem voz nem escrita e nem leitura tão-pouco. Morte cerebral, foi com esta expressão que a Agência Lusa passou a notícia à imprensa para o outro lado dos muros do Hospital de Santa Maria. Morte branca, aponto eu ao alto desta página em que estou a reconstituir passo a passo esse Outro que, de mão na mão com a Edite, se encaminha para o quarto onde vai ser internado.
Vai sem ver, percebe-se. Vai, foi. Seguiu. E quando lá chegou não sei se já estava entregue por inteiro à sem-vontade que o alheava do que acontecia nele e à volta dele, não sei, não faço ideia. Mas, estivesse ou não estivesse, no quarto que lhe tinham destinado havia dois vultos a espiá-lo em duas camas. Viam-no também sob lençóis mas de rosto ao alto e a sorrir. A sorrir? Seria um traço pálido na palidez geral que se supôs dirigido à enfermeira que o estava a ligar ao soro, embora não a olhasse sequer. Ou um sorriso para com ele e mais ninguém, outra hipótese. De qualquer maneira estava imóvel e a sorrir, imagine-se. Assim o viam os dois doentes com quem ele ia ficar e assim o estou eu a descrever, passados dois anos sobre essa hora: branco, branco, em luz gelada e com a mulher à cabeceira a segurar-lhe a mão. Preso a ela mas todo voltado para a distância.
Assim, também, o foi encontrar uma jovem médica que o veio observar com as primeiras perguntas no tom de quem vem de recado pensado.
Perguntas a aviar, é bom que se diga, pelo menos foi o que lhe pareceu a ele uma abordagem daquelas, e como tal, com respostas prontas é que a devia despachar. Estropiadas ou não, respostas prontas e o rosto eternamente apontado para uma vastidão qualquer. Seria realmente uma vastidão, um espaço ermo, para onde ele olhava? Pouco importa. Horizonte, interrogação ou nada, era nessa direcção que ele estava a responder ao exame e infelizmente com o descaso e a irresponsabilidade que eram de prever, parecia anotar a médica pela maneira de o escutar, pelo insólito dos desacertos com que ele correspondia ao diagnóstico que lhe tinha sido atribuído, confirmava a médica com o silêncio do olhar, claro, tudo certo, tudo conforme, «Agora», despediu-se ela, «o que é preciso é pôr-se bom depressa para voltar a escrever. De acordo?»
Escrever?
O que restaria de mim no homem que ficou para ali estendido à espera de coisa nenhuma?
Deve ser uma abstracção nebulosa estar-se assim, numa ilha de náufragos, preso ao soro que nos chega por um fio ligado a uma hipótese de vida. Três náufragos ao todo: não esquecer que naquele quarto há ainda dois vultos tão nulos que os toma como ausentes. Insisto nisto porque aos olhos dele essas criaturas devem ser duas sombras, pouco mais. Duas sombras espalmadas em dois leitos de hospital, a observá-lo para o decifrarem, saber de quem se trata, qual o seu porquê e o seu rumo. Uma dessas sombras durante a noite ronca estrepitosamente, mas o Outro que eu sou ali dará por isso? Se der, esquece.
Deixaram-no atrás duma janela sem paisagem, em tempo velado, oco. Quando menos espero descubro que alguém se aproxima dele com uma ficha de doente na mão. Outra médica. Fala-lhe com simpatia atenta, perguntas sobre perguntas. Aponta-lhe a chávena que está em cima da mesa-de-cabeceira: «Que é isto?» Pára. Espera, a olhá-lo. A seguir uma esferográfica: «E isto? E isto?», pergunta ainda, com uma chave ou outra coisa na mão.
Ele percebe que o estão a investigar, por mais anulado que se encontre não se considera tão à margem como isso. Percebe, não tenho dúvida (recordo essa minha reacção no primeiro interrogatório) mas o que ele ignora é que já não identifica os objectos que lhe apresentam: um lenço, um anel, a moeda tirada ao acaso do bolso da bata, na prática objectos mais que simples da circulação comum, e principalmente relógios, relógios de pulso, os ponteiros e a leitura das horas. Pois, relógios. O Outro de mim naturalmente que os conhece como peças, instrumentos, sem interior, sem razão, mas eu diria que só de vista porque os isolara de referências. Exactamente como lhe acontecia com as pessoas que outrora lhe tinham sido mais próximas.
Tempo depois, quando a família e os amigos me descreveram a passear de alma ausente pelo anoitecer da memória, é que eu soube como era desvairada a nomenclatura que ele atribuía aos objectos questionados ou àqueles que, de longe em longe, pretendia enunciar. «Simosos» (?), por exemplo, funcionava a vários significados. Tanto podia ser «gilete» como «óculos» ou «arrastadeira», dependia de qualquer indecisão de momento, quer-me parecer. «Cachimbo», uma peça que nunca na vida teve alguma coisa a ver comigo, tomou-a ele como sinónimo de «chinelas, chinelas de quarto». E, como estas, várias outras designações de sentido aleatório ou incapazes de ser traduzidas porque inclusivamente as pronunciava com distorções.
Se não o entendiam quando perguntava esquecia e passava adiante (remetia-se ao seu horizonte descambado). Mas quando era perguntado (nos exames iniciais da memória, é daí que me vem essa lembrança) entendia ou intuía que o estavam a experimentar em perspicácias ingénuas e com o seu quê de ridículo. Eram um estendal de desperdícios mais que vistos e sabidos, aqueles testes. Um jogo em faz-de-conta frustrado logo à partida, pensaria ele naquela altura e quem sabe se não sorriria tristemente por dentro. No fundo, essa atitude não era mais que a costumada desconfiança do doente em terreno de risco e de valores desconhecidos, a sempre prevenção contra a subestima ou a humilhação ao julgar-se avaliado por um teste primaríssimo em que colaborava, que remédio, com uma complacência resignada e até com uma sombra de ironia. Ironia, seria nisso que ele tentava compensar-se?
Determinadamente, não. Assumir a observação que pressupõe a ironia com a captação de sinais que ela requer não me parece fácil nas condições em que o meu Outro divagava. No entanto, muito para com ele e para comigo, houve pelo menos uma vez em que essa intenção teve lugar. Com alguma clareza – ou quase – e de tal modo que ainda hoje tenho como certo que mesmo num farrapo de indivíduo a despojar-se de memória (e portanto de imaginação) podem despontar por vezes fragmentos de ironia como instintos culturais, se assim lhes é possível chamar, que são resíduos do passado que ele apagou. Será uma ironia coitada, não digo que não, mas de qualquer modo uma ironia. Um esforço de resposta muito para ele, muito para se compensar da situação de desvantagem em que se pressente. Um esbracejar do seu lado crítico, direi agora, um esbracejar. Um iludir o caos da irreflexão.
A prova dum impulso de afirmação deste tipo está na minha resposta ao exercício que um dia me propôs a neurologista que dirigia o meu tratamento («Onze menos nove quantos são?») apresentando-lhe a primeira solução – engenhosa, pretendia eu – que me veio à cabeça: «Nada, senhora doutora. Qualquer coisa noves fora é nada.»
(O segredar da infância a assaltar-me numa brincadeira de tabuada, apetece-me anotar neste ponto da minha narração. Eu há anos, há séculos, na Escola Primária do Largo do Leão, em Lisboa, a declamar o «nove, noves fora, nada».)
Acrescento ao comentário que foi no decorrer desse interrogatório que fixei como uma marca pessoalíssima daquela médica a correia bordada a cores no relógio que ela usava.

Coimbra, 26 de Outubro de 1980

Cadaval, Miranda do Corvo, 26 de Outubro de 1980 – Mais um triste sinal dos tempos pátrios. Tantas vezes aqui vim em missão médica dar ânimo ao desespero e ajudar a nascer a esperança, e agora pareço um sonâmbulo a deambular por uma aldeia fantasma, deserta, comida de silvas. A escola lá está caiada ainda, inútil, com o mastro da bandeira nacional a apodrecer. A bica da fonte canta no largo como outrora, mas ingloriamente. Ninguém lhe bebe a frescura. E a capela desmorona-se em frente, numa melancolia dessacralizada que os santos reforçam no interior sombrio, abandonados pelos fiéis. Um palco ainda quente de todas as paixões humanas, e já arqueológico.

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

25 de Outubro de 1977

• Quanto mais os vejo e ouço, mais impelido me sinto a ficar só entregue aos meus pensamentos. E no entanto a solidão dói-me como um pecado inexpiável – e volto sempre a procurar companhia!
• Como é criadora, gloriosa e triunfal, ainda que por vezes cruel, implacável e até crapulosa, a vida e carreira de homens como Eugene O’Neill ou Tennessee Williams, para não mencionar, por exemplo, alguns russos! Quando as comparamos à de certos «génios» familiares, escassamente experientes e pouco produtivos, porque, não tendo vivido, pouco ou nada têm para contar e, no entanto, gozam da fácil glória dos prémios e dos elogios, dos jantares de homenagem, dos títulos honoríficos e até dos necrológios ultralaudatórios! Mesquinhos e pequeno-burgueses na vida e… na morte como se o culto da pessoa pudesse substituir o da Obra.
• O meu preclaro amigo A. Candeias (Prof. Biol. Fac. Ci. Univ. Lx.ª), depois de ter lido o meu ensaio «Quem Paga É o Bey de Tunis»[1] (in É Proibido Apontar) sobre o tratamento dado ao Português no mundo exterior (ele próprio já o expusera e com brilho) e em relação à literatura inglesa teve este comentário: «Mas você é patriota!» Ao que eu respondi logo: «Pois claro que sou!» Foi isto em 1946 ou 47.
Pois bem, trinta anos corridos, e por motivos idênticos (aqui o corpo de delito é As Harmonias do «Canelão»), já houve quem dissesse com ameaçadora gravidade: «Mas você NÃO é patriota!»
Por aqui se vê que não somos nós que mudamos: mas antes os conceitos e as conotações que mudam – não só com os tempos, mas com os ventos!
• Não sei se já notaram que a palavra «pacato» é o exacto anagrama de Pataco? Talvez isso ajude a explicar muita coisa…


[1] «Quem Paga É o Bey de Tunis» é o título da crónica publicada na Seara Nova de 26 de Outubro de 1946 (pp. 188-191). A crónica seria inserta pelo autor em É Proibido Apontar (1964) com o título «Há sempre Um Bey em Tunes». (N. do E.)

Coimbra, 25 de Outubro de 1980

Coimbra, 25 de Outubro de 1980 – Entrei no autocarro e, quando ia a comprar o bilhete, o cobrador mandou-me passar adiante. Obedeci e sentei-me, intrigado. O homem, se calhar, recebera de mim algum favor clínico e queria corresponder assim. O que eu não podia consentir de maneira nenhuma. E resolvi teimar. Só que, mal fiz menção de me erguer, alguém disse a meu lado:
– Hoje é o dia dos velhos...
E fiquei esclarecido.

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

De Profundis, Valsa Lenta [2]

“E agora, José?
[...] você marcha, José!
José, para onde?”

Carlos Drummond de Andrade



 Ainda hoje estou a ouvir aquele «é». Espantoso como bruscamente o meu eu se transformou ali noutro alguém, noutro personagem menos imediato e menos concreto.
Nesta introdução à perda de identidade que um transtorno do cérebro tinha acabado de desencadear, o que me parece desde logo implacável e irreversível é a precisão com que em tão rápido espaço de tempo fui desapossado das minhas relações com o mundo e comigo próprio. Como se acabasse de dar início a um processo de despersonalização, eu tinha-me transferido para um sujeito na terceira pessoa (Ele, ou o meu nome, é) que ainda por cima se tornava mais alheio e mais abstracto pela imprecisão parece que. Além disso, a circunstância de ter respondido à Edite com o apelido e não com o meu primeiro nome, o mais cúmplice entre marido e mulher e o único que nos era natural, é outro indício do distanciamento provocado pelo golpe de azar que me destituirá de memória e de passado.
Ele, o Outro. O outro de mim. Em menos de nada, já a Edite falava ao telefone com os médicos sobre esse alguém impessoal que eu estava a começar a ser. Ouvia-a do meio do hall em grande serenidade. Sabia, tenho essa ideia, que alguma coisa se estava a passar comigo, uma coisa oculta, activa, mas nessa altura já principiava a ouvir e a sentir só de passagem, sem registar. (Mesmo assim tinha algum conhecimento da ansiedade que me rodeava: «Isto não vai ser nada», creio ter dito à Sylvie quando a descobri no corredor, atenta aos telefonemas da Edite.)
Lembro-me de que essa manha foi invadida por um aguaceiro desalmado, ouvia-se uma chuva grossa e pesada lá fora mas deve ter sido passageira porque quando acabou a Edite ainda estava ao telefone. A partir de então tudo o que sei é que me pus ao espelho da casa de banho a barbear-me com a passividade de quem está a barbear um ausente – e foi ali.
Sim, foi ali. Tanto quanto é possível localizar-se uma fracção mais que secreta de vida, foi naquele lugar e naquele instante que eu, frente a frente com a minha imagem no espelho mas já desligado dela, me transferi para um Outro sem nome e sem memória e por consequência incapaz da menor relação passado-presente, de imagem-objecto, do eu com outro alguém ou do real com a visam que o abstracto contém. Ele. O mesmo que a mulher (Edite, chama-se ela mas nada garante que esse homem ainda lhe conheça o nome, que não a considere apenas um facto, uma presença) exacto, esse mesmo Ele, o tal que a Edite irá encontrar, não tarda muito, a pentear-se com uma escova de dentes antes de partirem de urgência para o Hospital de Santa Maria e o mesmo que, dias depois, uma enfermeira surpreenderá em igual operação ao espelho do lavatório do quarto.
Dias depois, quando?
Sem memória esvai-se o presente que simultaneamente já é passado morto. Perde-se a vida anterior. E a interior, bem entendido, porque sem referências do passado morrem os afectos e os laços sentimentais. E a noção do tempo que relaciona as imagens do passado e que lhes dá a luz e o tom que as datam e as tornam significantes, também isso. Verdade, também isso se perde porque a memória, aprendi por mim, é indispensável para que o tempo não só possa ser medido como sentido. Assim, ao ver o meu Outro eu a pentear-se com uma escova de dentes num quarto de hospital (conforme me contaram depois) pergunto-me quantas vezes lhe aconteceu aquilo e logo de instante vejo uma enfermeira a aparecer-lhe por trás e a trocar-lhe a escova pelo pente, sem um comentário, sem uma palavra sequer, pura e simplesmente na prática de quem executa uma rotina. E ele a obedecer-lhe sem a menor resistência, ele como que a cumprir a parte que lhe compete nessa rotina. «Sempre este jogo?», pergunto.
Talvez. É possível que a aceitação apática do erro se devesse à sua incapacidade mnemónica de relacionar – e portanto de questionar. Possível. Para ele, agora ou ontem tudo era outrora, mundo alheio ou como tal. E desinteresse. O constante e desinteressado desinteresse do homem desabitado de pessoas e de lugares, de tempo e de sentimentos.
Apatia, nesse caso? Nesta fase do processo admito que não se tratasse propriamente de apatia, os médicos é que poderão dizer. Que eu saiba, ele ao princípio sabia-se doente. Ou teria uma percepção limiar da impossibilidade de se conjugar com os outros, uma impossibilidade com a qual convivia numa aceitação natural. Recordo-me até de que ao observar uma coisa que lhe chamasse a atenção a punha instintivamente de parte porque tinha como certo que um segundo depois a iria esquecer.
Ouvir e perceber enquanto ouvia mas apagar prontamente, era o traçado em que ele se movia. Ouvir e apagar logo-logo. Apagar. E ver, ver também contava. Ver pessoas (figuras) através dum vidro mudo e perdê-las acto contínuo. Tudo sem angústia, como quem preenchesse o tempo numa serenidade terminal. Como quem, na desertificação que o invadia, fosse avançando para a morte cerebral num cenário de contornos indiferentes.
Nas Poesias de Drummond de Andrade que tenho acolá na estante, José marchava. Mas para onde, José?

terça-feira, 23 de outubro de 2012

De Profundis, Valsa Lenta [1]

“Quando perdeste o sonho e a certeza tornaste-te
desordem e fizeste-te nuvem”

Simónides de Kéos, Epitáfio nas Termónilas



Janeiro de 1995, quinta-feira. Em roupão e de cigarro apagado nos dedos, sentei-me à mesa do pequeno-almoço onde já estava a minha mulher com a Sylvie e o António que tinham chegado na véspera a Portugal. Acho que dei os bons-dias e que, embora calmo, trazia uma palidez de cera. Foi numa manhã cinzenta que nunca mais esquecerei, as pessoas a falarem não sei de quê e eu a correr a sala com o olhar, o chão, as paredes, o enorme plátano por trás da varanda. Parei na chávena de chá e fiquei. «Sinto-me mal, nunca me senti assim», murmurei numa fria tranquilidade.
Silêncio brusco. Eu e a chávena debaixo dos meus olhos. De repente viro-me para a minha mulher: «Como é que tu te chamas?»
Pausa. «Eu? Edite.» Nova pausa. «E tu?»
«Parece que é Cardoso Pires», respondi então.

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

22 de Outubro de 1977

Disse Einstein, que não era nenhum trouxa: «A maioria dos estúpidos é invencível e está garantida pelos tempos dos tempos: o terror que nos causa a sua tirania é porém atenuado pela inconsistência deles.»
«O que tem de ser tem muita força», diz o fatalista. Mas se eu, por mim, fizer também um bocado de força, hã, não conseguirei talvez impedi-lo? 

domingo, 21 de outubro de 2012

21 de Outubro de 1977

O Homem só é livre dentro desta medida: se aceitar apenas as responsabilidades da sua escolha, por via da chamada «consciência moral». Não temos outras! Se o não quisermos, ninguém no-las pode impor, nem pela força, nem mesmo pela fogueira: e ainda aqui, porque aceitámos sofrer e morrer pela nossa ideia: devemos então fazê-lo em alegria!
Entre as inúmeras coroas funerárias que acompanharam este «morto ilustre» à sua derradeira moradia, algum filósofo (malandro?) conseguiu insinuar uma com esta críptica inscrição a letras de ouro na fita de moiré roxo: «PÁTRIA INDITOSA QUE TAL FILHO TEVE!» Ninguém até hoje conseguiu interpretá-la. 

sábado, 20 de outubro de 2012

20 de Outubro de 1977

Quem boa sombra o cobre boa sesta dorme.
Literatura: uns fazem-na, outros vivem à custa dela. Parasitam-na!
A CiclopiCidade perdeu o mistério, o encanto e os segredos que para mim dantes tinha. Ou fui eu que me necrosei ou mumifiquei? 

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Óbidos, 19 de Outubro de 1980

Óbidos, 19 de Outubro de 1980 – Sabe bem passar algumas horas nestas terras bonitas e preservadas de Portugal. Tem-se a impressão de que estamos a viver no tempo sedimentado da pátria, em coerência intima com tudo o que nos rodeia – pessoas, ruas, casas, monumentos. Que, anonimamente, fazemos parte de um grande retábulo mágico, onde os figurantes se movem sem alterar a composição.

19 de Outubro de 1977

O que importa não é que tu escrevas todos os dias algumas centenas ou mesmo milhares de palavras que em breve estarão ressequidas e esquecidas como a folhagem caduca dos Outonos: mas que, de tempos em tempo, componhas uma página em que os humanos se vejam retratados como num espelho – não só a sua imagem aparente, exterior, mas sobretudo a interior e dinâmica. 

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

18 de Outubro de 1977

«Só se veja quem só se deseja!», diz a tradição. O mal é que se vejam sós aqueles que mais anseiam por companhia!
Julgo por vezes ver claro no teu pensamento: que tu me estás evitando, ou fugindo, não por não me teres amor, mas ao contrário: porque receias a cadeia que ele é para ti, ou tornar-te prisioneira dele. Fraca consolação para a dúvida em que eu vivo!
«O proletariado», diz o filósofo, «é o santo-e-senha graças ao qual um sem-número de pseudo ou semi-intelectuais se vão amanhando com chorudos e estéreis empregos, à custa de todos nós, os que trabalhamos.»
O nosso maior defeito ou vício é o desmedido orgulho. Na verdade, o da estupidez ou incriatividade que não se vê a si própria. Inversamente: a carência total de humildade. (Não confundir com a dos humilhados!) Coisa que se revela em quase todos os nossos actos e sobretudo no infindável palanfrório que nos vamos habituando a confundir com a liberdade de palavra.
Esta multidão apressada e feliz, das grandes metrópoles, que caminha como quem vai a um destino, sempre lhe causou inveja, o excitou e fez desejar ter também um propósito na vida, como fosse um emprego de importância ou de utilidade, ou mesmo uma posição política de influência ou relevo. Coisas que a sorte nunca lhe ensejou!
Encontrei-o na rua, de viseira caída:
– Homem, que bicho lhe mordeu?
– Estou resolvido a aderir ao Partido Comunista!
– O quê! Você que foi sempre um moderado, um conservador para não dizer reacionário?! E ainda por cima católico!
– Por isso mesmo. Sofri sempre deste meu pendor cristão a estar ao lado dos vencidos!
Diz-me este sujeito com rancor: «Mas você nunca se ocupa de política!» (O que é calúnia, pois que de vez em quando me escapa um comentário político dos muitos que calo!) Respondo: «Não falar de política é hoje para mim o melhor sinal de que existe um alto grau de liberdade em Portugal!» 

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Coimbra, 17 de Outubro de 1980

Coimbra, 17 de Outubro de 1980 – Curvada e encarquilhada, cuidei que a trazia a esperança de que lhe desse qualquer alento à velhice. Mas não. Andava a preparar-se para morrer e vinha liquidar uma consulta que tinha em débito há mais de quarenta anos. Nunca pudera pagar-me. Mas agora, que a vida dera uma volta...
Esquecido dela e da dívida, tentei de todas as maneiras dissuadi-la do propósito. Nada consegui.
– É que nem sequer me lembro!
– Lembro-me eu. E quem vai prestar contas a Deus não é vossemecê...
– Ele não trata dessas ninharias...
– Trata de tudo o que esteja na nossa consciência.
E não tive remédio senão aceitar os vinte escudos de então, a invejar aquela alma simples que se podia desobrigar com tão pouco. 

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

15 de Outubro de 1977

• A felicidade dos povos (a revolução final, diríamos nós?) só virá no dia em que os governos absolutos, omnipotentes, os reduzirem à total e inconsciente obediência e passividade por meio de drogas apropriadas; isso, enquanto não se descobre a maneira de alterar o carácter dos seres humanos por meio da intervenção nos genes. O que talvez já não tarde muito! 

domingo, 14 de outubro de 2012

Velho Menino-Deus que me vens ver


Velho Menino-Deus que me vens ver
Quando o ano passou e as dores passaram:
Sim, pedi-te o brinquedo e queria-o ter,
Mas quando as minhas dores o desejaram…

Agora, outras quimeras me tentaram
Em reinos onde tu não tens poder…
Outras mãos mentirosas me acenaram
A chamar, a mostrar e a prometer…

Vem, apesar de tudo, se queres vir.
Vem com neve nos ombros, a sorrir
A quem nunca doiraste a solidão…

Mas o brinquedo… quebra-o no caminho. ‘
O que eu chorei por ele! Era de arminho
E batia-lhe dentro um coração …

MIGUEL TORGA
In Diário II, 4.ª edição, 1977,
Edição do Autor, Coimbra 

sábado, 13 de outubro de 2012

CANÇÃO DE OUTONO


No jardim deserto,
Já Novembro perto,
Desfolhei as rosas últimas a dar,
Jóias maltratadas,
Rosas desfolhadas!
Só o seu perfume vai ficar no ar.

Recolhi versos
– Breves universos –
Que atirara ao vento para os espalhar.
Queimei-os, rasguei-os.
Secaram-me os seios…
Só rimas e ritmos vão ficar no ar.

Saudades, lembranças
De vãs esperanças,
Fiz covais no peito para os enterrar.
Nada mais me importa.
Fechem essa porta!
Só um pó doirado vai ficar no ar.

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

O MISTERIOSO SILÊNCIO DA MOURELA

A residência paroquial de Randin é uma bela casa de pedra antiga, cheia de sol e de história.
De sol é tão benquista que nem o mês de Fevereiro, o das brumas, lhe falta com ele.
Para a história ficará mais este dado: nela teve lugar, no pretérito dia 22 de Janeiro, a fundação do grupo «Amigos do Couto Misto», entre os quais eu tive a honra de ficar incluído.
Lá voltámos no dia 11 do corrente para a primeira sessão de trabalhos.
Estava, como disse, um desses esplêndidos dias de Fevereiro, em que os pássaros despertam para o acasalamento e os amantes da natureza para os passeios ao ar livre.
Da agenda constava um almoço em Tourém. Resolvemos ir a pé. Entre damas e cavalheiros, éramos à volta de trinta, mais que suficientes para uma alegre excursão. Metemos pés a caminho em gárrulo convívio de vozes e risos.
Lembrei-me de quando, na minha mocidade, por ali andei a saltar sebes e riachos, em divertido, quando não perigoso, jogo das escondidas com os guardas-fiscais e os carabineiros. Coisas do passado. Hoje as duas aldeias estão ligadas por um estradão asfaltado, directo, livre e franco. Os de Tourém atravessam Randin com as suas manadas de vacas para irem pastorear campos do outro lado. Outros tempos, outras mentalidades. Se bem que ainda haja muito que aprender e emendar. Na hotelaria, por exemplo. Os restaurantes de Barroso ainda não aprenderam a explorar racionalmente o filão que os galegos representam. Exageram nos preços e espantam-nos.
Assim aconteceu em Tourém. Verdade se diga que o ágape foi um festim. Não tanto pelas iguarias, muito embora nada haja a dizer em desabono da cozinheira, mas pela alegria e boa disposição dos convivas. Não haja dúvida de que os galegos são muito mais alegres e expansivos do que nós, barrosões. A confraternização meteu concertina, guitarra, pandeireta, vozes agradáveis, cantigas para todos os gostos e feitios. Foram duas ou três horas de plena harmonia de corpo e de espírito.
O preço do repasto, porém, destoou…
Eu era o único barrosão do grupo. Despedi-me dos meus amigos galegos com a suspeita de que, em próximas reuniões, os organizadores pensarão duas vezes antes de marcarem almoços em Tourém.
Tinha ido pelo Larouco. Resolvi regressar pela Mourela. Ainda havia sol. Parei em plena serra para oxigenar os pulmões. À minha direita elevava-se um pico eriçado de penhascos. «Dali deve ver-se o mar…» disse para comigo. E fui ver. Mas fui ao engano. De lá avistava-se apenas outro morro. E depois outro. E um terceiro. E ainda um quarto. E não sei quantos mais. Até a vista esbarrar nos «Cornos de Fonte Fria» que assim se chamam, se não estou em erro, os picos mais altos do Gerês barrosão.
Ingenuidade a minha: ver o oceano… O que eu vi foi um mar de silêncio… Um silêncio vivo, vibrátil, melódico. Música indefinida, longínqua. Dos anjos?
Aparentemente, quem sobe ao alto dos montes, fica mais perto do céu. Mas, quanto a mim, os anjos não passam de criações alucinatórias de teólogos alucinados. Reais, só os astros. Seria aquilo música dos astros?
Mas para que procurar no céu coisas que a terra explica?
Subi outro morro. A música persistia. Talvez agora levemente mais perceptível: sonoridade polifónica de campainhas. Não via rebanho nenhum. Mas tinha a certeza: aquela orquestração de bronzes só dum grande rebanho podia vir. Em ondas. Ondas que iam e vinham. Ora encapeladas como o mar das tempestades, ora bonançosas como o mar das calmarias.
Ondas sonoras. Das campainhas do gado? Da cantilena dum regato?
Ou apenas música do diáfano silêncio da Mourela?
Enigmáticas maravilhas da nossa terra.
Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS II – Crónicas de Barroso (p. 47 e s.)

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

ROMANCE DE VILA DO CONDE


Vila do Conde, espraiada
Entre pinhais, rio e mar…
– Lembra-me Vila do Conde,
Já me ponho a suspirar.

Vento norte, ai vento norte,
Ventinho da beira-mar,
Vento de Vila do Conde,
Que é minha terra natal!,
Nenhum remédio me vale
Se me não vens cá buscar,
Vento norte, ai vento norte,
Que em sonhos sinto assoprar…

Bom cheirinho dos pinheiros,
A que não sei outro igual,
Do pinheiral de Mindelo,
Que é um belo pinheiral
Que em Azurara começa
E ao Porto vai acabar…,
Se me não vens cá buscar,
Nenhum remédio me vale!
Nenhum remédio me vale,
Se te não posso cheirar...

Vila do Conde, espraiada
Entre pinhais, rio e mar!
– Lembra-me Vila do Conde,
Mais nada posso lembrar.

Bom cheirinho dos pinheiros…,
Sei de um que quase te vale:
É o cheiro da maresia,
– Sargaços, névoas e sal
A que cheira toda a vila
Nas manhãs de temporal.
Ai mar de Vila do Conde,
Ai mar dos mares, meu mar!,
Se me não vens cá buscar,
Nenhum remédio me vale.
Nenhum remédio me vale,
Nem chega a remediar…

Abria, de manhãzinha,
As vidraças par em par.
Entrava o mar no meu quarto
Só pelo cheiro do ar.
Ia à praia, e via a espuma
Rolando pelo areal,
Espuma verde e amarela
Da noite de temporal!
Empurrada pelo vento,
Que em sonhos ouço ventar,
Ia à praia, e via a espuma
Pelo areal a rolar…

Espuma verde e amarela
Das noites de temporal,
Quem te viu como eu te via.
Se te pudera olvidar!
E ai não me posso curar,
Nenhum remédio me vale,
Se te não tenho nos braços,
Se te não posso beijar...

Vila do Conde, espraiada
Entre pinhais, rio e mar!
– Lembra-me Vila do Conde,
Passo a tarde a divagar…

Até Senhora da Guia
Me deixava ir devagar,
Até Senhora da Guia,
Que entra já dentro do mar,
Como uma pomba que as ondas
Receassem de levar;
Talvez como uma gaivota
Colhida num vendaval…
Ou rosa branca, trazida
Quem sabe de que lugar,
Que embaraçando nas pedras,
Ficasse ali, sem murchar,
O pé metido no rio,
A flor já nágua do mar.

Lá de cima do seu monte,
Sobre o fundo do pinhal,
Senhora Sant’Ana, ao longe,
Parece um lenço a acenar.
Convento de Santa Clara,
Que vulto fazes no ar,
Que aos marinheiros no mar
Deitas o «pelo sinal»!
E o sol desmaia na cal
Da capela a branquejar
Da Senhora do Socorro,
Onde sonhei me ir casar…

Da banda de lá do rio,
As gaivotas a voar
Sobre Azurara se esfolham
Como um grande roseiral!

Lembranças da minha terra,
Da minha terra natal,
Nenhum remédio me vale
Se me não vindes buscar!
Nenhum me pode salvar,
Morro em pecado mortal…

Vila do Conde, espraiada
Entre pinhais, rio e mar!
– Lembra-me Vila do Conde,
Sinto os olhos a turvar…

Ia até Poça da Barca,
Meu muito amado local,
(E quem diz Poça da Barca
Diz Caxinas, sua igual)
E parava a olhar de longe,
Estátuas de bronze a andar,
As belas gentes do mar…
Parava a olhar o estendal
Das águas a rebrilhar,
E o arco-íris das cores,
Cada qual mais singular,
Que à tarde, pelos céus fora,
Se entornavam devagar…
Caía a noite, e eu, parado,
Via, subindo no ar,
A Lua juncar as ondas
De espadanas de luar…

Duma vez, estava eu triste,
Senti que o Anjo do Mal
Vinha para me tentar!
Caio de bruços na areia,
Ponho as mãos, e, sem rezar,
Aguardo que me Deus valha,
Me não deixe desgraçar…
Foi então que ouvi, distinta,
Distinta!, posso-o jurar,
Posto vagarosa, grave
Do seu repouso eternal,
A voz de Ana, que partira
Lá para melhor Lugar,
Do fundo do seu coval
Cantar-me o velho cantar:
«… Tomou-o um Anjo nos braços
Não no deixou afogar»…

Nenhum remédio me vale,
Ou sou eu que não sei qual,
Se me não levam depressa
A ver o extenso areal
Onde se davam mistérios
Que eu sabia decifrar…

Vila do Conde, espraiada
Entre pinhais, rio e mar!
– Lembra-me Vila do Conde,
Não me posso conformar…

Aquela funda toada,
Por toda a vila a toar,
Nas negras noites de inverno
Me vinha à cama acordar.

Vinha do cabo do mundo…?
Vinha do fundo do mar...?
Vinha do céu, ou do inferno?
Vinha de nenhum lugar…?

De olhos abertos no escuro
Me estarrecia a escutar…
E o meu gosto de a sondar
Que bem me fazia, ou mal!

Pela doçura outonal
Das tardinhas de Setembro,
Vai e vem, que bem me lembro!,
Como sabia embalar!
Vinha de longe, de longe,
Soturna e familiar,
Cada vez mais se achegando
Para se logo afastar…
Mas que viria dizer-me,
Que me diria, afinal,
Aquele canto fatal
Das ondas sempre a rolar…?

Fechava os olhos, sonhava…
Ai! nem me quero lembrar!

Mas sei de um som quase igual
A que o posso comparar:
O som do vento rolando
Nas copas dum pinheiral…
Pinhal do Corgo, seguido
De outro mais longo pinhal,
E essoutro seguido de outro
Té onde a vista alcançar,
Como te posso olvidar
Se é na minh’alma, afinal,
Que chora, como num búzio,
Teu canto irmão do do mar…?

Fechava os olhos, sonhava…
Caía num meditar
Que era pairar noutros mundos…
Ai! nem me quero lembrar!

Não quero, e nada mais lembro,
Nada me pode agradar,
Nada alcança distrair-me,
Nada me vem consolar,
Nenhum remédio me vale,
Nenhum me pode salvar,
Nenhum mitiga este mal
Que eu gosto de exacerbar,
Morro em pecado mortal,
Sem me querer confessar…,
Se me não levam depressa,
Depressa! estou sem vagar,
A tomar ar! o meu ar
Da minha terra natal.

Vila do Conde, espraiada
Entre pinhais, rio e mar…