domingo, 31 de março de 2013

A PASCOELA


Hoje é dia de Páscoa e, salvo pequenas e raras abertas, tem chovido desde manhã. Num desses bocanhos saí para a eira na esperança de ouvir cantar o cuco. Este vício de ouvir cantar o cuco anda comigo desde garoto. Nesse tempo eu via a satisfação com que as velhas exclamavam umas para as outras: «Ó fulana? Já ouvi cantar o cuco!» Corno quem diz: «Já deitei o Inverno fora!» o mesmo se passa comigo. Enquanto não ouvir o cuco, não há sol que me aqueça. Por isso saí para a eira na esperança de o ouvir. Mas o flautista não apareceu. Sei que já por aí anda, mas deve estar recolhido.
Uma bátega de água obrigou-me a recolher também. E agora aqui estou de pés à lareira e olhos nas chamas. Olho sempre para o fogo com a surpresa e o encanto do primeiro homem que o inventou e a ele se aqueceu.
Pelo silêncio da eira e da casa chega até mim o rumor dum movimento desusado de carros. São os meus vizinhos a caminho da missa. Vou com eles. Não com estes, que vão todos de automóvel, mas com os da minha infância, que iam lodos a pé. No Domingo de Páscoa, os três quilómetros que nos separam da igreja matriz eram uma passerelle de pedras e lama onde os elegantes de Peireses, elas e eles, mostravam as toilettes da Primavera, que depois lhes serviam para todo o ano. E que maravilhas de cotim, chita, lã de ovelha, socas cravejadas de amarelo e socos fechados lustrosos de sebo ali se não exibiam!
Era um dia memorável para as crianças, o dia de Páscoa. Não pelo folar ou as amêndoas, que andavam vasqueiras, mas pela alegria de estrear um trapo novo qualquer. Conheci uma senhora a quem toda a gente tratava por Pascoela. Um dia perguntei-lhe se era nome de baptismo ou apelido. Respondeu-me que era alcunha. E contou:
Teria ela uns sete anos, pediu ao pai uns socos novos para a Páscoa. Ele respondeu, em tom de brincadeira e recusa, que só lhos podia dar para a Pascoela. A menina não compreendeu a evasiva paterna e saiu para a rua a dizer a toda a gente que ia estrear uns socos novos na Pascoela.
A Pascoela veio mas os socos não apareceram.
Ó pai, os meus socos novos?
Dei-os à Pascoela.
Mas os socos eram para mim.
Mas tu pediste-mos para a Pascoela.
Oh! .
E a menina saiu para a rua amuada e descalça. Os adultos acirravam-na:
Ó Pascoela? Os socos?
E ela, que era expedita de língua, mandava-os àquela banda com uma desenvoltura que era um regalo ouvi-la.
Com o rodar dos Invernos, os adultos esqueceram a história dos socos. Mas continuaram a tratar a menina por Pascoela. Foi com esse nome que eu a conheci.
Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS II – Crónicas de Barroso (p. 51 e s.)

31 de Março de 1978

Discutia-se o título a dar a uma nova revista de crítica e cultura e alguém propôs este: SEARA DO JOIO. O da ESTERILIDADE (em vez de JOIO) teve apenas dois votos. Não se sabe quando ela virá à luz.
JRM 

31 – Março (sábado). [1990]

Hoje aconteceram três coisas que me apetece fazer acontecer aqui. A primeira a ser coisa foi que o Lúcio fez hoje prova da cadeira «mais difícil» do quinto ano (que é naturalmente a que se faz) e diz ele que lhe correu bem. Continuamos portanto em «contagem decrescente». A segunda a pôr-se-me à frente foi que démos o nosso carro à Rita. Tem só 30 mil quilómetros, mas já oito anos de vida. Gilo quis primeiro preparar tudo (papéis, revisão, afinação) antes de dar a notícia para ela não andar aí uma semana em frenesim. Posto tudo em condições, hoje deu-lhe a chave. E à tarde veio «agradecer-nos». E eu tive um gosto imenso em vê-la «feliz». Irradiava dela uma alegria que era maior do que ela e não achava escape que a vazasse toda. Beijou-me, abraçou-me, tinha o olhar iluminado. E eu pude ver que era possível haver uma alegria que eu já não fazia ideia que pudesse existir. Tinha um carro e uma montanha de coisas agradáveis nele que ela não sabia bem o que fossem. A terceira coisa a sê-lo mesmo foi irmos buscar à casa de molduras um grande e velho retrato de meus pais. Já devo ter falado dele, porque é demasiado belo para guardar só para mim a sua beleza. Deve ter sido tirado pouco depois de chegarem à América, e assim a pose mantém ainda o seu modo hirto de posar para retratos aqui. Estão em pé, de braço dado e minha mãe ostenta na outra mão que não está no braço de meu pai, uma malinha em que parece ter muito orgulho. Estão sérios, compenetrados do acto grave de tirarem o retrato. E têm uma confiança humilde e serena. Agora há que inventar um lugar numa parede para o retrato se pendurar. A ver se então o olho com a ternura que não entendo bem por me ser ainda confusa na confusão do meu sentir. São os meus pais. Devem ter uns setenta anos de retrato para encherem o meu imaginário. Devem estar no limite de quase a minha vida inteira. E é essa distância que eu gostaria de preencher com o que dissesse tudo o que vivi e não sei…
*
E como chove. É uma chuva batida a vento desencabrestado. A tarde escurece rapidamente. Ouço na rádio uma cantata de Bach. Sento-me no sofá e fecho os olhos no incerto de olhar o que não vejo. E tudo isto é absurdo na beleza incrível de haver vida e eu estar nela como se a fosse…
VF

sábado, 30 de março de 2013

Coimbra, 30 de Março de 1981

A Árvore dos Tamancos, um filme italiano que podia e devia ser rodado em Portugal. Também entre nós existem ainda mundos rurais miraculosamente intactos, à espera de uma objectiva que os perpetue antes que desapareçam de vez na voragem do progresso. Mundos de humanidade, de imaginação, de pobreza, de injustiça e de lirismo, que mais tarde será preciso reconstituir para se saber que os houve, e que agora bastaria retratar escrupulosamente, sem retoques, como fez o realizador transalpino. Cingir-se à realidade e mostrá-la ao natural, palpitante, viva, cada personagem a ser, em vez de se representar. Mas quem nesta terra lusitana tem olhos virginais para ver o virginal? Aqui, apenas os poetas são capazes dessa pureza. Só eles atentam pu1cramente na nossa fisionomia individual e colectiva. Mas fazem-no metaforicamente, por sínteses desgarradas que, sendo relâmpagos de claridade, quase sempre deslumbram mais do que iluminam.
Miguel Torga

30 de Março [1966]

Encontrei, entre papéis velhos, estas respostas a duas perguntas que me fizeram já não sei bem quando nem quem. Suponho que a Redacção de um jornal de jovens qualquer de Coimbra.
«I – O papel da Arte na vida do homem?
 Recrear, chatear (depois mudei para maçar), protestar, suplicar, iludir, adormecer, acordar, chorar, cantar, desfear, embelezar, berrar…
Tudo menos tornar o Homem Anti-Homem.
II – O papel da juventude no mundo?
 Envelhecer… Mas envelhecer para mim não é caminhar cegamente para a morte. Envelhecer é construir a juventude voluntária que, embora a gente nova por lei da natureza não acredite, vale quase sempre mais do que a outra, a involuntária.
Claro, o ideal seria que as duas juventudes coincidissem, como parece acontecer na mocidade actual.»
(Escrevi este pormenor final num momento de bela luta varonil da Academia contra o Governo. Hoje soa a lisonja – o que me pinta o coração de amarelo – ferrugem – desgosto vil…)
JGF

30 – Março (sexta). [1990]

E aqui está onde chega a convenção, o parece-mal, o sê romano em Roma. Neste caso, o sê desempoeirado e ligeiro, quando muda o calendário. Mudou a hora para o Verão e portanto há que ser estival e não discutir. Hoje fui ao barbeiro porque estava excessivamente lanígero. E da casa ao estabelecimento é aí um quilómetro. Aí vou eu pois em «corpo bem feito» a caminho da tosquia. O sol cumpre em esplendor e nada se lhe pode recriminar. Eu deitara fora da janela um dedo exploratório. Estava fresco, mas suficientemente humanitário. Mas eis que saio à rua e calhou-me logo um frio de Sibéria. Ora bem. Eu devia voltar logo atrás a enclausurar-me na gabardina. Mas nem pensar nisso. Reparo nos transeuntes e nem um só engabardinado. É a hora de Verão, é tempo de se arrumarem os agasalhos. De modo que, se apareço eu vestido de inverno, julgar-me-iam um louco ali do Júlio de Matos. Há que ser normal e aguentar-lhe as custas. Atravessei a Sibéria, cheguei enfim à tosquia, sentei-me para a operação. E no fim, da lavagem e do corte, levaram-me um conto de réis. E foi assim com esta conta já de escaldar que me temperaram o frio que me enregelou.
*
Depois do estoiro dos países do Leste, digo eu ao Eduardo Lourenço que o PS ficava sem razão teórica e se confundia com a social-democracia. Porque o PS era o PC, menos a Pide de lá, a censura, o hospital psiquiátrico, etc. Ou seja, era um comunismo «em liberdade». Mas provado que ficou (e pelos métodos marxistas, que são científicos) que o marxismo era um logro, que a economia estatal era uma pobreza generalizada, que o sistema económico, fundamento dos fundamentos do comunismo, era um vigário, o PS ficava sem face. Ora bem: leio agora mesmo no jornal (que é por exemplo agora o Público) que o PS, no seu novo programa, se aproxima da social-democracia. Eu pedira ao Eduardo que me explicasse a diferença entre o PS e o PSD, porque me sentia muito confuso. Ele disse-me que todos o estávamos. Que tem que fazer agora o PS, para lá de uma demarcação de pessoas, no referente à relação com o defunto salazarismo?
VF

sexta-feira, 29 de março de 2013

29 de Março [1966]

Arrigo Repetto mandou-me de Itália uma palestra radiofónica pronunciada em Roma (numa secção crítica dedicada à cultura portuguesa), a respeito de A Memória da Palavras que ele compara com II mestiere di vivere de Pavese.
O mais interessante, porém, parece-me ser a fórmula que ele encontrou para classificar o livro: romance-vida.
Também diz a certa altura que «in buona parte, non sarebbe male veder tradotto ad uso di tanti giovani poeti domestici che amano cingersi il capo di allori mondani e salottieri...»
Em resumo: mais um feixe de erva de fumo para esta fome da vaidade que nos faz subsistir!
JGF

29 – Março (quinta). [1990]

Ontem esteve aqui enfim o Luís Mourão, que ainda não conhecia pessoalmente. É parecido com o que eu imaginava da epistolografia. Magro, barba mais ou menos em bico como a de um Moniz Barreto, tímido. Apenas o julgava mais alto. E a sua timidez (eu disse-lhe) é das (e é o normal nelas) que tem arranques imprevistos e agressividade. Porque um tímido, e sei-o por mim que o fui sempre doentiamente, não tem grande autodomínio e traz consigo um ressentimento como pecado original. De modo que, quando afrouxa na timidez, pode ir dar ao disparate e sobretudo à agressividade. É uma forma de compensação. Lembro-me de «saídas» disparatadas na adolescência e sinto muito as ofensas alheias para não reagir duro quando posso. Mas também acontece não dar conta imediata da ofensa e só tarde reparar que ela foi ofensiva. Embrulhadas psíquicas que o demónio me tramou. Mas como é que algumas cartas me dão a imagem física de quem mas escreve? Juro que eu imaginava o jovem com barba, mais ou menos em bico, e por toda a cara. E quanto ao psiquismo, podia traçar-lho até à minúcia. Havia nele um lado inexplicável que tinha cor de seminarista. Mas não o supunha ligado ao seminário. Afinal teve uma educação em colégio mais ou menos jesuítico. A aventura da tese – que a Alzira condenou com uma seriedade académica – é um exemplo de um arranque de timidez. Eu achei piada e colaborei. Mas a Alzira não achou piada nenhuma e reprovou-me a colaboração. De todo o modo o jovem é muito inteligente e quando chegar a uma estabilidade psíquica vai ser um grande ensaísta. Daqui a uns dez anos. Foi a profecia que adiantei à Alzira.
Entretanto hoje tive um sintoma plausível de doença grave. A confirmar-se eu seguiria o percurso do Namora. Mas já o pensei e disse: se ele me plagiou largamente, como provou o L. Pacheco, não era de censurar que eu o plagiasse agora a ele. Ponto final neste humor nigérrimo. Mas a verdade é que me estou bastante nas tintas para a morte. Tenho 74, é uma idade decente para a aposentação. Queria era gramar pouco nos preparativos para a grande viagem. E o Namora gramou que se fartou. Não me agrada. Há uma lei inexorável a cumprir, de que vale queixar-me? A vida está mais ou menos em ordem, falta apenas arrumar o Lúcio. Mas estamos no fim do ano lectivo e espero que até Dezembro ele acabe a tarefa. O seu absurdo, o absurdo da vida com a sua nula significação, o mistério irritante de haver coisas e o universo para elas, o enigma que me assolou. Creio que a morte me não perturbará. Mas levo comigo a inquietação de a não ter decifrado. E a eternidade, a havê-la, não seria menos absurda que não a haver. Com ou sem tudo o que se quiser, o incompreensível é a nossa condenação.
E de súbito pergunto-me: não estarei a mentir? Em tudo quando deixo atrás escrito? A verdade de nós tem algum sentido e é verdadeira? A luz reflectida do prédio fronteiro, neste entardecer, projecta-me em sombra a minha cabeça numa estante. Será essa a verdade primeira e única? Uma sombra e luz à volta. O inapreensível no esplendor que se não apreende também. Uma sombra que se apaga numa luz que se apaga. 
VF

quinta-feira, 28 de março de 2013

Ondarraitz Eugenia (1895)


Localização: Dolores Colecção Salis
Autor: José Salis

28 de Março de 1978

Não sei como é que o homo norte-americano, obrigado a lavar a louça e a olhar pelo bebé enquanto a esposa vai jogar o brídege com as vizinhas, ou fazer o seu loto à igreja paroquial, arranja tempo para produzir tanto romance, conto, obra histórica e peças de teatro. (2 de Janeiro de 1963) Mas é dessas experiências, sobretudo com alguma erótica à mistura, que ele nutre as suas obras! Como, aliás, vai acontecendo também em França.
Quando solicitado, o F. é capaz de chegar às fronteiras da loucura; de outro modo, fica no seu canto, imóvel, reduzido a zero, incapaz de iniciativa e de acção: um «trouxa», como lhe diz a Aurélia.
O mérito do escritor não está só em pensar ideias novas: mas em ir, intuitivamente, ao encontro do que outros pensam, e dar-lhes eco.
JRM 

quarta-feira, 27 de março de 2013

27 – Março (terça). [1990]

Agora que estou no desemprego literário, lembro-me de mergulhar em força na filosofia. Retomar a exclusiva leitura dos pensadores mais do meu feitio, retomar talvez o meu ensaio «Um Dia de Verão», retomar alguns temas já abordados, pensar em torno do que é pensável no meu tempo. Mas justamente é este nosso tempo que me não deixa pensar. Todo o trabalho de destruição (ou de-struição) derivado afinal dos grandes questionadores da própria linguagem, deixam-me paralisado de irritação, chatice e por sobre tudo de pânico. Interrogar a linguagem em função do pensar ou pensar o questionar do pensar, sem lhe meter nada dentro do questionar para pensar, é fascinante mas ao mesmo tempo promotor de paralisia. A única matéria que me excita é o próprio homem e tudo o que respeita ao seu destino. Não os seus mecanismos do ser pensante mas do ser vivo no que importa à sua profundeza e mistério e incrível da sua condição. Problemas «existenciais», digamos, para mais depressa. Que outra coisa o nosso tempo nos permite? E isso mesmo, como é possível no meio do descalabro geral? Como pensar num mundo feito lixo e detritos e pedaços, sem possibilidade de organização? Como pensar entre ruínas? Como convencer sem convicção? Porque a convicção própria é a primeira força ou condição para a convicção alheia. As razões são a exterioridade de uma razão interior, que é a energia com que uma convicção se impõe. De todo o modo, uma vez que outros me descobriram e confirmaram nessa tineta própria para um pouco de reflexão, agora que depus as armas do entusiasmo literário, era talvez de tentar o entusiasmo noutro sítio, aí onde o reflectir recobre uma emoção que já sobrou do que fosse literatura. Mas se o que se me oferece à volta do meu ser homem é um mundo de cacos e irrisão e farrapada cultural, que poderei eu extrair de mim além de cacaria e lixeira? Vou ver. Talvez entre os cacos haja coisas estimáveis como no caixote do lixo os farrapeiras sabem encontrar para continuar a existir o seu negócio de que vão vivendo. Pois.
*
Ontem tive uma conversa difícil com a Alzira Seixo. Esta boa amiga, que já o é de há muitos anos, não é macia no trato. Há que rodear-lhe os lados mais esquinados, dar-lhe espaço para se descomprimir e estabelecer depois o contacto. Ontem foi o caso de um mestrando (candidato ao mestrado universitário) que escolhera para tese o meu Conta-Corrente. E o problema em causa era que o candidato – Luís Mourão – levara o trabalho a um concurso da Câmara de Sintra e ganhou os 500 contos do prémio. Ora uma tese não pode ser publicada antes de julgada pelo júri universitário. Mas a razão oculta disso é bem outra. Porque, enfim, o livro não fora ainda publicado e fora apenas conhecido pelo júri camarário. Mostrar o texto, dizia eu, podia ele fazê-lo a quem lhe apetecesse. E o júri da Câmara foram apenas as quatro ou cinco pessoas (ou três?) que Câmara foram apenas as quatro ou cinco pessoas (ou três?) que o viram. Alzira oscila na resposta. Mas o facto era outro – e dele não poderia eu falar. O facto é que o livro fora premiado. Ora isto punha o júri universitário em apertos. Porque ou o aprovava e podia dar o efeito de seguidismo ou submissão ao parecer camarário, ou o reprovava e surgiria uma contenda ou escândalo público. Estava assim por um triz não haver a prova universitária, que exigiria, aliás, e não tinha, uma forma canónica com capítulos, ordenação da matéria, etc. Alzira diz-me que isso foi de facto lamentável, mas o lamento maior ia para a qualidade do texto. Aí moderei o meu instinto polémico para não acirrar. E disse apenas, que, sendo uma tese de «mestrado», não supunha eu ter de ter uma dimensão de uma de doutoramento. Assim a tese dela, Alzira, de licenciatura, que é realmente muito bela, não poderia funcionar como tese de doutoramento. Eu que a princípio supus ser a tese do moço para doutoramento, fora-lhe dizendo que para isso a coisa era curta. Mas tendo-me ele respondido que era para mestrado, calei-me. Então, no fim da conversa, adiantei-lhe uma profecia, género em que não tinha sido muito atreito a falhanços: dentro de dez anos, o Luís Mourão (que não conheço ainda pessoalmente) será um dos nossos grandes ensaístas. Alzira replica-me que isso é profetizar numa margem de aldabrice, a aventura, o risco são próprios do ensaísmo. E pronto. Agora espero o resultado do exame. Era às 11 horas. São quase 15 horas e ainda não tocou o telefone. Chumbado? Se sim, é pena. Porque o rapaz tem mesmo veia para um bom ensaísmo. E em face disso, que é que significa um chumbo universitário, senão um chumbo (mais um) da própria Universidade?
*
Afinal o rapaz lá passou. Mas apenas com um «bom». A Alzira cumpriu a sua forte reserva. Mas não está mal. Tem agora o doutoramento para repor a verdade das coisas. E tem sobretudo o futuro para explicar o que significa para baixo ou para cima um grau académico.
VF

terça-feira, 26 de março de 2013

Coimbra, 26 de Março de 1990

       O XV volume deste Diário finalmente nas montras. A parábola dos meus dias vai sornando páginas. E vou-a contando aos outros a ver se consigo saber qualquer coisa de mim.
Miguel Torga

26 de Março [1966]

Meditação de auto-análise com a concludente sentença absolvidora de que não trago o coração sujo de inveja ou de qualquer outra fuligem similar – embora nestes exames de consciência a sinceridade dos homens se enrede sempre em novelos de difícil destrinça.
Por outro lado, essa aparente virtude pode apenas corresponder a uma magnífica vaidade oca, adstrita à convicção parva de superioridade e desdém.
Ou pior ainda: ao resignado acreditar naquela voz que berra em mim desde a infância: «olha que tens mais do que mereces!... Goza, goza o equívoco!»
JGF

26 – Março (segunda). [1990]

Já há pássaros! Já se ouvem! Mesmo assim, devem ser pioneiros ou marginais. Porque os outros, os ordeiros, os cumpridores do regulamento e dos preceitos da Natureza, ainda devem estar em preparativos de viagem. Imagino-os mesmo já de malas feitas, mas sem arrancarem pé e a olharem para o relógio. De todo o modo, já há pássaros. E como eu os amo, a estes aventureiros que se estiveram nas tintas para o horário dos caminhos aéreos e largaram por aí fora ao mínimo sinal de uma luz consequente. E luz já há para encher de alegria um cemitério. Luz nos pinheiros, nas flores domésticas ou vadias, no ar deslumbrado como um sorriso. Saí daqui do meu buraco em que faço de intelectual e fui vê-la na mata, onde é mais luminosa por ser mais livre. Fui até às glicínias e desta vez nem precisei de afocinhar nos cachos pendentes para olhar e sentir o perfume. Sentia-o mesmo a uma certa distância, mais ténue decerto, mas ainda assim bem marcado e envolvente. Decerto, porque o maciço que reveste todo o muro se excitava também com a doce luminosidade e se desfazia em mais perfume. É uma luz singular, de início da vida, a da promessa inteira, não a do delírio estival ou a luz doente do Outono. Luz pura, não tocada ainda de vício ou de doença, luz para se acreditar, em nosso perfeito juízo, que se vai ser imortal.
VF

segunda-feira, 25 de março de 2013

25 – Março (domingo). [1990]

Esta noite mudou a hora. Estamos já na «hora de Verão», sem Verão ainda para acompanhar. Mas com esta mudança a luz demora-se com a hora que lhe deu e imediatamente começámos a sentir-nos quase em veraneio. Senti-o por exemplo na casa dos Paixões em Almoçageme onde de tarde os fomos visitar. A Lurdes não estava, sublimada, como agora anda, às alturas ministeriais. Mas estava o António, já descalço e de calções, estendido na relva ao sol. Com ele estava um cão. Um cão? Sim, um cachorro boxer. Onde o achara? Comprara-o. Um cachorro? Na minha aldeia davam-lhe uma ninhada e ainda lhe ficavam agradecidos. Pois. Mas este é boxer. Não é para ofertar? Custou trinta e dois contos. Trinta e dois com…? Olhei o bicho a ver se descobria onde é que tinha escondida a possibilidade dos trinta e dois contos. Era um bichinho feio, de trombinha arreganhada para a raiva futura. Mas é assim. Na vulgaridade do bonito, o feio é que é bonito. Lá estava o cachorrinho com a sua singularidade que o aristocratizava na plebe inumerável dos rafeiros. E tratado com todas as regras da pediatria canina. Cerelac, papinhas experimentadas e garantidas por essa experiência. Depois prosseguirá o seu regime científico. Qualquer rafeiro na minha aldeia roía logo os ossos da sua condição. Ou pedras, se os não houvesse. Este comia papinhas. Pois. De todo o modo, meu caro António, com papas e trinta e dois contos, o bichinho, muito engraçado como toda a infância, tem um trombilzinho mesmo feio.
*
Estão muito em voga os diários, parece-me. E lembra-me a propósito, ou despropósito, o que se contava de certo mestre de Anatomia, ou de qualquer outro saber que mete cadáveres, no tempo em que eu andava em Coimbra. Dizia-se, com efeito, que numa das primeiras aulas ele avisava os alunos de que para se ser um bom anatomista (ou não sei quê) se devia ser porco e ter bom golpe de vista. E para exemplificar o preceito, mergulhava um dedo no rabo do cadáver e passava-o depois pelos lábios. Convidou então um aluno a repetir a proeza. E o aluno mergulhou o dedo no morto e lambuzou a boca com ele. O mestre sorriu e comentou:
– O senhor lá porco é. Mas não tem bom golpe de vista.
E isto porque o mestre metera realmente o dedo no cadáver mas o que passara pelos lábios era um outro dedo. E é o que me ocorre quase sempre quando leio um novo diarista. Ele conta banalidades ou recordações pessoais da juventude ou infância. Mas ignora que essas coisas são apenas lamentáveis ou ridículas, se não forem outra coisa ao passarem à escrita.
VF

domingo, 24 de março de 2013

Vida (1903)


Localização: Museu de Arte de Cleveland

24 de Março [1966]

Teresa Horta ao telefone. Pareceu-me feliz com a carta que lhe enviei, há tempos, a respeito do Candelabro.
Sabe: tenho um filho, o Luís Jorge… E estou empregada…
Voz aberta. Instinto ingénuo de confiar no mundo… Desejo de terra. Na vida e na morte.
Prometeu mandar-me o seu último livro: Jardim de Inverno.
Gosto da poesia da Teresa Horta. Poesia de pequeninas unhas enterradas na carne… Sangue de marcas doces. Gotas de suor na pele que existe para roçar nos outros corpos.
JGF

24 – Março (sábado). [1990]

Viemos ontem a Fontane1as (num carro novo! E sem estampanço nem mossa, que é o estabelecido quando mudo de carro, como sempre que tenho uma gravata nova baptizo-a logo com um pingo da sopa). Viemos ontem a Fontanelas e hoje de manhã, estava eu aninhado ao fogão, a Regina diz-me da porta da rua:
– Vem ver.
E não adianta pedir-lhe – diz lá o que é – para me não dar a maçada de levantar. Porque ela insiste: – Vem ver – e habitualmente o que me obriga a ir ver é, sei lá, uma aranha enorme, ou um pássaro no fio eléctrico ou um esquisito carreiro de formigas, coisas assim. Não perguntei o que era, porque me diria – Vem ver. E levantei o cu do sofá e fui ver. E realmente – que espectáculo. Não era só o portão da entrada mas todo o muro de tijolo que estavam deslumbrantes no seu amontoado de glicínias. O sol iluminava-as e era assim um festival de colorido e luz no esplendor da manhã. Fiquei-me quedo a olhar no desejo de entender o que me maravilhava naquele arroxeado de inúmeros cachos pendentes ao longo do muro e por cima do portão. Devia haver o seu perfume no ar mas o meu olfacto córneo não dava conta. E então fui até ao muro e mergulhei nos cachos de cor lilás e aspirei fundo a sua essência de ser flor e dizer na sua apoteose que a alegria existe e a festa e a vida que regressa por sobre a morte que a esquecera…
*
Quando estou cansado, sobretudo por dentro, dá-me jeito ouvir baladas de Coimbra. A Regina diz que já está farta (mas ela também só andou em Coimbra uns dois anos) e então aproveito quando estou só para me refastelar. A verdade é que também são já poucos os fados que suporto e desses é preciso não dar ouvidos à letra para me ficar sossegado o estômago. Porque são versos de uma infantilidade inconcebível quase sempre. E os que o não são têm uma escala curta de variações. Há, aliás, fados de uma aceitação generalizada e que pertencem assim necessariamente a quase todos os discos e recitais, mas que me são insuportáveis. É o caso do «O meu menino é de oiro», que é talvez a exaltação do infanticídio. De modo que o meu repertório aceitável é bastante curto. Mas há fados bonitos que jamais ouvi em disco ou cassete ou recitais. Lembro por exemplo «Ó meu amor, minha vida / ó minha esguia andorinha». Ou «Meu amor vem à janela». Ou mesmo o que vem no In illo tempore: «As nossas capas rotas, velhinhas (...) / tremem no ar. / São andorinhas (bis) / que se preparam para emigrar». Bom, mas isto vinha a propósito de? Não sei. Talvez do detestável das letras das baladas. E por associação, lembrei-me de que ainda no meu tempo, ao que suponho, as reuniões de curso metiam lápide versificatória no Penedo. São versos simpáticos, mas raro avançam sobre isso. Aliás, nós (eu) sorríamos intrigados para aquela velhada que andava por ali a curtir saudades, que era para nós (para mim) coisa inconcebível para quem se libertara enfim da canga do curso e ia enfim beneficiar da sua enorme trabalheira. Também disse o meu adeus de despedida, tive um jantar com os meus amigos do «Bolinhas» (de que julgo ter já falado), mas a coisa era mais para cumprir um ritual. Por mim o que eu queria era libertar-me daquela servidão e ir enfim ser livre e ganhar a minha vida. Mas como já disse não sei onde, Coimbra, para quem lá andou, só nasce depois de morrer. E só à distância ela emerge com o seu prodígio de legenda e sedução.
Mas perdi o fio outra vez. Portanto, as lápides do Penedo. Quando eu lá andava, entretinha-me às vezes a ler aqueles versos desmaiados pelos anos e um pouco de senilidade. Mas houve um dia em que fixei uns, creio que por uma só leitura deles. Não são versos que revolucionem a poética nacional, mas marcaram profundamente a coimbrão. Pude depois saber que ficaram famosos, mas eu decorei-os logo, ignorante ainda da sua fama. E nem sei de quem são. E nem sei de quando são. Mas fixaram-se-me ferozmente na memória, ressalvada alguma «gralha» dela. Aqui ficam para os que os não leram ou esqueceram: «Se esta velha pedra visse (ouvisse) / o que fomos aos vinte anos / – ais de amor, (tantos) puros enganos, / talvez que a rir se partisse. / Mas se tivesse olhos e olhasse / os espectros que hoje somos, / tão mudados do que fomos, / talvez que a pedra chorasse». Não eram versos lindos para uma balada? Nunca ninguém se lembrou disso. Se a música esquecesse, nunca mais decerto se esqueceriam os versos. Como me não esqueceram a mim.
VF

sábado, 23 de março de 2013

23 de Março [1966]

Momento literário de confusão transida. Escritores como o Carlos de Oliveira e o Abelaira confessam-se perturbados com as pregações ambientes, sobre certos problemas filtrados em tolo…
Discutem-se, a sério, coisas deste tipo: «discursivo ou não-discursivo?…» «Sentimentos ou não-sentimentos?…» «Saias curtas ou compridas?... A cinta na cintura ou nos seios?»
Alguém proclama do lado:
Precisamos ser do nosso tempo.
Eu (penso):
Ai do artista que não impõe o seu tempo!
JGF

sexta-feira, 22 de março de 2013

22 – Março (sexta) [1990]

As zangas são uma coisa curiosa. Desde os motivos à avaliação do seu peso, variabilidade delas para cada um, a relação dela connosco para calcularmos quanto de nós é posto em causa, relação da variedade da ofensa com a importância que nos damos a nós – até à perduração dela para lá da memória das suas razões. Este último pormenor é engraçado. Porque a certa altura reparamos que já não sabemos bem porque nos zangámos, mas continuamos zangados. Saber porquê exige boa memória. Zangámo-nos um dia, há anos, perdemos já a lembrança do porquê, mas sabemos que estamos zangados e então continuamos. Na aldeia as coisas são mais complicadas. Primeiro porque toda a zanga é precedida de ralhos e saber ralhar é uma especialidade de quem tem esse dom. De A ou B diz-se que «sabe ralhar». Ou seja, sabe dar resposta pronta e de arrasar a antagonista, sobretudo se são mulheres. Elas são temidas porque «sabem ralhar» e são rápidas e sintéticas ou demoradas e prolongadas nos insultos. Mas acontece também que as zangas são extremamente instáveis, com súbitas mudanças para de novo se «ficar a bem». Quando eu era rapaz acontecia que abalava de férias com a minha gente a mal com alguém, normalmente com gente da família. Mas quando regressava de novo a férias, já estavam a bem. E então eu, se não era avisado, continuava a manifestar os meus sentimentos de ofendido. Reparava então que já não se estava a mal e aí tinha eu de recompor os meus sentimentos. Era isto uma dança que se repetia constantemente. E então, a partir de certa altura, quando regressava a férias perguntava como iam as coisas no relacionamento da família. E acertava logo o passo com ela. Mas já tinha falado disto, suponho.
VF

quinta-feira, 21 de março de 2013

21 – Março (quarta). [1990]

É Primavera! É Primavera! Que bom renascer como se renascesse. Mas a ideia que mais profundamente me toma é a de que subitamente muita coisa começou não a renascer, mas a perder sentido. A agonia. Que sentido tem hoje escrever romances? Os nossos romancistas pressentem-no e andam desorientados. Que sentido tem hoje a política, depois do estrondo de Leste? Os nossos politiqueiros adivinham-no, porque as guerrilhas abrandaram – sobretudo as promovidas pelo esquerdismo em geral e a comunada em particular. Que sentido tem ir ao cinema e por extensão jazer cinema? Que sentido tem escrever cartas? filosofia? compor música? fazer pintura? Não se trata bem de negar a validade disso – trata-se de lhe não achar sentido, justificação. Trata-se de nos sentirmos desmotivados para a realização seja do que for. De nos faltar convicção. Tudo existe em função de si e do contexto que o exige, com o qual está em harmonia, com o qual forma um todo. Eu escrevo um romance e sinto, sem o pensar, que ele enraíza num modo de se ser geral e que é portanto uma continuação. O nosso tempo não firma as raízes de nada porque tudo é nele areia e esterilidade. A obra acrescenta o meio em que nasce e dá-lhe uma certa razão de ser. Mas foi esse meio que a solicitou para a existência dos dois. Hoje a obra está sozinha e é quase ridículo o seu nascer como uma anedota estúpida. O nosso tempo é o da desagregação, do esfarelamento, da pulverização e tudo o que se cria aproveita um grão de terra que não pode sustentá-lo. Nós estamos todos separados uns dos outros e toda a obra exige um grupo, mesmo minúsculo, para se justificar. Mesmo a política o sabe com a pulverização dos estados e das regiões. O Mundo de hoje é um saco de areia. Nós encostamo-nos uns aos outros nesse saco, mas não temos nada a ver uns com os outros nem sabemos sequer que estamos ensacados.
De todo o modo, hoje é Primavera. E é belo ver que a Natureza se cumpre, em total indiferença por nos não cumprirmos nós.
VF

quarta-feira, 20 de março de 2013

20 de Março [1966]

Nesta última semana, durante as viagens de autocarro e enquanto espero pelo Carlos, o João e o Mário no Bocage, tenho meditado sobre afixação da realidade, memória, etc. – e agora só a custo resisto a expor uma teoria brilhante em que cabe por inteiro a explicação dos meus dois últimos livros, confundidos por muita gente com estendais de recordações anedóticas de factos e acontecimentos.
A minha teoria repele essa interpelação fácil. Mas explica tudo tão bem, com tanta lógica, que desconfio que só extraio do Grande Poço a névoa que me convém.
JGF

20 de Março de 1978

Num dos seus autorizados livros a respeito da revolução chinesa, ao narrar a célebre «marcha» de Mao e Chu-Teh através do país, Edgar Snow conta que as tropas comiam quase só feijão, que não abundava. Durante as frequentes crises de diarreia, as fezes dos soldados eram recolhidas com os feijões intactos, e estes novamente cozinhados e servidos às tropas. Ao ouvir isto, diz o Tomé, das oficinas de Alçapreme: «Por que diabo é que eles não comiam antes lagosta?!»
JRM 

terça-feira, 19 de março de 2013

19 de Março [1966]

Sobretudo dói-me até à ponta do punhal no fundo do coração o esquecimento das pequeninas coisas que se escoam e morrem para sempre nesta confusão de bruma e sol...
Digam-me: o olhar daquele cão corrido à pedrada em Albarraque, onde pára?
Nem eu o decorei.
JGF

19 – Março (sexta). [1990]

Estamos em Fontanelas (regressamos amanhã) e não registar o facto seria atestar-me uma insensibilidade córnea ou uma desatenção de parvo. Porque está um tempo de verão engrinaldado de primavera. A glicínia coroou o portão da entrada com o seu ar festivo dos seus cachos de azul quase roxo e com um perfume perceptível ao meu nariz azul quase roxo e com um perfume perceptível ao meu nariz de cortiça. É o sinal de boas-vindas que se estende mesmo até Lisboa onde tivemos ontem a visita do Laura António com o seu rancho e hoje do Alberto Silva que fora a Lisboa de Évora. Mas todo o ar se perfuma de flores invisíveis e sobretudo de uma alegria feita de luz. Mas eu pouco tenho aproveitado da festa, porque trouxe comigo as provas do romance e nos intervalas de não haver visitantes amarro-me à banca com o meu dever de escritor. O bom Luís Amaro deu-lhe a primeira vista de olhos, que é uma vista inquisitorial como eu preciso. E lá me moveu uma caça implacável às vírgulas, às repetições de palavras, a algumas regras de concordância. Afora, já se vê, às gralhas da composição. O mais tormentoso para mim foi a repetição de alguns termos. Porque o estilo coloquial do livro, que é uma «carta», não me dava margem fácil para sinónimos. Por exemplo, a adversativa «mas». Porque era extremamente problemático deitá-la fora e promover ao seu lugar um «porém» ou «contudo» ou mesmo «todavia». Outro tormento, talvez mais sádico, foi a substituição do «ainda». Uma ou outra vez fiz concessões à minha fraqueza e deixei ficar. De todo o modo isso foi bastante para me não poder rever com vaidade na minha glória de criador. Quando o Luís Amaro era mais tolerante e me deixava passar uma ou outra página certeira, lá se dava o caso de eu me espanejar na alma e não achar mal. Mas foi raro. De todo o modo, um ou outro trecho, com ou sem tratos de polé, não me pôs contentamento na minha presunção. E o mais doloroso foi eu perceber como deveria ter feito. Mas basta às vez uma frase ou outra para se ir abaixo todo o baralho. E haveria então que voltar ao princípio. Mas, que diabo, também lá há coisas muito aceitáveis, mesmo para a escrita gloriosa dos meus irmãos em escrita. E se eles disserem ou pensarem o contrário, são mentirosos ou têm o gosto de uma galinha – que em todo o caso não é tão estúpida como isso. E disse.
Mas amanhã temos de regressar a Lisboa. Em primeiro lugar porque vou tomar posse de um carro novo. Sim, sim. Novo. E com o aparato dos de um senhor dos petróleos da Arábia. Palavra. É largo como a minha grandeza, é branco como a minha alma e é remansoso como o meu sedentarismo. E não digo a marca porque publicidade sim, mas à borla não. Espero agora viajar mais por largo e não no raio de acção galináceo, que é o do percurso Lisboa-Fontanelas. E dar-lhe com isso a liberdade de fazer os seus exercícios de velocidade para manter em forma os seus cavalos – que são bastantes e davam quase para encher uma cavalariça.
E aqui está como nesta escrita desenfastiada, eu próprio dei exercício à minha perna ligeira, descansada assim a outra, mais grave no seu pé de chumbo.
*
E os estupores dos pássaros que se estão nas tintas para as flores e a alegria, só porque o seu cronómetro já electrónico lhes diz que ainda não é tempo disso? Dá-me vontade de lhes berrar – mandai à merda o cronómetro e vinde ver a festa que por aqui vai. Mas não digo porque se calhar mandavam-me eles a mim. E eu não estou muito inclinado a ir.
*
Que linda tarde de êxtase e de luz. Os pinheiros imóveis olham o pôr-do-sol até onde lhes é visível. E eu olho neles a minha longa meditação. Alegria serena, a beatitude. A mais vasta e profunda. Porque é a do universo no seu ser.
VF 

segunda-feira, 18 de março de 2013

Les hiercheuses (1890)


Localização: Colecção Particular 
Autor: Constantin Meunier

18 de Março [1966]

Esta definição de Arte como fixadora da Realidade e a única memória viva dos homens explica medularmente a minha literatura, sempre com sabor autobiográfico.
Arte – verónica do sangue dos factos da minha experiência. Principalmente da esquecida – e, portanto, tenho de inventá-la.
JGF

sábado, 16 de março de 2013

16 de Março [1966]

Arte, para mim, é este arrancar dum poço de nuvens as linhas de contorno a que chamamos realidade e constantemente se esvai, e perde e desvanece.
Fora dessa memória (no papel, no mármore, nas paredes das cavernas…) que existe? Sim, que existe para nós, os agnósticos, que não acreditamos na memória das estrelas nem nas balanças de luz do Outro Mundo (com letra grande)?
JGF

16 – Março (sexta). [1990]

Que é que me atrai e repele em Nietzsche? Não sei. Li muito. Devia portanto interessar-me bastante. Primeiro houve naturalmente que cumprir os meus deveres culturais. Mas isso não contava. Há outros filósofos importantes que passei por alto. A morte de Deus foi para mim um assunto nobre. A destruição do «sistema» e um modo novo de filosofar que tem que ver com o ensaísmo ou mesmo a literatura, também. Mas tudo o que remete para uma certa sobranceria onde entreluz um prenúncio de racismo e mesmo nazismo, o seu desprezo pelos fracos, a imortalidade, tudo o que humaniza o cristianismo irrita-me. E há o enigmático «eterno retorno», que ele não expôs detalhadamente mas ao qual apenas alude às vezes no Zaratustra e na sua Gaia Ciência (§ 341) e que me intriga como a toda a gente. Numa interpretação imediata, ele é absurdo como suponho se não costuma admitir. Para se repetir o passado temos de saber qual o período repetível: um ano? mil anos? cem mil anos? Não está estabelecido. Ora bem, se não está, então não pode haver eterno retorno. O meu acto presente de escrever repete que outro acto passado? Porque se não há uma demarcação do período em que me repito, então este acto de escrever repete este actual acto de escrever, ou seja não saio dele. Se o de hoje repete o de ontem, então, decerto, houve um retorno do que aconteceu ontem. Se o de há um ano, então, decerto, repito o de há um ano. Mas se não há um período demarcado para a repetição, então o acto presente de escrever é ele próprio a repetição de si mesmo, ou seja, não há repetição. Em tal caso é mais lógica a interpretação de Klossowski e Deleuze segundo a qual o eterno retorno é a repetição do mesmo com uma variação que o retoma e aperfeiçoa. Repetir é não sair do que se é com o processo de uma reactivação desse mesmo que o melhora. O super-homem seria o homem que se supera nesse aperfeiçoamento (se estou bem lembrado da interpretação referida),
Mas quantos problemas Nietzsche levanta aos seus hermeneutas. Assim, a morte de Deus implica a morte da nossa individualidade. Nietzsche quer matar realmente o «sujeito». Mas a destruição da individualidade de cada um é um absurdo incomensurável. Porque é como pretender cortar uma mão com essa própria mão. Quem nega o sujeito é o próprio sujeito. E que tem Deus que fazer no meu auto-reconhecimento como indivíduo ou pessoa que sou? É «lógico» derivar-se a «morte do homem» da «morte de Deus» apenas num sentido bíblico, ou seja no da morte do «rei da criação» pelo seu nivelamento com todos os animais e mais extensamente com toda a Natureza. Mas eu não mudo de consciência de mim com ou sem Deus.
Mas estou cansado e vou-me estender um pouco. Com Deus ou sem ele – estender-me e amolecer.
*
Afinal veio o fotógrafo para a revista Ler do Círculo de Leitores e cá estou a fazer de escritor. Que extraordinária a ficção com que se faz a verdade. É verdade que escrevo e fumo durante, se os nervos me não dizem que não. Mas é mentira que escrevo, para ser fotografado em ficção para o ser. Acabou-se. Acabou-se-me é a paciência para continuar a fingir, mas o fotógrafo não é de opinião que se acabe. Entretanto acabou-se-me o papel antes de se acabar o resto. E o cigarro que ajuda a compor o resto não me está a saber bem aos nervos. E não posso parar – vou escrever no vazio do espaço que já não tenho. E o assalto que não cessa? O Luís Amaro chegou com as provas do livro e não me é possível (Interrompido).
VF 

sexta-feira, 15 de março de 2013

Neve e neblina sobre o Grande Canal (1840)


Localização: Museu de Arte Moderna, Pesaro Ca '. Veneza

15 – Março (quinta). [1990]

Quando vou buscar o jornal, encontro com frequência um casal, de idade próxima da minha, que um pouco sempre me emociona e intriga. De braço dado, muito compostos, muito integrados nessa compostura, lembram-me um casal romano no tempo de Augusto, exemplo de um certo ideal de uma união honesta. Será verdade? Nós temos desde a nascença quem nos ensine a ser gente. São os pais para a revelação do Mundo, é a escola para a infância, a adolescência e a juventude. É depois a própria vida que vai fazendo o que pode para a nossa formação de adultos, e depois acabou. A velhice ninguém a ensina e a sua aprendizagem temos de fazê-la nós até à indiferença. Todo o ser vivo tem uma pele ou uma casca a defendê-lo. Mas ele é permeável a uma emoção, a um descascar de um fruto ou a um martelo para o partir quando é preciso. A pele do velho endurece para a sua defesa, que é o que sobretudo tem de aprender. Até que nenhum martelo a possa já partir, a não ser o da morte, que parte tudo. 
*
O arquitecto Campos Matos, que é um fanático admirador do Eça como eu (embora o meu fanatismo vá tendo já as suas quebras) publicou no JL da outra semana (o 400.º) um artigo sobre o nosso grande homem e a filosofia. E escreve-me hoje a pedir a minha opinião. Procurei o número para o reler, mas já o não encontrei. De quando em quando, para baixar o nível da montanha dos periódicos, a Regina leva uma braçada deles aos nossos vizinhos, como em Fontanelas os transporta para a senhora Joana que nos vendia o leite, agora comprado na loja empacotado. De modo que não pude reler o artigo em questão. Mas pelo telefone, e apoiado na memória que dele me ficou, respondi ao arquitecto que
Toda a época tem a sua óptica com que lê toda a contemporaneidade. E o que não cabe nessa óptica, é mais ou menos invisível. Assim se explica, por exemplo, que Eça não tivesse reparado na revolução das artes plásticas desencadeada pelo impressionismo. Mas quanto à filosofia acontece que ela não tem feito parte dos nossos hábitos culturais, mormente dos literatos. Antero é uma excepção. E relidas há pouco as Tendências, não me tomou o grande entusiasmo em que têm sido lidas, apesar de elas terem qualidade q.b. Para mais, Eça, por desconfiança ou temperamento, nunca se deu a grandes trabalhos de erudição e foi-se governando como pôde com o razoável que foi sabendo. O tipo de cultura de muitos de então era o histórico-político (além do literário, obviamente), como hoje é o filosófico-político (além de, etc.). Mas mesmo o domínio literário não se estenderia muito além do romantismo. O resto procurava-o ainda, se possível, nas informações do seu tempo. Ainda há pouco o Prof. Santos Alves demonstrou que a informação para o seu conto «A Perfeição», com a sua história de Ulisses e Calipso, não a procurou Eça em Homero mas em Lecomte de Lisle. Fradique lia Sófocles «no original»? É imensamente duvidoso. Conhecia-o Eça em tradução? É bastante duvidoso. Mas o que não tem dúvida é que mencionar Sófocles faz o seu efeito. Conhecia Eça os filósofos que menciona? Leu Schopenhauer? Terá mesmo lido Comte? Mesmíssimo Taine? Calo-me na minha dúvida. Falo de Taine filósofo, não do Taine ensaísta literário. E quando sugiro o filósofo, penso mesmo no da Filosofia da Arte, mais chegado aos seus interesses. É possível que Eça duvidasse do interesse da filosofia, por ela conduzir pretensamente ao cepticismo pela diversidade ou antagonismo de opiniões. E isto era mais sensível nesse tempo em que a ciência era um Absoluto pela confiança que merecia – com efeitos em múltiplos domínios (religioso, ético, estético, etc.). Compreende-se tal cepticismo porque ele perdurou até nós. A filosofia – dizia um gracioso, como é sabido – é um saber «com o qual ou sem o qual se fica sempre tal e qual». Isto tem piada, mas é absurdo. Tão absurdo como dizer-se que se não ama tal mulher, porque milhentas pessoas a acham detestável ou desinteressante. Tão absurdo com não aderir a nenhum partido político porque eles se contradizem uns aos outros. Tão absurdo como negar o interesse da arte do passado, porque ela se não parece com a nossa. O valor da filosofia está aqui – em reconhecermo-nos a nós próprios na proposta que nos faz (e é assim para nós a revelação do que não sabíamos que sabíamos). O valor da filosofia está na emoção original de quem filosófa, como a emoção do poeta.
Mas isto não tive tempo de o dizer ao Campos Matos quando ele me admitiu o desinteresse do Eça pela filosofia em virtude do seu cepticismo em face da controvérsia implícita às suas proposições. E eu também não digo mais nada porque me acabou a tinta na caneta.
*
E agora que já tenho tinta, queria só dizer que está calor.
VF 

quinta-feira, 14 de março de 2013

14 de Março [1966]

Devíamos nascer velhos e, a pouco e pouco, tornarmo-nos mais novos, até atingirmos a juventude dos deuses. (Quem não teve já este sonho? Teve-o, por exemplo, o meu filho Alexandre aos 8 anos.)
Que bom ter 20 anos – com a ronha da velhice!
JGF

14 – Março (quarta). [1990]

E de súbito a gente repara que entrámos em défice de – como dizer? Daquilo que envolve uma data de coisas que vão desde o heroísmo, idealismo, motivação para agirmos e mesmo sermos diferentes, até ao que nos trabalhou a «espiritualidade», onde cabe toda a realidade do espírito em que se incluía a vivência interior das emoções, ideias, modo de se ser humano. A derrocada do Leste arrastou consigo uma fracção enorme de sermos uns com os outros, de termos uma motivação para sermos em grupo, termos motivos para nos diferençarmos, nos congregarmos ou opormos, pensarmo-nos em função de quaisquer projectos políticos. E o conhecimento de que o cérebro é em alterações que «explicam» as nossas emoções (o medo, a personalidade, o «stress», etc.) reduz a uma certa materialidade o que era da nossa vivência espiritual. A consciência do nosso «eu» fica indemne na sua autonomia, no absoluto de nos sabermos ser. Mas o facto de sabermos como uma simples experiência anatómica perverte tudo o que a isso agregamos, perturba imensamente a verdade do que sentíamos e pensávamos. A «engenharia genética» travou a sua investigação no limiar de uma subversão total do nosso ser humano. Mas sabemos que esse limiar pode ser transposto e desmoronar todo o edifício do que é o nosso modo de ser-se homem. Assim tudo isto abre diante de nós um futuro possível de desertificação. Haverá sempre um abismo entre tudo o que nos demonstram sermos em termos materiais e a imperativa verdade de nos sabermos ser nós. Pode ser-se laboratorialmente outra coisa. Mas a assumpção consciente disso que formos instaura em nós inexoravelmente a consciência desse absoluto de sermos.
Resta no entanto a vida política, o relacionamento dos homens à dimensão mundial. Que monstruosa construção de ideias, sistemas, projectos para se ser humano em ideal de justiça e o mais, a ruir subitamente diante de nós até a um estendal de escombros. Quanta ambição, ódios pessoais fundamentados no pretexto de um projecto político, obras de arte, mormente literárias, fundamentação mesmo da sua dignidade, sonhos de se estar com a História, quantas ilusões desmoronadas com o terramoto. O Mundo inteiro diverte-se a esta hora sobre si para (Interrompido).
VF 

quarta-feira, 13 de março de 2013

13 de Março [1966]

Para acreditar no mal que me contam dos outros, para ao menos averiguar se a calúnia é lógica – que remédio senão remexer no meu lixo de mau cheiro secreto. 
JGF

13 – Março (terça). [1990]

In illo tempore, quando eu andava em Coimbra, um dos passeios favoritos do meu grupo, pelo tempo já quente de Maio ou Junho, era ir até ao pátio da Universidade ver a tarde morrer na curva «sumptuosa» do Mondego e na maravilhosa panorâmica de Santa Clara. Havia aí um banco ao lado do Observatório e lá nos sentávamos com cigarros e paleio. A noite ia descendo sobre a conversa e nós banhávamo-nos na sua frescura. Ora aconteceu um dia que um de nós sentiu a pressão hidráulica que se tornou mais urgente por ter reparado nela. Mas onde dar-lhe vazão? E logo lhe ocorreu que o mais prático e higiénico era chegar-se ao gradeamento e aliviar para a rua em baixo de que já não sei o nome. Mas aconteceu que passava justamente nessa rua um transeunte que ao ver aquele chuveiro intempestivo que vinha de cima, se deteve à espera que passasse. Mas como havia o ditado segundo o qual «quando mija um português, mijam logo dois ou três», nós não quisemos contrariar o provérbio. Éramos justamente três ou quatro e pusemo-nos em fila de espera. De modo que logo que acabava um começava o outro. O transeunte ainda aguentou o segundo chuveiro, admitindo a hipótese de uma pressão excepcional ou uma bexiga excessiva. Mas quando o terceiro ou o quarto avançou para a sua vez, o homem bramou furioso:
Se mijas mais, chamo a polícia.
Era o último, não mijou. Apertou a braguilha e sentámo-nos de novo a continuar a conversa. E como o chuveiro acabou, o homem deve ter ficado contente porque a sua ameaça tinha surtido efeito.
*
Perdoai-me, ó homens solidificados a cimento, espiritualizados a electrónica, mas há uma guitarra que ressoa no fundo do tempo e eu tenho de ouvir. Vibra na eternidade da minha emoção desamparada e eu tenho de me comover. É uma voz que me não fala de parte alguma, do absoluto que não tem uma referenciação a não ser em si mesmo. Porque o lugar a que poderei referenciá-la não é esse, nem outro que o pode render, nem outro que se lhe possa adiantar. Tudo isso são pretextos para que não faltem pretextos. Há outra coisa para lá delas e é da minha dimensão humana, feita do excesso que de mim transborda. Como o impossível do amor, que possibilitado morreu. O passado? Ele abre-se no acorde da guitarra, mas apenas porque nunca existiu e a minha emoção ao ouvi-la é daí, da impossibilidade de existir. Ela vai assim desse passado ao futuro, porque todo o tempo é do incrível de nós. O futuro só nos ilude nisso, porque o imaginamos realizável quando se realizar. Mas ele também se não realiza nunca, porque o que dele se realizar não o vamos reconhecer como a sua realização. Uma guitarra ondeia no espaço da minha emoção. É de lá. Não é de parte alguma. É só da eternidade de nós, que é o instante em que a nossa vida se cumpre…
VF 

terça-feira, 12 de março de 2013

12 – Março (segunda). [1990]

Hoje é dia não. Sinto-o logo ao acordar, na perturbação nervosa que me põe doido de mal-estar angustiado. E estou sem ter que fazer. E sinto que a Regina se altera de um modo alarmante. Decisões bruscas, inesperadas. Desajustamentos. Faltas de memória. Irritações longas.
Entretanto leio os livrinhos da rapariga que conheci na homenagem ao Rosa. Livros esquisitos. Amontoado insólito de detritos, coisas desconexas. Toda a obra exige uma óptica para ser lida. Vista numa óptica desajustada, quase tudo fica de fora nas zonas da cegueira. Aplico-me à leitura e tudo me foge ou desaparece na minha desatenção.
Entretanto ainda, há sol. Está mesmo quente. Fui buscar o jornal com os agasalhos do costume e tive calor. Ao meu olhar desatento, reparei hoje que há muito não vejo a farrapeira. Via-a todos os dias transportando uma fila enorme de mercadoria, que eram sacos de cartão, lixo apanhado decerto nos caixotes das portas. Não podendo logo com a carga toda, ia-se deslocando às porções pela avenida abaixo até ao poiso do seu comércio. Terá morrido? Terá ido comerciar para o paraíso? De vez em quando é assim – um elemento do meu quotidiano desaparece do meu convívio.
Estou cansado. Revoluteado nos nervos. Fico aqui.
*
O Listopad telefonou-me (o Lúcio atendeu) a dizer-me que publicara ontem no Notícias um artigo sobre a morte das ideologias que me era dedicado, tendo sido a dedicatória cortada pelo jornal. É o que se chama a liberdade de imprensa. Porque essa tão falada e exigida liberdade é a dos senhores dos jornais cortarem, acrescentarem, enxovalharem e se for possível difamarem quem lhes não cai no goto. A outra, a liberdade de imprensa do Estado, ou seja a de quem está no (outro) poder, tem o nome infame de ditadura, prepotência, censura, monopólio da informação e outros nomes execráveis. Ora a liberdade de imprensa é só a liberdade de os senhores jornalistas dizerem o que lhes vai a peito e dá na gana. E quando alguém humildemente reponta contra esta (nova) prepotência, suas excelências enrouquecem a protestar contra os que lhes negam o direito de informarem, ou seja de informarem o que lhes apetece. Porque é que os mandões do Notícias cortaram o meu nome numa singela dedicatória? Ora. Por falta de espaço, por descuido, por se não ver a necessidade dela, por. Mas seria interessante saber-se que antes disso houve a minha recusa, por motivos de saúde, de ser instrumentalizado, no nome «do prestígio», para fazer parte do júri do Prémio a que o jornal dá o nome e o bago. Simples, não é? Mas vá lá alguém dizer-lhes isso, que o queimam logo em efígie.
Mas o artigo. Listopad está de acordo com o que eu disse e já antes tinha dito num ensaio publicado no Comércio do Porto e incluído no Espaço do Invisível-II. Com a pequenina diferença de que para mim as ideologias se não impõem, se não criam à força, mas dimanam necessariamente do estado de coisas do Mundo. Os valores têm de nascer, porque o homem é de sua natureza um ser de projectos. Mas não se projecta o que nos dá na real gana e é antes, não uma causa de se valorizar, mas um efeito disso. Por enquanto não temos nada a promover a «valor». Mas havemos de ter, sem sabermos que os vamos ter, antes de já os termos. O mito orienta-nos depois de o ser. Mas antes, no irmos sendo, o mito mitifica-se. E é do que estamos à espera. E a História connosco.
*
A luz, a luz. Ela já me deslumbra o escritório e acende os livros das estantes até às sombras que houver neles. E eu sou contente com a verdade de uma criança, que é não ser no que é, que é ser fora de si. A luz. A alegria. A vertigem da criação. O incêndio de Deus.
VF 

segunda-feira, 11 de março de 2013

Coimbra, 11 de Março de 1990

Coimbra, 11 de Março de 1990 – A Lituânia proclamou a independência. Um frágil David báltico, de funda na mão, a desafiar os tanques do Golias eslavo.
Miguel Torga

Coimbra, 11 de Março de 1981


                                       LUTA


O que eu sonho!
A fé que ponho
Na imaginação!
Digo à razão
Que sim, que desvario
Nesta humana aventura,
E ergo mais a lança em desafio
E desço mais o elmo da loucura.

Nada conquisto, porque são moinhos
Os gigantes que encontro nos caminhos
Das minhas digressões.
Mas combato,
Combato
E desbarato
As próprias ilusões.
Miguel Torga

11 – Março (domingo). [1990]

A Rita fez ontem vinte anos. É uma conta redonda que como todas elas tem o sinal de um fechar de contas e de um abrir de conta nova. Rita não me pareceu sentir isso. Com estranheza minha, da do que eu fui quando cheguei aos vinte, ela apenas sentia que estava velha. Vinte anos eram outrora o começo triunfal da nossa maioridade ou seja de um verdadeiro começo de se ser gente. Mas hoje a juventude acelera as coisas e sente-se gente mais cedo. De modo que as contas têm um outro acerto. A Regina sugeriu-me que eu fizesse uns versos para a cerimónia de investidura. Tenho feito um pouco disso a vários propósitos. É um jogo de diversão como a sueca ou o dominó em tempos de isso se usar. Mas aborreceu-me ser instrumentalizado como um macaquinho a quem se pede uma habilidade. E recusei-me. Em todo o caso, já a sós comigo e como se fosse eu a ter a lembrança, lá versejei. Rita gostou com o seu gostar já um pouco cansado das brincadeiras juvenis. E como a minha habilidade não me acrescenta glória visível, não reproduzo os versos aqui. Coisa curiosa no entanto a anotar: em três cópias que fiz dos meus versos, cometo o mesmo erro de escrever «fizeste» por «somaste» para rimar com «tiraste». E sempre que reli essas cópias o que reli foi «somaste» onde escrevera «fizeste». Tal é a força subjectiva a sobrepor-se e a dominar a força da objectividade.
E pronto. Almoçámos no «Caleidoscópio», no Campo Grande, e como eu tinha sido acometido de uma fome invencível de que já nem tinha memória, comi bem e bebi melhor. E à pergunta formal de «como está isso»? – ou seja o manjar que escolhi – achei-a absurda e sem sentido, porque o bom apetite, como sabemos, come pedras e acha bom. Depois é que reconsiderei que afinal o porco, de que eu manducara uma costeleta, devia ser outro viúvo da porca de Murça…
*
Gostava tanto de saber o que não sei. Não para o saber, porque e depois? Como iria mover-me com tanta carga? Para o ter passado ao meu sangue no que é o seu espírito e leveza. Para o guardar numa arca, no que é a sua matéria e carrego.
*
Como estou triste. E porque é que estou triste? Não sei. Estou. Há-de haver razões, porque eu prezo-me de ser um animal racional. Mas elas devem vir desde o meu berro ao nascer e já agora não vale a pena saber. Estou triste. E não me macem com porquês. É aliás uma tristeza calma e tépida. Não se está lá mal. Vou mesmo na corrente.
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Aceito cada vez mais a morte como quem fecha à noite a porta de casa. Mas assusto-me sempre, quando se me solta a ameaça de uma morte súbita, como quem ouve pela noite baterem-lhe à porta. Onde está o que é mais verdade?
VF