Hoje é o dia dos trabalhadores. É
coisa que nunca foi connosco – com a Regina e comigo – e agora muito menos que
já estamos na prateleira. Viemos portanto celebrá-lo no ripanço de Fontanelas.
Mas mesmo quando trabalhava, não era admitido na classe. Gramar a estucha dos meninos
calaceiros e malcriados, levar tardes a desbastar resmas de exercícios, apanhar
com a chumbada dos exames das nove da manhã às tantas da tarde, receber por
isso e o mais um salário quase só espiritual como competia à minha missão de tratar
a espírito a matéria bruta dos matulõezinhos, tudo isso não era trabalho, mas
um passatempo divertido. Havia uma tradição antiga de esse ofício ser para
escravo e é o que ainda se mantêm, mas um escravo nunca foi um trabalhador, por
falta de dignidade para o ser. De modo que, já passado a desperdício social
como escravo gasto e roído de ferrugem, sou escravo a dobrar. Assim me não
resta mais nada senão saudar da minha lixeira de ferro-velho, com inveja e
ranger de dentes, os proprietários do trabalho, desejando-lhes para hoje dose
reforçada de lagosta.
*
A Arte não é um absoluto,
contrapõe-me um amigo, porque há nela sempre uma possível imperfeição. A Arte
não é a verdade, anota-me outro, porque é apenas uma sua via de acesso.
Discordei, naturalmente. Porque o que importa para o caso na arte não é a
imperfeição da sua obra, mas o senti-la ou não em consonância comigo no acto de
a ver. Por imperfeita que seja, se eu adiro a ela e a sinto em mim, ela
suspende-se no absoluto da emoção que me desperta e tem o absoluto intemporal
do instante que assim mesmo está fora do
tempo e se fecha em si separado de tudo o mais. O relativo de tal obra pode
sobrevir depois ou enquanto a observo com uma intenção analítica de crítico ou
simples observador. Ela é então a qualidade da cor, da matéria, do desajuste de
linhas, sons, imagens, do já visto,
da falta de originalidade, etc. Mas quando supero tudo isso ou nada disso vem
ao de cima da minha atenção e a obra se instala na sua pureza de ser, ela é um
absoluto – como o pode ser, aliás, uma emoção que me toma e absorve a
totalidade do que sou. Com a diferença da qualidade
do que é a obra, e a emoção vulgar, que só é arte como possibilidade de o ser,
quando transposta para sublimação pela arte. Quanto ao não ser a «verdade» mas
uma via de acesso, a observação a fazer é idêntica. Que é a verdade senão a
coincidência de quem somos com aquilo que se propõe à nossa adesão? Uma obra de
arte é a sua irredutibilidade, a proposta, sem mais, daquilo que nos fala para
a aceitarmos ou rejeitarmos, mas nunca o discuti-la
como se discutem as ideias. A zona ou extensão de verdade é imensa e a obra de
arte é um modo de se nos mostrar ou estar presente. Não se trata de uma
«fracção» dela mas dela toda na sua variedade de se presentificar. A verdade de
uma estátua grega é a mesma de um quadro de Cèzanne, porque se o
não fosse nós seríamos contraditórios connosco mesmos. Se eu amei um quadro e
depois deixei de amá-lo, a verdade dele ausentou-se-me. Porque a verdade ou a
emoção em tudo o que tem que ver com uma relação comigo é em mim que se decide. Se eu acho estúpida uma anedota e outro ri
largamente com ela, a anedota é mesmo estúpida porque ela assim se me oferece e
ninguém pode ser por nós. A graça que ela (me) tem pertence ao inominável que a
transcende e me é impossível determinar. E a estupidez dela também, se ela (me)
não tem verdade alguma para lá da sua estupidez. E a verdade dela é o ser
estúpida.
*
O Lúcio telefonou como todos os
dias. A Gi atendeu como todos os dias. Mas no fim quis falar comigo. Era para
me dizer que tinha acabado o romance (lido em fotocópia do dactilografado) e
fazia questão de me dizer que gostara muito. Ia-mo dizendo à medida que o ia
lendo, intervalado aos livros de estudo. Mas agora tratava-se de rematar as
impressões. E as impressões eram que eu no fim acelerara mas que esse fim era
bonito e que ficara a amar mais a vida. Esta última anotação foi a que mais me
agradou. Porque ela corresponde ao meu desejo e contrapõe-se ao que outros
pensarão, ou seja que é um livro «deprimente». Mas o mais curioso foi ele achar
que eu acelerara o desfecho. Deve ser verdade. E a razão é que este livro
foi-me o mais penoso de escrever, porque os meus nervos não aguentavam a
fadiga. E devia estar cheio de pressa de aliviar a carga.
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