terça-feira, 25 de junho de 2013

Vergílio Ferreira: 25 – Junho (segunda). [1990]

25 – Junho (segunda). Fui ao correio da Praia das Maçãs. Estava fechado. Havia um empregado que se aposentou. Veio substituí-lo creio que interinamente uma senhora ainda viável, mas já pousada. E hoje não apareceu. À porta havia outros necessitados e cavaqueámos um pouco. Estaria a senhora no choco? Fora transferida? Estaria em reunião a preparar uma greve? Tudo eram hipóteses plausíveis para uma situação real. Passava mais de meia hora do horário que estava à porta. E desandei.
E chegado a casa pus-me a pensar se devia reflectir sobre a minha cabeça em desalinho ou sobre o estado de coisas da cultura em tremor de terra. Sobre a cabeça concluí uma vez mais que devia deixar de beber, mesmo o inocente copo às refeições. Porque tudo o mais vem em cadeia. Fumei um cigarro, que é como meter o termómetro. Não aumentou a febre, ou seja o desarranjo. E tento agora pensar o meu país com a tremenda desorientação vinda de Leste. O jornal comuna O Diário fechou para arranjos das finanças e dos comissários. E foi tudo para a rua. No Expresso de ontem lá os vi, a esses jornalistas despedidos, todos como órfãos em abandono, murchos, o ar enrascado. E à frente deles, de perfil, com o lacinho em asa de borboleta, o Bau-Bau com o ar idiota, no meio de toda aquela orfandade. Estes doces comunas quando alguém era despedido nas empresas capitalistas, aumentavam enormemente os decibéis com protestos de atroar. E agora, ó divas do protesto e da desordem? Com os outros a falta de «bago» não era razão bastante para se pôr alguém na rua. E agora? Como ides vós acertar as contas da vossa conta justiceira? Mas o problema é mais vasto e mais grave. O problema é que, já desde o 25 de Abril, ou antes, do 25 de Novembro, muitos e muitos que viviam à vossa sombra ficaram no desemprego. Sobretudo agora que o Leste abriu falência. Pois em nome de quê esses muitos e muitos sacanóides vão agora justificar as sacanices? Já no tempo do defunto Salazar eles viviam bem. Tinham boa reputação, eram gajos porreiros, tinham talento e encosto nos jornais, editoras, passa-palavra dos cafés, editoras estrangeiras – formavam uma rede mais forte e extensa do que os judeus, a maçonaria, a Opus Dei e os panascas. E agora como é que é? Que vão eles fazer da farrapada dos seus autores e dos seus livros? (Interrompido).
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Como é que o fanatismo exacerba tanto o ódio? Ou como é que, para justificar-se o ódio, se exacerba o fanatismo? É fabuloso até onde pode ir o desejo de odiar, a paralela e exaltada alegria com a tragédia do inimigo. O ódio que se deseja e ama, funda a sua dimensão na dimensão do que se pretende que o justifique. Por isso o absoluto da religião é o que de melhor serve o absoluto do ódio. E à falta disso, a política serve perfeitamente. Quando o Sá-Carneiro morreu de desastre, houve quem rebentasse numa alegria imensa e bebesse champanhe para comemorar. Já devo ter falado no livro sobre Malraux, escrito pelo sobrinho-enteado (filho da cunhada, casada com o meio-irmão Roland, assassinado pelos alemães, e com quem veio a casar por sua vez). Nesse livro conta-se que tendo morrido em desastre de automóvel os dois filhos de Malraux (da ligação com Josette Clotis), houve quem lhe manifestasse a alegria por isso, em razão de ódio político. Não é isto tenebroso? O homem não tem limites. Para o bem e para o mal. Assim ele se mede com Deus e com o mais infame dos diabos. Aliás, agrada-me acrescentar, a propósito de Malraux, se o não disse ainda, que no dia seguinte ao do enterro dos seus filhos, que acompanhou, compareceu a um conselho de ministros com o espanto e consternação de todos eles.
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Toda a obra de arte nasce de um acordo entre o artista e o real. É um real, que a si mesmo muitas vezes se desconhece, mas que está lá. Senão, como poderia amanhã reconhecer-se a validade da obra? Mas o real de hoje não existe para que a obra exista também. O real de hoje é o seu impossível de ser. E é esse o impossível da obra. 

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