25 – Junho (segunda). Fui ao correio da Praia das Maçãs.
Estava fechado. Havia um empregado que se aposentou. Veio substituí-lo creio
que interinamente uma senhora ainda viável, mas já pousada. E hoje não
apareceu. À porta havia outros necessitados e cavaqueámos um pouco. Estaria a
senhora no choco? Fora transferida? Estaria em reunião a preparar uma greve?
Tudo eram hipóteses plausíveis para uma situação real. Passava mais de meia
hora do horário que estava à porta. E desandei.
E chegado a casa
pus-me a pensar se devia reflectir sobre a minha cabeça em desalinho ou sobre o
estado de coisas da cultura em tremor de terra. Sobre a cabeça concluí uma vez
mais que devia deixar de beber, mesmo o inocente copo às refeições. Porque tudo
o mais vem em cadeia. Fumei um cigarro, que é como meter o termómetro. Não
aumentou a febre, ou seja o desarranjo. E tento agora pensar o meu país com a
tremenda desorientação vinda de Leste. O jornal comuna O Diário fechou para arranjos das finanças e dos comissários. E foi
tudo para a rua. No Expresso de ontem
lá os vi, a esses jornalistas despedidos, todos como órfãos em abandono,
murchos, o ar enrascado. E à frente deles, de perfil, com o lacinho em asa de
borboleta, o Bau-Bau com o ar idiota, no meio de toda aquela orfandade. Estes
doces comunas quando alguém era despedido nas empresas capitalistas, aumentavam
enormemente os decibéis com protestos de atroar. E agora, ó divas do protesto e
da desordem? Com os outros a falta de «bago» não era razão bastante para se pôr
alguém na rua. E agora? Como ides vós acertar as contas da vossa conta
justiceira? Mas o problema é mais vasto e mais grave. O problema é que, já
desde o 25 de Abril, ou antes, do 25 de Novembro, muitos e muitos que viviam à
vossa sombra ficaram no desemprego. Sobretudo agora que o Leste abriu falência.
Pois em nome de quê esses muitos e muitos sacanóides vão agora justificar as
sacanices? Já no tempo do defunto Salazar eles viviam bem. Tinham boa
reputação, eram gajos porreiros, tinham talento e encosto nos jornais,
editoras, passa-palavra dos cafés, editoras estrangeiras – formavam uma rede
mais forte e extensa do que os judeus, a maçonaria, a Opus Dei e os panascas. E agora como é que é? Que vão eles fazer da
farrapada dos seus autores e dos seus livros? (Interrompido).
*
Como é que o
fanatismo exacerba tanto o ódio? Ou como é que, para justificar-se o ódio, se
exacerba o fanatismo? É fabuloso até onde pode ir o desejo de odiar, a paralela
e exaltada alegria com a tragédia do inimigo. O ódio que se deseja e ama, funda
a sua dimensão na dimensão do que se pretende que o justifique. Por isso o
absoluto da religião é o que de melhor serve o absoluto do ódio. E à falta
disso, a política serve perfeitamente. Quando o Sá-Carneiro morreu de desastre,
houve quem rebentasse numa alegria imensa e bebesse champanhe para comemorar.
Já devo ter falado no livro sobre Malraux, escrito
pelo sobrinho-enteado (filho da cunhada, casada com o meio-irmão Roland,
assassinado pelos alemães, e com quem veio a casar por sua vez). Nesse livro
conta-se que tendo morrido em desastre de automóvel os dois filhos de Malraux
(da ligação com Josette
Clotis), houve quem lhe manifestasse a alegria por isso, em razão de ódio
político. Não é isto tenebroso? O homem não tem limites. Para o bem e para o
mal. Assim ele se mede com Deus e com o mais infame dos diabos. Aliás,
agrada-me acrescentar, a propósito de Malraux, se o não disse ainda, que no dia
seguinte ao do enterro dos seus filhos, que acompanhou, compareceu a um
conselho de ministros com o espanto e consternação de todos eles.
*
Toda a obra de
arte nasce de um acordo entre o artista e o real. É um real, que a si mesmo
muitas vezes se desconhece, mas que está lá. Senão, como poderia amanhã reconhecer-se
a validade da obra? Mas o real de hoje não existe para que a obra exista
também. O real de hoje é o seu impossível de ser. E é esse o impossível da
obra.
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