domingo, 23 de junho de 2013

Vergílio Ferreira: 23 – Junho (sábado). [1990]

23 – Junho (sábado). Estava com vontade de me queixar. Mas não o posso fazer porque os outros estão fartos. Em princípio não gosto muito porque é como se me estivesse a queixar para mim mesmo e este eu mesmo se sentisse incomodado comigo. De um lado o queixoso e do outro o que tinha de o gramar. Não entenderam? Nem eu. Mas é assim. Em todo o raso, ser capaz de me lamuriar não tem um sinal totalmente negativo. Porque o máximo da queixa é o silêncio com uma corda ao pescoço. Mas o apetite é realmente grande. A sensação triste do fim. É a paisagem que se me abre em frente, para qualquer lado que me vire. Que é que quer dizer eu ter publicado um livro mesmo assim? Está-se a vender mal e é bem feito. As pessoas que o lêem têm mordido nele com avidez. Mas isso passa à margem do grande público. Que é que hoje se pode ler além do que dizem os noticiários? Para diversão, está aí o campeonato do mundo de futebol. E o meu livro não é divertido. Sinto a vida escoar-se – a do meu físico e psíquico, a de tudo e todos que me rodeiam, a da própria cultura, que era o que sustentava o mais. A ameaça não da morte mas a de ir morrendo põe-me em pânico. Não no pânico abrupto como em face de um perigo súbito, mas no pânico de desamparo, de abandono e afundamento. Cumpriu-se o que eu previra há muito tempo, mas prever não é estar metido no que se previu. E, no entanto, as pessoas em geral não se dão conta disso. Estarei eu taralhouco? Estou cansado, desarranjado dos nervos, seguro de que isto está por pouco, sem um futuro plausível que me recrie um projecto. É duro não ter projectos. Porque um projecto estende-me a vida até à possibilidade de o realizar. Estou tremendamente em baixo. E acabou a conversa.
*

Que me resta dizer e valha a pena dizer? Porque é limitado o que há a dizer, mesmo para os que têm um largo reservatório. O meu não o é. E uma ideia que se exprima entra logo em declínio, assim que for entendida. Algumas levam tempo a sê-lo e isso é o melhor para durarem. Às vezes essa duração, após mesmo o seu entendimento, não é já bem a delas mas das que nelas se geraram. E aí a obra de arte é a que menos se desgasta como a de tudo o que apenas é. Não tenho mais nada a dizer e isso mo fazem sentir os que de um novo livro meu o registam como remake. Mas toda a obra é um remake das que um dia se escreveram, porque o inevitável num artista – num homem que se afirmou seja no que for – é a repetição. E todavia é invencível a necessidade de nos não repetirmos. Uma obra que se multiplica não pode deixar de ser o diverso no igual. Sinto no entanto a evidência de que tudo o que disse está a mais. Contei no meu último romance a história de um velho que para o fim da vida passava os seus dias a olhar para a parede. Aflige-me a ideia e sinto-lhe a fatalidade. A minha parede é o estar sem mais. Ver, ouvir. E recuperar aí uma inocência perdida. 

Sem comentários:

Enviar um comentário