sábado, 15 de junho de 2013

15 – Junho (sexta). [1990]

15 – Junho (sexta). Ontem estiveram aí os Bragas (Helena e Mário) e fomos almoçar a Janas. E depois do almoço o Mário Braga rompeu estrada fora em digressão digestiva. Onde é que vais? perguntei-lhe eu, já inquieto de insegurança doméstica. Não sei, disse ele, vamos por aí, talvez a Mafra. A Mafra? A ver o quê? O Saramago? Vamos à Ericeira e depois a Mafra? Fomos, quero dizer, íamos indo. E chegados à Ericeira, senti-me logo abafado de betão armado e multidão. Subitamente o país pôs-se a viver a cem graus. E a qualquer ponto a que se chegue é assim. Houve uma longa hibernação e agora tudo disparou para o frenesim. Já o tinha verificado há pouco em Évora, vi-o há uns dois anos na Guarda, vi-o mesmo na minha aldeia de Melo. A Guarda do meu tempo vivia no seu ninho ao cimo do monte. Hoje alastrou por toda a encosta até cá baixo à Estação. Melo estava quase morta e foi isso, aliás, que me levou a interromper Alegria Breve, que já ia a meio, e recomeçar o livro para o que ficou. Portanto, a Ericeira. Prédios altos de cimento, ruas coalhadas de carros, e gente e gente. Mas demorámo-nos um pouco para visitarmos uma espécie de aldeia miniatura e uma «cascata», ou seja uma multiplicada panorâmica de homens em movimento na prática de vários mesteres – serrar lenha, puxar água à manivela e por aí – uma engenhoca de um inventor popular cheio de jeito e paciência. À passagem dos visitantes estava um homem na pedincha, mas era horroroso. Tinha uma saca imensa pendente do queixo, de um bócio horrendo. Porque é que se não opera? perguntei-lhe. Porque os médicos lhe dizem que a operação o mataria. Verdade? Porque eu já o vira em Lisboa, ao fundo da rua do Carmo, com a saca do bócio e a mão estendida. Sim, era ele, o homem confirmou. Eu, horrorizado, meti ainda a mão no bolso para a espórtula, mas houve em mim não sei que entrave de repugnância, vindo do horror do homem e do horror da esmola. Mas o Mário Braga, rápido, meteu-lhe na mão uma nota de cem paus e eu aproveitei para não dar. Relembro isto aqui e de novo sobe em mim uma repulsa de vómito que deve ter que ver com o inimaginável da degradação e deformidade na imagem estável em nós de um corpo normal. Como esta normalidade possibilita a repugnância mais incrível. Rompemos enfim para Mafra, mas não chegámos a parar e apenas rasámos de lado o mosteiro. Regressámos a Fontanelas, estendemo-nos ao sol da mata. Estava áspero, o sol. Depois chazou-se. Disse-se mal, naturalmente, mas já não sei de quê. Depois foram-se embora. Dei-lhes o Em Nome da Terra. Iam ler, diriam coisas quando lessem. Estou, aliás, bem precisado de que me digam. Tudo calado. Mas também não quero perguntar.
E restabelecida a paz doméstica, pude enfim ler o jornal. Naturalmente o que mais me importa é o que vai pelo Leste – que é o que reflexamente vai de importante em todo o Mundo. A Leste as coisas não estão claras. Na Bulgária e sobretudo na Roménia acontece uma coisa curiosa e é que os comunas não despegam. Dir-se-á depressa que é isso a prova de que o comunismo afinal tinha alguma razão. E os que a isso se opõem respondem que o medo é ainda muito grande. E é ou deve ser. Pois como ter a certeza de não haver uma reviravolta? E como pagar depois as contas? Muito bem. Mas como explicar que nas eleições livres promovidas pelo Marcelo a oposição não ganhou? Medo? Não me digam. Meio século de um qualquer regime cria o hábito do conformismo e do gosto da estabilidade. Para que assim não fosse era necessário que o povo fosse o mito com que o mitificam. Coitado do povo. Bom. Mas eu tenho que me despachar para arrumar os papéis. E anoto portanto apenas um pequeno pormenor. Mas antes disso já pus aqui em reflexão a espantosa ideia de Ieltsine ter separado da União Soviética a Grande Rússia? Estão a ver a jogada? Tomar independente o próprio núcleo do país? Imaginem que o nosso continente se «separava» do todo nacional em que entram também os Açores e a Madeira. Paremos. O pormenor que eu quero anotar é só este: a União Soviética acaba de renunciar ao socialismo e adoptar uma economia de mercado. E depois disso o Gorbatchev declara que continua visceralmente a ser comunista [1]. Há cerca de 40 anos eu escrevi um conto sobre isto. Chama-se «linha Quebrada». Não me digam que sou profeta, que os racho. Porque tenho é apenas uma vista razoável sem precisar ainda de óculos e uma coisa que antigamente se chamava consciência e que ainda não usa testeiras.
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Esteve aqui há pouco a Brígida, minha colega dos tempos de Faro e aí professora de Educação Física. Deu-me algumas explicações para a Mónica do meu romance e veio aqui a casa para me falar do livro. Leu-o de enfiada, mas com um certo acabrunhamento em saldo. Gostou mas com um certo gosto amargo. Escreva agora um livro alegre, disse-me. Mas esse livro é alegre, disse eu, porque o resultado final deve ser um maior amor à vida. De resto, não escreverei romance. Três anos me levou este, quatro me levaria talvez outro e na aritmética da minha idade a conta já não dá para isso. Como não dá? contrapôs. Você tem já a máquina montada, é só meter-lhe outra história. Que podia eu dizer-lhe? Há os escritores felizes que em duas ou três semanas despacham um livro como esse que há dias ganhou o prémio do Notícias. Não me fizeram os deuses assim abonado. Você leu o livro de um jacto. Mas um simples almoço que se come em meia hora leva muitas mais a fabricar.



[1] Ontem na TV C9.3.93) em entrevista, a propósito do Mário Soares, dizia-se profundamente social-democrata. 

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