15 – Junho (sexta). Ontem estiveram aí
os Bragas (Helena e Mário) e fomos almoçar a Janas. E depois do almoço o Mário
Braga rompeu estrada fora em digressão digestiva. Onde é que vais? perguntei-lhe
eu, já inquieto de insegurança doméstica. Não sei, disse ele, vamos por aí,
talvez a Mafra. A
Mafra? A ver o quê? O Saramago? Vamos à Ericeira e depois a Mafra?
Fomos, quero dizer, íamos indo. E chegados à Ericeira, senti-me logo abafado de
betão armado e multidão. Subitamente o país pôs-se a viver a cem graus. E a
qualquer ponto a que se chegue é assim. Houve uma longa hibernação e agora tudo
disparou para o frenesim. Já o tinha verificado há pouco em Évora, vi-o há uns dois
anos na Guarda, vi-o mesmo
na minha aldeia de Melo.
A Guarda do meu tempo vivia no seu ninho ao cimo do monte. Hoje alastrou por
toda a encosta até cá baixo à Estação. Melo estava quase morta e foi isso,
aliás, que me levou a interromper Alegria
Breve, que já ia a meio, e recomeçar o livro para o que ficou.
Portanto, a Ericeira. Prédios altos de cimento, ruas coalhadas de carros, e
gente e gente. Mas demorámo-nos um pouco para visitarmos uma espécie de aldeia
miniatura e uma «cascata», ou seja uma multiplicada panorâmica de homens em
movimento na prática de vários mesteres – serrar lenha, puxar água à manivela e
por aí – uma engenhoca de um inventor popular cheio de jeito e paciência. À
passagem dos visitantes estava um homem na pedincha, mas era horroroso. Tinha
uma saca imensa pendente do queixo, de um bócio horrendo. Porque é que se não
opera? perguntei-lhe. Porque os médicos lhe dizem que a operação o mataria.
Verdade? Porque eu já o vira em Lisboa, ao fundo da rua do Carmo, com a saca do
bócio e a mão estendida. Sim, era ele, o homem confirmou. Eu, horrorizado, meti
ainda a mão no bolso para a espórtula, mas houve em mim não sei que entrave de
repugnância, vindo do horror do homem e do horror da esmola. Mas o Mário Braga,
rápido, meteu-lhe na mão uma nota de cem paus e eu aproveitei para não dar.
Relembro isto aqui e de novo sobe em mim uma repulsa de vómito que deve ter que
ver com o inimaginável da degradação e deformidade na imagem estável em nós de
um corpo normal. Como esta normalidade possibilita a repugnância mais incrível.
Rompemos enfim para Mafra, mas não chegámos a parar e apenas rasámos de lado o
mosteiro. Regressámos a Fontanelas,
estendemo-nos ao sol da mata. Estava áspero, o sol. Depois chazou-se. Disse-se
mal, naturalmente, mas já não sei de quê. Depois foram-se embora. Dei-lhes o Em Nome da Terra. Iam ler,
diriam coisas quando lessem. Estou, aliás, bem precisado de que me digam. Tudo
calado. Mas também não quero perguntar.
E restabelecida
a paz doméstica, pude enfim ler o jornal. Naturalmente o que mais me importa é
o que vai pelo Leste – que é o que reflexamente vai de importante em todo o
Mundo. A Leste as coisas não
estão claras. Na Bulgária
e sobretudo na Roménia
acontece uma coisa curiosa e é que os comunas não despegam. Dir-se-á depressa
que é isso a prova de que o comunismo afinal tinha alguma razão. E os que a
isso se opõem respondem que o medo é ainda muito grande. E é ou deve ser. Pois
como ter a certeza de não haver uma reviravolta? E como pagar depois as contas?
Muito bem. Mas como explicar que nas eleições livres promovidas pelo Marcelo a oposição não
ganhou? Medo? Não me digam. Meio século de um qualquer regime cria o hábito do
conformismo e do gosto da estabilidade. Para que assim não fosse era necessário
que o povo fosse o mito com que o mitificam. Coitado do povo. Bom. Mas eu tenho
que me despachar para arrumar os papéis. E anoto portanto apenas um pequeno
pormenor. Mas antes disso já pus aqui em reflexão a espantosa ideia de Ieltsine ter
separado da União
Soviética a Grande
Rússia? Estão a ver a jogada? Tomar independente o próprio núcleo do país?
Imaginem que o nosso continente se «separava» do todo nacional em que entram
também os Açores e a Madeira. Paremos. O pormenor
que eu quero anotar é só este: a União Soviética acaba de renunciar ao
socialismo e adoptar uma economia de mercado. E depois disso o Gorbatchev declara que
continua visceralmente a ser comunista [1]. Há
cerca de 40 anos eu escrevi um conto sobre isto. Chama-se «linha
Quebrada». Não me digam que sou profeta, que os racho. Porque tenho é
apenas uma vista razoável sem precisar ainda de óculos e uma coisa que
antigamente se chamava consciência e que ainda não usa testeiras.
*
Esteve aqui há
pouco a Brígida, minha colega dos tempos de Faro e aí professora de Educação
Física. Deu-me algumas explicações para a Mónica do meu romance e veio aqui
a casa para me falar do livro. Leu-o de enfiada, mas com um certo
acabrunhamento em saldo. Gostou mas com um certo gosto amargo. Escreva agora um
livro alegre, disse-me. Mas esse livro é alegre, disse eu, porque o resultado
final deve ser um maior amor à vida. De resto, não escreverei romance. Três
anos me levou este, quatro me levaria talvez outro e na aritmética da minha
idade a conta já não dá para isso. Como não dá? contrapôs. Você tem já a
máquina montada, é só meter-lhe outra história. Que podia eu dizer-lhe? Há os
escritores felizes que em duas ou três semanas despacham um livro como esse que
há dias ganhou o prémio do Notícias. Não me fizeram os deuses assim
abonado. Você leu o livro de um jacto. Mas um simples almoço que se come em
meia hora leva muitas mais a fabricar.
[1] Ontem na TV C9.3.93) em
entrevista, a propósito do Mário Soares, dizia-se profundamente
social-democrata.
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