sexta-feira, 21 de junho de 2013

21– Junho (quinta). [1990]

21– Junho (quinta). Não passes mais na minha memória, não passes. Aquieta-te no sem-fim do lembrar. Para invenção de mim nas horas difíceis de abandono ao impossível que está sempre na minha memória sem razão. Não há realidade no real que relembro, porque essa realidade sou eu. Sossega no teu nada, não voltes mais. O que escrevo não foi, é o absoluto do meu imaginar. Esfuma-te na balada que eu ouça, está só na sua música de pobreza e sê lá só a ficção de ti. Que a sombra que te trouxe te leve de novo para sempre. E a melancolia que nela vive seja a razão verdadeira de te esquecer.
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Dentro de dias a Regina parte de novo num grupo excursionista para um longe e incerto de legenda. Índia, suponho, ou arredores desse longe. Há dois prazeres nela irreprimíveis que é viajar e falar. E eu apenas me reencontro na quietude e silêncio.
– Está quieto e calado.
Vem-me a ordem desde a infância. E ficou-me até hoje o jeito de obedecer.
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Não passes mais no meu imaginar. Aquieta-te para sempre no sem-fim da memória.
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Outra vez a contas com os sacanas dos dentes. De vez em quando levanta-se um vendaval e lá se vai mais um. Estou agora com o sorriso todo esburacado. Mas vou acrescentar a prótese para tapar os buracos. Não quero apresentar-me diante do Padre Eterno em condições estéticas desagradáveis.
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Esquecia-me. Hoje começou o Verão. Mas o céu fez-lhe um manguito. Faço-o eu também para acompanhar. E há uma morte a registar, ocorrida a 19. Era a de um pintor «abstracto» da família do Rotko, talvez Nicholson, e de outros que deve ter vindo a haver e já desisti de saber quem são. Tinha 55 anos. Morreu de cancro, essa tuberculose moderna. Tinha boa qualidade na sua pintura. Conhecia-me desde há uns trinta anos ou quarenta. Mas nunca mais quis continuar ou renovar esse conhecimento. Foi meu aluno uns dois anos (bom, mas não brilhante) em Évora como o seu companheiro nas lides artísticas Álvaro Lapa, que também foi meu aluno aí durante uns quatro ou cinco anos (brilhante) e que também mandou a minha memória às malvas e fez bem. Chamava-se Joaquim Bravo. Paz à sua alma e glória à sua arte.

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