Gorongosa, 4 de Junho de 1973 – Caçada, só para
ver como era. Cinco horas enterrado no capim à procura de rastos, através dum
nariz e duns olhos nativos, e a alvejar a presa a duzentos metros de distância
com carabinas de precisão. Que saudades de uma perdiz bem mandada numa encosta
do Douro, abatida de papo! Porque, verdadeiramente, a grande emoção do dia
tive-a no terreiro da aldeia indígena, muito verosimilmente de guerrilheiros,
onde acampámos. Por muito que viva nunca esquecerei o pasmo irónico de três
mulheres aborígenes, que não entendiam uma palavra de português, e o olhar
oblíquo de um bando de homens sentados à roda da caçoila de fuba, enquanto nós
nos banqueteávamos. Caras estranhas, enigmáticas, onde a minha má consciência
branca lia o ódio, e talvez espelhassem apenas a instintiva desconfiança em
qualquer natural por um semelhante que o não é. Entre mim e aqueles irmãos de
espécie abria-se um abismo intransponível com quinhentos anos de largura. Desse
as voltas que desse, eu era ali um inimigo. De nada valia o meu desejo sincero
de dizer uma palavra de simpatia a cada um, de lhes ouvir uma melopeia, de
acarinhar as crianças que espreitavam receosas do fundo das cubatas. A
fraternidade, a poesia e a ternura chegavam tarde ou cedo demais. E fiquei ali
de coração apertado, sempre a deitar o rabo do olho à espingarda, nem pessoa,
nem poeta, nem coisíssima nenhuma. Sem coragem sequer para rufar num tambor que
ao lado me desafiava os dedos, não fosse o meu gesto fazer explodir aquele
contido dinamite tribal...
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