terça-feira, 4 de junho de 2013

Gorongosa, 4 de Junho de 1973.

Gorongosa, 4 de Junho de 1973 – Caçada, só para ver como era. Cinco horas enterrado no capim à procura de rastos, através dum nariz e duns olhos nativos, e a alvejar a presa a duzentos metros de distância com carabinas de precisão. Que saudades de uma perdiz bem mandada numa encosta do Douro, abatida de papo! Porque, verdadeiramente, a grande emoção do dia tive-a no terreiro da aldeia indígena, muito verosimilmente de guerrilheiros, onde acampámos. Por muito que viva nunca esquecerei o pasmo irónico de três mulheres aborígenes, que não entendiam uma palavra de português, e o olhar oblíquo de um bando de homens sentados à roda da caçoila de fuba, enquanto nós nos banqueteávamos. Caras estranhas, enigmáticas, onde a minha má consciência branca lia o ódio, e talvez espelhassem apenas a instintiva desconfiança em qualquer natural por um semelhante que o não é. Entre mim e aqueles irmãos de espécie abria-se um abismo intransponível com quinhentos anos de largura. Desse as voltas que desse, eu era ali um inimigo. De nada valia o meu desejo sincero de dizer uma palavra de simpatia a cada um, de lhes ouvir uma melopeia, de acarinhar as crianças que espreitavam receosas do fundo das cubatas. A fraternidade, a poesia e a ternura chegavam tarde ou cedo demais. E fiquei ali de coração apertado, sempre a deitar o rabo do olho à espingarda, nem pessoa, nem poeta, nem coisíssima nenhuma. Sem coragem sequer para rufar num tambor que ao lado me desafiava os dedos, não fosse o meu gesto fazer explodir aquele contido dinamite tribal...

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