Por estar um dia
bonito e eu de férias, lembrei-me de ir ver a rota do extinto contrabando.
Por alturas de S.
Cornélia, concelho de Chaves, avistei ao longe um grande incêndio. Espessos
rolos de fumo esbranquiçado, em ondas cada vez mais amplas, encastelavam-se
serenamente no azul alvadio do céu. Lembrei-me da conhecida imagem do cogumelo
da bomba atómica e estremeci. Mas continuei.
Pelo sim, pelo não,
resolvi informar-me.
À porta dum snack-bar estava um carro de bombeiros.
Dirigi-me a eles. Eram quatro, ainda jovens, dois sentados a beber qualquer
coisa e os outros dois a jogar matrecos. Perguntei-lhes se poderia passar.
– Olhe que não sei.
Mas suponho que sim.
– Poderia informar-se
com os seus colegas pelo intercomunicador?
– Não trazemos lá
ninguém.
– Pode ir à vontade –
garantiu o dono do estabelecimento, de cotovelo recostado no balcão e ar
tranquilo.
A estrada começava a
descer.
Numa curva, ao lado
dum carro com a sigla RTP, um camera-man
filmava.
Mais abaixo, num
outeirinho terraplanado em miradouro, três automóveis e meia dúzia de mirones.
Ao fundo, num extenso
vale serpeado por um ribeiro, as chamas devoravam tranquilamente extensas matas
de carvalhos e pinheiros.
Num lameiro, a meia
encosta, um burro olhava também. Parecia tão admirado como eu.
Afinal, Nero tinha
razão. O fogo não é uma calamidade a combater. É um espectáculo a admirar.
Somos um país de nerozinhos pirómanos.
A informação do dono
do snack-bar estava certa: passei à
vontade.
Desci a Segirei, subi a Sernande, à Mesquita, à
Gudinha.
Dum e doutro lado da
fronteira, ao perto e ao longe, todas as grandes montanhas vomitavam fogo e
cinza.
Por alturas de Verin o sol desapareceu.
Apesar de ser ainda cedo, umas cinco horas da tarde deste fim de Agosto, os
carros circulavam de luzes acesas.
A caminho de Chaves,
vinham de encontro ao para-brisas nuvens de cinza e resíduos vegetais
carbonizados.
Comecei a sentir ardor
nos olhos e na garganta, dificuldades de respiração, sintomas de angústia.
Na esperança de
reencontrar em Barroso a limpidez de sol, ar e horizontes que deixara de madrugada,
acelerei em direcção a Peireses.
Puro engano. Barroso sufocava debaixo da mesma camada de fumo e cinza.
Lembrei-me de Pompeia. Será
que vamos morrer todos?
Saí para a rua a ver o
que diziam os meus vizinhos. Encontrei-os a todos «impávidos e serenos».
– Homessa!
No ocaso, o sol, que
descaía, era uma enorme bola de fogo. No oriente, a lua, que despontava, uma
descomunal hóstia de sangue. Entre um e outra, um céu carregado de cinzas. E os
meus vizinhos «impávidos e serenos»?
Para onde teria ido o
medo que, nos meus tempos de garoto, todos nós tínhamos do segundo dilúvio, o
qual, como dogmaticamente nos ensinavam, será de fogo?
Nesses primitivos e
ingénuos tempos, uma simples estrela cadente, punha todas as beatas da terra a
fazer o sinal da cruz e a rezar o acto de contrição.
Quem se não lembra da
aurora boreal na década de trinta do século passado? O que aquilo foi! Que
noite de terror e de lágrimas!
Monstruosas línguas de
fogo sobre a aldeia e toda a minha gente na rua, de joelhos, mãos postas, a rezar,
a bater no peito, a pedir perdão a Deus e ao próximo.
Eu era então muito
jovem e andava perdidamente enamorado duma vizinha da mesma idade. Como eu
fiquei quando a vi em camisa de noite pela curva do joelho, perna ao léu e pé
descalço. Como ela estava bonita e sedutora, no meio da rua, abraçada à mãe,
esta de joelhos, ela de pé, ambas a chorar como duas madalenas.
Aproximei-me. Já que
tinha de morrer, ao menos que morresse ao pé da minha amada.
Chego perto e que vejo
eu?
A minha diva a
mijar-se pelas pernas abaixo…
Será que hoje já
ninguém tem medo do fim do mundo?
Será que hoje já
ninguém se mija?
Que tempos estes!
Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS II
– Crónicas de Barroso (p. 65 e ss.)
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