segunda-feira, 24 de junho de 2013

Vergílio Ferreira: 24 – Junho (domingo). [1990]

24 – Junho (domingo). Dia de S. João. Évora, Évora. O calor alentejano, as noites sufocantes na nossa casa da rua da Mesquita, 28. Abríamos a janela de sacada do nosso quarto, a Regina às vezes levantava-se e ia para aí tomar o fresco. Do Rossio vinha-nos em revoadas pela noite dentro o rumor da feira. Depois ia arrefecendo para a madrugada. Évora, S. João, memória ardente do Alentejo. Nunca mais.
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Vieram aí os Bragas e fomos almoçar a Janas. O Mário Braga dá apoio para uma conversa. Mas quando tem a bola, atrapalha-se para no-la passar. Em todo o caso, passa. E depois do almoço e um passeio a ver o mar, regressámos a tempo de eu ver o Brasil-Argentina em futebol. Mas antes de virmos, quero ver ainda o mar. Que fascinação ele exerce sobre mim, nascido entre as pedras da montanha. É a fascinação do incomensurável e majestoso e potente, a sedução do sem-limite, da sua infinitude, o absurdo do incansável das suas ondas, a beleza irrepresentável da sua alvura, a doce e larga dormência do seu rumor. Bom, mas visto o mar na minha lembrança, vou ver enfim o jogo. Fiquei furioso contra o Brasil, o seu azar, a injustiça imensa do destino. O Brasil jogou infinitamente melhor que a Argentina, teve oportunidades sem conta de marcar, encheu o campo de espectáculo. Mas foram os outros que de três únicas boas aproveitaram logo uma e ficaram apurados. Fui ver o desafio a casa do Vasco por ser no Canal 2 e a minha caixa podre de TV só dá o 1. A propósito, o Vasco é pai há poucos dias de uma ainda minúscula e perfeitinha miúda. Vão-lhe chamar Joana, decerto para emparelhar com o mano já crescidinho que se chama João.
Portanto, o futebol. Um azar clamoroso. E quando vinha para casa, surgiu-me uma ideia curiosa. É frequente, falar-se na influência do cinema ou da música etc. na arte literária. Ninguém que eu saiba aproximou um certo tipo de escrita do futebol. Mas aproximam-se. A escrita hoje não caminha a direito ou mesmo na precisão de uma linha quebrada, mas em interrupções, desvios, ziguezagues, com avanços e recuos, retomados da progressão até ao disparo final. Creio que a minha escrita é um pouco isso.

E foi surpreso desta ideia que eu regressei a casa mais recomposto do desastre brasileiro. 

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