18 – Junho (segunda). Ontem foi um
dia «não» com o estupor da saúde (cabeça, tronco e membros, mas sobretudo a
cabeça). Espessura cerebral, mal-estar, tonturas, difícil trânsito de mim à
realidade, subtil ameaça de ir mesmo abaixo de vez.
Mas assim mesmo, em desconforto corporal, esteve aí o António Paixão e fui
convivente. Trazia ele um aparelhómetro nipónico e um cão. O aparelho era uma
coisa sofisticada, cheia de botões e vidros e destinava-se a filmar como já se
não diz, ou a gravar, como é já de dizer. Creio que por já não ficar na fita
uma imagem mas uma sinalização electrónica para dar imagem depois na TV.
Gravou-se mas depois, mesmo sem TV, pudemos ver-nos, ainda a preto e branco,
espreitando por um certo buraquinho. Lá estávamos a Regina e eu, em suficiente fotogenia.
Eu sobretudo, se mo permitem com as minhas cãs. Quanto ao cão, é um bicho antediluviano
de uma raça castiça que o Paixão nos disse ser um boxer. Bicho feio mas da raça das classes exploradoras e por isso
caríssimo. Tinha duas beiçorras caídas de pessimismo, o olho turvo e sanguinolento.
Paixão informou-nos sobre os métodos da sua criação que são complicadíssimos
com horário de refeições comestíveis seleccionadas e decerto mais tarde uma
escolha de parceira para o matrimónio. Chazou-se e falatou-se, o monstrozinho
sempre amarrado à perna do dono por uma arreata que lhe travasse algum apetite
de má-educação. Havia bolachas na mesa que aí ficaram como restos da cerimónia.
Mas a certa altura houve um descuido com a trela e quando démos por nós estava
o bicho atrombado às bolachas com uma voracidade própria de quem cometia um
pecado e não queria que o apanhassem em flagrante. Paixão saltou sobre ele,
arrebatou-o à sedução pecaminosa e deu-lhe nalgadas. Foi difícil convencê-lo de
que tinha o seu horário e comestíveis de cão racista. Porque não queria largar
o prazer proibido. Na sua fúria libertária deixou a mesa num chavascal. Queria
comer as bolachas todas de uma vez e largou a mesa toda espalhada de
selvajaria. E quando o Paixão o arrancou ao prazer, ainda mastigava no vazio do
que já não comia ou apurava alguns restos nas pelangas dos beiços. Paixão
explicou-nos: não pode comer açúcar. Teria diabetes? Não perguntei por
civilidade. Mas soube de não sei que incompatibilidade entre a raça apurada do
cão e a gulodice que ele apetecia. E lá o levou amarrado ao dever. E a Regina
fartou-se de limpar os destroços das bolachas, espalhadas pela mesa e pelo chão
e que um boxer que se preza não deve
comer como um qualquer rafeiro proletário.
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